Em fevereiro de 2025, uma decisão da Justiça Federal passou a circular entre pescadores do rio Tocantins, no leste do Pará. O texto da decisão negava a existência de pescadores artesanais que vivem da pesca e do manejo do pedral, área de cerca de 35 km de extensão formada por grandes rochas que emergem durante a seca.

“No trecho 2, chamado Pedral do Lourenço, não há indígenas, quilombolas ou ribeirinhos”, afirmou a decisão, que analisou um pedido do Ministério Público Federal (MPF) para anulação da licença prévia concedida pelo Ibama como etapa inicial para a explosão de um canal extenso no Pedral do Lourenço.

“A área da obra circunscreve-se a um pequeno trecho do rio Tocantins, sendo o impacto ambiental baixo e temporário, não sendo o caso de invalidar-se a licença prévia”, continua o documento judicial ao qual a Folha de S. Paulo teve acesso.

Lideranças ribeirinhas afirmam que entre 20 e 25 comunidades vivem ao redor do pedral, popularmente chamado de Lourenção, com aproximadamente 3.000 pessoas, e criticam a ausência de reconhecimento dessas populações.

Até 2024, o EIA/Rima (estudo e relatório de impacto ambiental) do projeto, conduzido pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), não mapeou com precisão as comunidades ribeirinhas afetadas direta e indiretamente pelas explosões previstas. Um complemento do estudo foi entregue em julho de 2024, incluindo diagnóstico sobre as comunidades locais.

Segundo pescadores, o detalhamento da atividade pesqueira, que era condição da licença prévia, não foi realizado. Também não há clareza sobre indenizações ou ressarcimentos.

“A gente existe e segue aqui”, afirma Ernandes Soares da Silva, 52, vice-presidente da Associação da Comunidade Ribeirinha Extrativista da Vila Tauiri.

A Vila Santa Terezinha do Tauiri, na margem do rio Tocantins, possui mais de um século de existência. São cerca de 130 famílias, a maioria pescadores artesanais. A cidade mais próxima é Itupiranga, localizada a 50 km de Marabá.

O Pedral do Lourenço começa na vila e se estende por 35 km até a Ilha do Bogéa. As explosões estão previstas em todo o trecho, sendo a vila o ponto de entreposto para um paiol com explosivos.

“O tratamento dado é como se a gente não existisse. E a gente quer mostrar que têm pessoas vivendo aqui”, afirma Erlan Moraes do Nascimento, 30, que lidera a associação de ribeirinhos de outras três comunidades no pedral: Praia Alta, Vila Belém e Volta Redonda. Cerca de 80 famílias vivem nesses locais.

Posição Dnit

O Dnit afirma que as rochas a serem removidas representam apenas 1% da área total do pedral. “As ações estarão restritas a rochas submersas situadas no canal de navegação. A atividade pesqueira não será anulada. A maior parte do rio permanecerá livre e plenamente disponível para a pesca, inclusive durante a execução das obras.”

A licença prévia para a explosão foi concedida em outubro de 2022, no governo de Jair Bolsonaro. Em maio de 2025, no governo Lula, o Ibama emitiu a licença de instalação, autorizando o início das obras de derrocamento. Em junho, a Justiça suspendeu o avanço do projeto até análise sobre pedido de suspensão da licença feito pelo MPF.

O projeto prevê a abertura de uma passagem pelo Pedral do Lourenço com até três detonações por dia, por três anos, garantindo uma faixa de 100 m de largura para barcaças, integrando um projeto maior da hidrovia Tocantins-Araguaia. Também inclui dragagem de 177 km do rio Tocantins, permitindo acesso de minérios, soja e carvão ao Porto de Vila do Conde, em Barcarena.

O governador do Pará, Helder Barbalho, tem defendido a execução da explosão no Pedral do Lourenço e da dragagem do rio.

“Todas as garantias socioambientais devem ser asseguradas antes do início das obras”, disse o Governo do Pará, em nota. “O derrocamento é essencial para impulsionar a economia da região e modernizar a infraestrutura logística do país.”

Atividades de pesca

A pesca está associada às rochas, consideradas berçário de peixes, onde espécies como tucunaré e mapará se reproduzem. Técnicas tradicionais de pesca, como o uso de redes e tarrafas, dependem da presença das pedras, que funcionam como pontos de abrigo e para montagem de barracas.

Até mesmo a técnica de “caceia”, que envolve movimentar a rede acompanhando o curso da água, depende do conhecimento detalhado do pedral pelos ribeirinhos. Eles afirmam que a transformação do pedral em via hidroviária impactará definitivamente a pesca.

“O pedral começa a ‘croar’, começa a aparecer o peixe”, afirma José Viana de Brito, 60, da Vila Belém. “Eu gosto de pescar o tucunaré. Na época do mapará, costumo pescar à noite no pedral.”

Seu Zezinho e a mulher, Claudineia de Freitas, 55, vivem com quatro filhos e dois netos. A comunidade, em Nova Ipixuna, tem 20 famílias, quase todas dedicadas à pesca, que relatam diminuição de espécies como filhote, surubim e pacu devido à regulação da vazão da hidrelétrica de Tucuruí.

“Eu tenho medo de que vão acabar passando em cima da gente”, diz Claudineia sobre a explosão do Pedral do Lourenço, incluída no Novo PAC, orçada em R$ 1 bilhão.

Intervenção

O Dnit afirma que a intervenção será “pontual e localizada” e limitada à remoção de pedras submersas que interferem na navegação, sem alterar a paisagem visual do pedral. Condições da licença prévia foram cumpridas, incluindo mapeamento da atividade pesqueira e diagnóstico da dependência dos ribeirinhos do rio.

Programa de indenizações e compensações atenderá as comunidades, incluindo dinheiro, cestas básicas, água potável e transporte. O Ibama estabeleceu pagamento de um salário mínimo para pescadores da área impactada durante as obras. Algumas medidas têm caráter contínuo, como contenção durante as detonações com cortinas de bolhas, barreiras pneumáticas e sinais sonoros para afastamento de animais.

Mesmo com o controle da vazão pelo Tucuruí, os relatos indicam fartura de peixes. Na Ilha do Praia Alta, famílias vivem principalmente da pesca do mapará.

“Numa noite, só o pessoal da ilha pesca entre três e seis toneladas de mapará”, diz Welton Brito de França, 28. “Às vezes, só na minha canoa eu levo umas duas toneladas. Todo mundo vive bem, mesmo na ‘luada’ fraca.”

O calendário da “luada”, quando a lua favorece a pesca, é seguido há gerações. A produção abastece cidades como Itupiranga, Belém, São Luís e Brasília. Pela unidade de desembarque em Itupiranga circulam cerca de mil pescadores e ajudantes.

Ribeirinhos do Pedral do Lourenço extraem renda de diversas atividades associadas à floresta e ao rio, incluindo cultivo de cacau, cupuaçu, feijão e mandioca, produção de farinha e puba, extração de óleo de andiroba e quebração de coco de babaçu.

O barqueiro Moisés Barbosa Lima, 59, recolheu ovos de tracajá em bancos de areia, contribuindo para a repovoação da espécie. “Em 43 dias, nasceram 20 mil filhotes. Foi assim que eles voltaram a ter volume”, relata.

Fonte de água e transporte 

O rio também é fonte de água e transporte, especialmente para deslocamentos entre comunidades e cidades próximas. Moisés lembra que possui “160 pontos de GPS na cabeça”, identificando cada rocha do rio, essenciais para o transporte.

“Para a gente, que vive dentro do rio, a hidrovia não tem a menor importância, não faz o menor sentido”, afirma Ernandes da associação da Vila Tauiri. “Com a hidrovia, e boias garantindo a faixa dos 100 m, o espaço será deles. Como é que eu vou pescar arrastando a rede?”

Alterações nas rochas já ocorreram nos últimos quatro anos, associadas à navegação de barcaças. Muitas pedras estão cobertas por mexilhões importados de outros países, que se espalharam pelo pedral, causando dificuldades na pesca.

Caso a explosão prossiga, comunidades temem estigma: rejeição ao peixe do Lourenção por contaminação durante o derrocamento.

“A hidrovia pode gerar um efeito dominó, em que as pessoas digam sobre o peixe: ‘É do pedral, está contaminado.’ Elas não vão querer comprar mais”, afirma Ronaldo Barros Macena, 51, presidente da associação da Vila Tauiri.

Ronaldo e seus irmãos nasceram na vila. “Todo mundo é ribeirinho, todo mundo é pescador. Quando precisa, vai no rio e busca um peixe.”

Lideranças das associações buscam ser ouvidas antes de qualquer explosão. Protocolos de consulta prévia já existem, e eles querem ver cumpridas as condições da licença prévia.

“Quando saiu a licença de instalação, foi um tapa na cara de todo mundo”, afirma Ronaldo.