Quando a democracia vira moeda de troca no Legislativo
17 dezembro 2025 às 11h34

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A insistência da base bolsonarista em redesenhar o sistema penal para aliviar as consequências dos crimes de 8 de janeiro escancara uma lógica conhecida: a defesa abstrata da lei vale até o momento em que a lei alcança seus próprios líderes. O PL da Dosimetria nasce desse paradoxo.
Apresentado como ajuste técnico, o projeto opera, na prática, como um atalho legislativo para reduzir penas de condenados por atentarem contra o Estado Democrático de Direito. Não se trata de aprimorar a justiça penal, mas de enviar um recado político de que golpes fracassados podem, sim, ser relativizados.
A advertência do ministro Alexandre de Moraes, ao afirmar que reduzir penas após o devido processo legal “flerta com novas tentativas de golpe”, é menos opinião e mais diagnóstico institucional. A pena, no direito penal democrático, não cumpre apenas a função retributiva; ela é também preventiva e simbólica.
Quando o Congresso discute esvaziar a dosimetria para crimes como golpe de Estado e abolição violenta do Estado democrático, sinaliza tolerância com a ruptura. A mensagem é clara: a democracia pode ser testada e, se falhar, as consequências serão negociáveis.
O discurso bolsonarista, que insiste em denunciar “perseguição” e “lawfare”, ignora deliberadamente os fatos. As condenações decorreram de julgamentos colegiados, ampla defesa, provas documentais e testemunhais, além da individualização das condutas tanto que houve absolvições por falta de provas e condenações parciais quando a participação não se comprovou integralmente.
Isso desmonta a narrativa de justiça arbitrária. O que está em jogo não é o excesso punitivo, mas a tentativa de rebaixar a gravidade de crimes que visam capturar instituições do Estado para manter um projeto de poder.
A engenharia do PL é reveladora. Ao impedir a soma de penas para crimes distintos, privilegiando apenas a pena maior, e ao acelerar progressões de regime, o projeto dilui o peso jurídico do ataque institucional. É a substituição da anistia explícita politicamente indigesta por uma anistia disfarçada, vendida como racionalização penal.
O resultado prático é o mesmo: redução significativa do tempo de prisão e esvaziamento do caráter pedagógico da punição. Não é coincidência que a proposta avance sob aplausos de quem, ontem, defendia o fechamento do Supremo e a intervenção militar.
O capítulo internacional agrava o quadro. Ao tratar o PL como “anistia” e vincular sua tramitação à retirada de sanções contra autoridades brasileiras, setores do governo dos Estados Unidos foram instrumentalizados por aliados do bolsonarismo para pressionar decisões soberanas.
A tentativa de exportar a narrativa de “crise de liberdades” é parte de uma estratégia recorrente: deslegitimar o Judiciário interno e buscar validação externa. O problema é que soberania democrática não se negocia por conveniência política, tampouco se subordina a interesses eleitorais.
A reação do próprio Judiciário, ao reafirmar a legalidade dos processos e a função preventiva das penas, recoloca o debate no lugar correto. Não houve criminalização da opinião, mas responsabilização por ações concretas que atentaram contra a ordem constitucional.
A mobilização de setores bolsonaristas em torno do PL, portanto, não é um movimento pela justiça; é uma tentativa de reescrever a história recente, normalizando a violência política e o golpismo como “excessos” perdoáveis.
Ao final, o impasse é menos jurídico e mais civilizatório. Democracias sobrevivem quando instituições funcionam e quando ataques a elas têm consequências proporcionais. Ao flertar com a indulgência seletiva, o Congresso corre o risco de corroer a confiança pública e incentivar a repetição do crime.
A lição de 8 de janeiro é clara: sem punição efetiva, o golpismo se normaliza. Democracia não sobrevive à tolerância com quem tenta destruí-la.
