Em meio a um momento em que casos de violência e desigualdade de gênero voltam a ganhar forte repercussão nacional, compreender as dinâmicas sociais, comunicacionais e territoriais por trás desses fenômenos é essencial — especialmente na Amazônia Legal, onde vulnerabilidades ambientais, conflitos fundiários e desigualdades históricas se entrelaçam e afetam diretamente a vida das mulheres.

Para aprofundar esse debate, conversamos com Cynthia Mara Miranda, jornalista, doutora em Ciências Sociais e pós-doutora em Comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais. Com mais de uma década de docência universitária, Cynthia desenvolve pesquisas que conectam gênero, comunicação e território, com foco em temas como desenvolvimento regional, feminismo, narrativas de violência contra mulheres na Amazônia e impactos climáticos sobre populações vulneráveis.

Atualmente, Cynthia Mara Miranda é professora do curso de Jornalismo e dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação e Sociedade e em Ciências do Ambiente da Universidade Federal do Tocantins. Também coordena o Laboratório de Estudos Geopolíticos da Amazônia no Tocantins (LEGAL), integra o grupo de pesquisa Comunicação, Direitos e Igualdade (CODiG/CNPq) e faz parte da Red Internacional de Periodistas con Visión de Género (RIPVG), onde atua ao lado de pesquisadoras e comunicadoras de diversos países.

Com experiência acadêmica, atuação internacional e olhar atento às complexidades amazônicas, Cynthia analisa os novos contornos da violência de gênero no Brasil, as responsabilidades da mídia e os desafios que se impõem às políticas públicas. 

O que explica esse aumento recente e a brutalidade dos casos de violência contra mulheres que chocaram o país?

Eu não diria necessariamente que aumentou o número de casos. Na verdade, eles sempre foram altos, e o que aconteceu agora foi uma maior visibilidade desses casos. Então, não podemos afirmar que o que estamos vivendo é uma onda ou um surto. Não é nada disso. Na verdade, precisamos analisar a situação de forma mais integrada, considerando diversos fatores.

Primeiro, a sociedade é extremamente machista e racista. O Brasil é um país muito desigual em relação aos homens e às mulheres. Além disso, há uma radicalização fortíssima do ódio online, que muitas vezes migra para o ambiente presencial, refletindo-se em crimes e outras situações.

Há também fatores institucionais envolvidos, como a falta de prevenção e de punição para os assassinos de mulheres, os chamados feminicidas. Portanto, é preciso compreender esses crimes de uma forma mais ampla e integrada

Os dados disponíveis confirmam que estamos diante de uma nova onda de feminicídios? Há mudanças no perfil das vítimas ou dos agressores?

Com relação aos dados disponíveis, eu tenho duas referências: uma é o Atlas da Violência e a outra é o Mapa da Violência. Um deles, inclusive, é produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Essas pesquisas são anuais, com dados divulgados todo ano, e nelas podemos observar que a violência contra a mulher, o feminicídio, é intensa, principalmente aqui na nossa região.

Na região Norte, incluindo Tocantins e Palmas, os índices são alarmantes. Quanto à mudança no perfil das vítimas e dos agressores, eu não diria que houve uma mudança significativa, porque, como destaquei, vivemos em uma sociedade machista e desigual em relação a homens e mulheres.

A violência contra a mulher e o feminicídio são, na verdade, consequências dessa intensa desigualdade entre os gêneros.

A senhora identifica uma reação violenta diante de avanços nos direitos das mulheres nos últimos anos?

Quando você me pergunta se eu identifico uma reação violenta diante dos avanços nos direitos das mulheres nos últimos anos, eu diria o contrário. Na verdade, o que aconteceu nos últimos anos foi uma redução dos direitos das mulheres.

Se você observar, nós não conseguimos avançar em uma representatividade mais justa das mulheres nos espaços de poder. Durante a gestão governamental de 2019 a 2022, tivemos um retrocesso nas políticas para as mulheres — políticas que agora começam a ser recuperadas.

Então, se vivemos em uma sociedade desigual para homens e mulheres, e não temos acesso a políticas de combate e prevenção da violência contra a mulher, não conseguimos atacar a raiz do problema

De que forma discursos de ódio, misoginia online e ataques digitais têm alimentado a violência offline?

Quando você me pergunta de que forma a violência online migra para o offline, é importante destacar que quem mais sofre linchamento virtual e violência digital de gênero são as mulheres. Nesse contexto, em que a internet se torna um espaço onde você pode ser vítima de violência, você também pode ser perseguida.

Pela internet, é possível localizar seu endereço, vigiar seus passos, saber onde você trabalha ou para onde você se desloca. Ficamos muito expostas, com nossos dados disponíveis online. Qualquer coisa que você publica nas redes sociais pode ser usada para te localizar.

Essa perseguição online migra para a realidade, para o mundo offline, de uma forma muito intensa. Temos observado que muitas mulheres começam sendo atacadas na internet e essa violência evolui.

Continuando a falar sobre a migração da violência online para a violência offline, a gente observa a existência de comunidades, como as chamadas Red Pill, que são grupos antifeministas que fornecem verdadeiros manuais de ação. Eles ensinam técnicas de assédio, de ataques coordenados a perfis de mulheres na internet e até estratégias para driblar a lei.

Então, imagine um homem que participa desse tipo de espaço, onde o ódio contra as mulheres é constantemente retroalimentado. Ele tende a ter muito mais disposição para atacar mulheres fisicamente quando sai desse ambiente virtual.

É uma comunidade que prega a humilhação, o ódio e a subjugação das mulheres. Hoje, temos diversas pesquisas destacando como essa violência online contra as mulheres tem migrado para o mundo real, para o mundo offline.

Onde o Estado falha mais hoje: na prevenção, na proteção das mulheres ou na responsabilização dos agressores?

Onde o Estado falha mais? Ele falha em tudo. Falha na prevenção, falha na proteção e falha na responsabilização. A grande questão são as políticas públicas universais — políticas de combate e prevenção à violência contra as mulheres — que deveriam existir em todos os estados e municípios, com orçamento digno.

É necessário um orçamento que permita que essas políticas sejam, de fato, interiorizadas, que saiam das capitais e cheguem aos municípios do interior. A violência contra a mulher e o feminicídio não atingem apenas as mulheres das capitais, mas também as mulheres do interior, as mulheres indígenas, as mulheres quilombolas.

As mulheres, em toda a sua diversidade, têm sido atacadas, têm sido mortas, têm retirado delas o direito de existir. O Estado falha ao não destinar orçamento adequado para essas políticas e ao não garantir equipes capacitadas e treinadas para atender essas mulheres quando elas precisam.

Temos delegacias especializadas no combate à violência contra a mulher, mas ainda são poucas diante do quantitativo populacional do país.

Apesar da Lei Maria da Penha e de medidas protetivas, por que ainda é tão difícil impedir que mulheres denunciantes sejam mortas?

As mulheres são mortas porque o Estado está falhando. É justamente por isso que eu comentei na questão seis: as políticas para as mulheres são políticas que precisam de convencimento. Para que exista uma política pública voltada às mulheres, a gestão pública — que é massivamente ocupada por homens — precisa ser convencida de que aquela política terá um impacto benéfico na vida da sociedade.

Ao contrário de outras políticas, cuja existência não é questionada, as políticas destinadas às mulheres sempre exigem um processo de negociação. Isso se explica dentro desse contexto de extrema desigualdade de gênero.

O que é preciso mudar nas políticas públicas para que elas sejam de fato efetivas no cotidiano — principalmente para mulheres pobres, negras e periféricas?

O que é preciso mudar nas políticas públicas para que elas sejam, de fato, efetivas no cotidiano, principalmente das mulheres pobres, negras e periféricas — em primeiro lugar, é o orçamento. É preciso aumentar o orçamento. Se isso não acontecer, a possibilidade real de essas políticas terem impacto é muito reduzida.

Outro ponto muito importante é ampliar o número de mulheres nos espaços de poder e decisão. Se as mulheres estão ausentes desses espaços, a chance de criar políticas que impactem diretamente a vida delas diminui. É fundamental ocupar esses espaços de decisão para dialogar sobre as demandas das mulheres e sobre quais políticas são necessárias.

Que transformações culturais e educacionais são urgentes para frear a normalização do controle, do ciúme e da violência masculina?

Essas transformações culturais e sociais demoram muito tempo para serem absorvidas pelo conjunto da sociedade. Mas, quando temos leis, programas e políticas a serem adotadas de forma uniformizada, conseguimos ter um efeito mais positivo.

Trabalhar as questões de gênero dentro das escolas é fundamental. E quando falamos de questões de gênero, estamos falando de vários temas: violência contra a mulher, gravidez na adolescência, violência digital contra meninas, entre outros. Trazer esses assuntos para serem discutidos e trabalhados no ambiente escolar é muito importante, porque é ali que as crianças estão sendo formadas.

Educar para a igualdade pode gerar um efeito muito positivo.

Diante desse cenário, qual seria o primeiro passo para começar a reverter essa crise de violência de gênero no Brasil?

Trata-se de um problema estrutural, então não vai ser resolvido em uma semana, em duas semanas ou em um mês. É um problema que precisa ser trabalhado de forma transversal, por toda a gestão pública — e não como um puxadinho dentro da Secretaria da Mulher, que nem existe mais em Palmas.

É necessário trabalhar de maneira integrada, para que todos os órgãos possam contribuir, envolvendo as escolas, por exemplo. Quanto maior o público envolvido nesse debate, melhor. Inclusive a própria mídia tem um papel importante ao trazer esses temas para a publicidade e contribuir para a conscientização social de que a violência contra a mulher tem um custo muito alto para a sociedade, para as mulheres, para suas famílias e para a coesão social.