Em busca de uma vida mais simples, o casal Wanderley Batista e Daniella Aires decidiu trocar a correria de Palmas pela tranquilidade de Taquaruçu. Entre o cheiro de terra molhada e o som das águas que descem pelas cachoeiras da serra, encontraram a paz que buscavam e um novo jeito de viver: da arte e da cultura tocantinense.

Foi ali, em uma antiga casa de adobe herdada do pai de Wanderley, que nasceu o Ateliê Pote de Ouro Arts, um espaço onde o barro e a cerâmica contam histórias. Mais do que peças de artesanato, o que sai das mãos de Wanderley, com ou sem auxílio do torno, carrega a memória de um povo, de um território e de uma infância passada entre brincadeiras no córrego e bonecos de barro moldados na beira do quintal.

“A gente queria fugir um pouco do trabalho convencional, ficar perto da família, e aproveitar também o turismo para fomentar e conseguir se manter com a arte”, conta ele, que nasceu em Porto Nacional, antes mesmo de existir o Tocantins, e viu Taquaruçu crescer como distrito de Palmas. Formado na área do agronegócio, viu na arte um novo modo de vida. 

Vivência no Ateliê Pote de Ouro Arts, em Taquaraçu | Foto: Fabiana Barbosa

Mas a história do Pote de Ouro não é só feita de barro. Quando Daniella, que veio de Araguaína para estudar em Palmas, se juntou com o artesão e engravidou das gêmeas Mayana e Geovanna, teve que desacelerar. “Naquela época, a médica recomendou que eu parasse. Aí decidimos mudar de vida. O Wanderley já tinha feito cerâmica quando mais jovem, e com o crescimento do turismo em Taquaruçu, vimos uma oportunidade”, lembra. Hoje, formada em Administração, escreve projetos culturais que ajudaram a colocar a cerâmica do Tocantins em cena nacional.

Casal se uniu e foi morar em Taquaruçu para ter uma vida mais tranquila | Foto: Emerson Silva
Wanderley Batista e suas peças | Foto: Guilherme Paganotto/Jornal Opção Tocantins

Para transformar o sonho em negócio viável, Wanderley e Daniella formalizaram-se como microempreendedores, com apoio do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). Ela, especialista em gestão, cuida da parte administrativa. Ele, com a alma artística, segue criando, moldando e idealizando os projetos.

Daniella Aires, microempresária | Foto: Guilherme Paganotto/Jornal Opção Tocantins

Por menor que seja o empreendimento, ele precisa de gestão. E hoje a gente funciona muito bem, com projetos culturais e sociais em Taquaruçu. A ideia é que outros artistas percebam a potencialidade que têm.

Daniella Aires, empreendedora

Os desafios continuam. Como em todo trabalho com arte e cultura, a luta por espaços, recursos e valorização é diária. Wanderley defende que os artistas devem ocupar os conselhos e espaços de formulação de políticas públicas, mas também empreender com autonomia. “Precisamos ocupar mais os conselhos, as discussões políticas, para garantir recursos. Mas também não podemos ficar só esperando. Temos que mostrar o trabalho, com ou sem edital.”

Empreender para resistir

O Sebrae Tocantins estima que existam cerca de 8,5 milhões de artesãos no Brasil, movimentando aproximadamente R$ 102 bilhões por ano. Desse total, R$ 50 bilhões correspondem à receita gerada diretamente pelo setor. A atividade também impulsiona a indústria, com cerca de R$ 20 bilhões em compras de insumos. No Tocantins, são cerca de 2.000 artesãos registrados com carteira profissional.

O Sebrae tem reconhecido o valor estratégico do empreendedorismo cultural no Tocantins, atuando de forma direta com iniciativas que unem tradição e inovação, como é o caso do Ateliê Pote de Ouro Arts, em Taquaruçu.

A analista Ana Flávia Borges explica que, por meio do projeto Estruturação Turística de Taquaruçu, os empreendedores Wanderley e Daniella receberam consultorias especializadas, capacitações e orientações voltadas à melhoria do negócio, criação de novos produtos turísticos e fortalecimento da identidade local. “A experiência com o barro foi uma das ideias desenvolvidas a partir desse processo. Também tivemos capacitação na elaboração de projetos para eventos e hoje o ateliê é um case de sucesso, tanto nas experiências turísticas quanto nas produções culturais que eles realizam”, destaca.

Segundo Ana Flávia, o Sebrae entende que fortalecer o ambiente de negócios é o ponto central de sua atuação, especialmente quando se trata de projetos de turismo e cultura.

A proposta é que o empresário consiga pensar em ações futuras, criar produtos inovadores e ampliar mercado. O impacto é direto não só sobre quem recebe o atendimento, mas também sobre a comunidade em geral, ao gerar renda, inclusão produtiva e valorização da identidade do território

Ana Flávia Borges, analista do Sebrae

A instituição também oferece apoio técnico a Microempreendedores Individuais (MEIs) do setor criativo e cultural. Além de consultorias presenciais, o Sebrae conta com uma plataforma nacional de referência, o Crie Sebrae, onde empreendedores podem acessar conteúdos sobre legislação, planejamento e elaboração de projetos culturais. “O Sebrae Tocantins também está pronto para apoiar esse empreendedor local com o conhecimento necessário para que ele desenvolva melhor seus serviços e tenha um plano de negócio adequado ao produto que deseja lançar”, complementa a analista.

Ao estimular a inovação e a criatividade em negócios baseados em saberes tradicionais, como a cerâmica regional, o Sebrae aposta no fortalecimento de cadeias produtivas sustentáveis, capazes de impulsionar o turismo, gerar renda e preservar o patrimônio cultural do estado.


Ateliê de portas abertas: turismo de experiência e cultura viva

Quem passa por Taquaruçu e visita o Ateliê Pote de Ouro Arts encontra mais do que peças de cerâmica. Aos sábados, o espaço se transforma em um ponto de encontro com rodas de conversa, oficinas e vivências artísticas, atendendo públicos de todas as idades. Uma das mais procuradas é a Mãos no Barro, onde visitantes aprendem a moldar o barro com as próprias mãos.

Hoje a humanidade está carente disso. De pisar no chão, de colocar a mão no barro, de ouvir o som da água. E é isso que a gente tenta oferecer aqui

Wanderley Batista, artesão e palestrante

O artesão também se dedica a reproduzir objetos tradicionais que estão se perdendo com o tempo, como a quartinha, um pequeno recipiente de barro para guardar água fresca, herdado da cultura africana e popularizado nos sertões brasileiros.

Quartinha em cerâmica, por Wanderley Batista | Foto: Guilherme Paganotto/Jornal Opção Tocantins

Além das atividades turísticas, o ateliê também foi contemplado com subsídio da Lei Aldir Blanc para manutenção do espaço. Com isso, 15 oficinas gratuitas estão sendo realizadas, promovendo acesso à arte e à cultura para a comunidade que frequenta o espaço.

Entre água e barro, Wanderley e Daniella descobriram que viver de arte também é uma forma de resistência  e, sobretudo, de felicidade.


A cerâmica como elo entre passado e presente

Da paixão pelo barro e pelo fazer manual, veio o desejo de conhecer outros artistas e mostrar que muita gente preserva saberes e técnicas passadas de geração em geração. Assim nasceu o projeto Cerâmica do Tocantins: Tradição e Contemporaneidade, realizado com apoio da Lei Rouanet Norte e executado em sete municípios tocantinenses.

Quisemos evidenciar essa cultura rica que muitas vezes está no interior e não é vista. A maioria capta a essência regional. É fauna, flora, araticum, lobo-guará, arara-canindé. É cultura viva.

Wanderley Batista, artesão e palestrante

O projeto culmina em uma exposição especial na Galeria Núcleo Integrado de Leitura e Artes (Nila), no Espaço Cultural José Gomes Sobrinho, em Palmas. Até 30 de junho, o público poderá visitar gratuitamente a mostra que reúne obras de dez ceramistas do estado –  uma verdadeira celebração da arte do barro como expressão de memória, resistência e renovação. 

A força da cerâmica tocantinense

Para além do talento dos artesãos, a exposição conta com um trabalho minucioso de curadoria, responsável por revelar as mãos que dão vida à cerâmica regional. Ronan Gonçalves, artista visual, diretor de arte e curador do evento, revela que essa escolha não foi feita ao acaso, mas a partir de um olhar atento e cuidadoso sobre o cenário cultural.

“É uma pesquisa constante de observação do cenário tocantinense, da cultura tocantinense. A partir desse observatório, vamos selecionando aqueles que têm uma produção mais consistente, que se destacam pela relevância ou já foram premiados. Essa é a base do nosso trabalho”, explica Ronan.

Quanto ao aspecto estético, o curador afirma que não há um padrão rígido imposto, mas sim uma busca por um diálogo entre o contemporâneo e a ancestralidade, uma linha tênue que equilibra o artesanato tradicional com as expressões da arte contemporânea. 

Cerâmicas brancas do Tocantins | Foto: Guilherme Paganotto/Jornal Opção Tocantins
Jogo de jantar em cerâmica | Foto: Guilherme Paganotto/Jornal Opção Tocantins
Exposição de cerâmicas do Tocantins | Foto: Guilherme Paganotto/Jornal Opção Tocantins
Indígena em cerâmica | Foto: Guilherme Paganotto/Jornal Opção Tocantins

Esse artista ceramista cria suas peças dentro da tradição do artesanato, mas ao mesmo tempo buscamos um olhar contemporâneo que converse com a ancestralidade. É nessa conversa entre passado e presente que a arte se revela. Para escolher as peças expostas, mergulhamos na produção de cada artista e extraímos aquilo que dialoga mais com esse conceito de arte viva

Ronan Gonçalves, curador

Quando questionado sobre o papel do Tocantins no panorama nacional do artesanato, Ronan se mostra orgulhoso das raízes tocantinenses e destaca as especificidades da cerâmica do Tocantins. “Sem dúvida, o Estado se destaca quando falamos da cerâmica produzida aqui. Assim como temos o capim dourado que é referência nacional e mundial, a cerâmica local tem sua própria identidade. Não só pela matéria-prima, o barro que vem desta terra, mas principalmente pela forma e pelo significado que cada peça carrega. Um exemplo claro é o “fuxico” feito pelo artista Márcio Bello, que carrega uma essência tocantinense inconfundível”, enfatiza.

Ronan Gonçalves, curador da exposição | Foto: Guilherme Paganotto/Jornal Opção Tocantins

Além disso, o curador ressalta a importância de trazer a cerâmica para espaços culturais contemporâneos, como o Nila, onde a exposição acontece. Segundo ele, essa é uma forma de valorizar e fortalecer o artesanato, aproximando-o do universo das artes visuais.

“Reunir os 10 artistas ceramistas no Nila é potencializar o trabalho deles, buscando essa contemporaneidade dentro de um espaço que tradicionalmente recebe obras de arte contemporânea. É um encontro encantador entre o artesanato local e o espaço cultural, que amplia a visibilidade e o reconhecimento desses artistas”, comenta Ronan. A seguir, confira a lista de artesãos que expõem obras cerâmicas do Tocantins.

Wanderley Batista

Wanderley Batista | Foto: Projeto Cerâmica Tocantins
Ceramista e artista popular de Taquaruçu, Wanderley dedica sua vida a valorizar a cultura tradicional tocantinense. Desde 2007, promove oficinas e projetos que entrelaçam arte, identidade e educação. Em 2024, reafirmou seu compromisso com a cultura local em sua primeira mostra individual, A Dança do Pote, onde o barro dança entre tradição e inovação.

Sirlene de Jesus Barros

Sirlene de Jesus Barros | Foto: Projeto Cerâmica Tocantins

Autodidata, Sirlene encontrou no barro sua voz e conexão com as raízes do Brasil. Suas mãos habilidosas preservam técnicas antigas de modelagem e queima, dando vida a peças que são mais que objetos – são histórias, memórias e a resistência das mulheres que vieram antes. Cada cerâmica é um poema em argila, um elo entre passado e presente.


Renato Moura

Renato Moura | Foto: Projeto Cerâmica Tocantins

Artista visual e ceramista formado em Artes e especialista em Linguagens Artísticas, Renato é mestre da cultura popular e educador. Sua arte cruza tradições e experimentações, unindo cenografia, bonecos e design em um diálogo vibrante entre arte, educação e cultura.


Maria do Carmo Silva – Carminha

Carminha | Foto: Projeto Cerâmica Tocantins

Artista visual autodidata, Carminha colore o mundo com seu estilo naif, revelando questões sociais e culturais por meio de formas detalhadas e cores vivas. Reconhecida nacionalmente, sua arte é um convite à reflexão e à transformação.


Maria Elza de Oliveira

Maria Elza | Foto: Projeto Cerâmica Tocantins

Com mais de duas décadas de experiência, Maria Elza é uma referência na cerâmica tocantinense. Co-fundadora da Associação de Mulheres Artesãs e Empreendedoras de Lajeado, sua arte é elo entre saberes tradicionais e linguagem contemporânea, um gesto de resistência e transformação social.


Márcio Bello

Márcio Bello | Foto: Projeto Cerâmica Tocantins

Percussionista, mestre artesão e luthier, Márcio tem mais de 35 anos dedicados à pesquisa e ensino de instrumentos tradicionais afro-brasileiros, sobretudo os tambores de barro do Tocantins. Fundador do projeto Tambores do Tocantins, ele resgata e transmite técnicas ancestrais, preservando um legado que ecoa nacional e internacionalmente.


Joelina Barros

Joelina Barros | Foto: Projeto Cerâmica Tocantins

Autodidata, Joelina transforma barro e argila em memória viva. Seu trabalho preserva técnicas ancestrais e cria peças utilitárias e decorativas que atravessam o tempo, carregando histórias inscritas nas mãos que fazem e que resistem.


Emerson Leitão

Emerson Leitão | Foto: Projeto Cerâmica Tocantins

Escultor autodidata, Emerson mistura técnicas manuais, tornearia em madeira, escultura em pedra sabão e metais, construindo uma obra que flutua entre a tradição artesanal e a expressão contemporânea. Premiado e reconhecido, leva sua arte a diversas cidades do Tocantins.


Antônio Luiz das Neves – Tauru

Antônio Luiz das Neves – Tauru | Foto: Projeto Cerâmica Tocantins

Artesão e artista plástico com formação autodidata desde a infância. Atuante na promoção cultural do Tocantins, é vice-presidente da FECART e presidente da ASSOCIARA. Autor de projetos como Portais do Porto Nacional, ministra oficinas de arte e participa de exposições nacionais. Reconhecido com diversas homenagens, incluindo a Comenda Zumbi dos Palmares e o título de Amigo Emérito do Exército Brasileiro


Dibexia Karajá

Dibexia Karajá | Foto: Projeto Cerâmica Tocantins

Pesquisadora, professora, ceramista e intelectual do povo Iny/Karajá, Dibexia é guardiã da cultura material Karajá. Reconhecida pela produção das bonecas ritxoko, coordena projetos de museologia compartilhada e valorização cultural, construindo narrativas que dialogam entre passado e presente indígena.