Márlon Reis, advogado, ex-juiz e relator da Lei da Ficha Limpa, é reconhecido nacionalmente por seu combate à corrupção eleitoral e pela defesa da transparência nas eleições. Natural de Pedro Afonso, região centro norte do Tocantins, o jurista é fundador do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE). 

Em entrevista ao Jornal Opção Tocantins nesta semana, ele fala sobre o afastamento do governador Wanderlei Barbosa (Republicanos) por decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o pedido de impeachment feito pelo ex-prefeito de Palmas e vereador Carlos Amastha, cuja petição é assinada pelo advogado, bem como a recente aprovação pelo Senado do projeto que reduz os prazos de inelegibilidade da Lei da Ficha Limpa. 

Recentemente, o Senado aprovou um projeto que reduz os prazos de inelegibilidade da Lei da Ficha Limpa, que o senhor relatou. Como o senhor recebeu essa notícia?

Olha, no primeiro momento, recebi com grande perplexidade, essa é a palavra. Porque o Brasil inteiro estava atento ao primeiro dia de julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro. E eles aproveitaram para fazer uma sessão virtual em que a imensa maioria dos senadores não estava presente, aprovando mudanças drásticas numa conquista popular, da sociedade brasileira.

Então, vejo como um desrespeito pleno à vontade do soberano popular e também uma verdadeira traição aos mandatos que exercem. Mas essa perplexidade durou apenas uma noite. Na manhã do dia seguinte, já estávamos mobilizados para impedir que transformem essa vitória momentânea numa vitória na guerra. Ainda não terminou. Temos dois campos de luta: lutar pelo veto presidencial e, caso não ocorra, já estamos prontos para ir ao Supremo Tribunal Federal com uma ação declaratória de inconstitucionalidade.

O projeto é de autoria da deputada Dani Cunha, filha do ex-deputado Eduardo Cunha, e teve o apoio do senador Davi Alcolumbre. Como o senhor interpreta o peso político dessas articulações? Eduardo chegou a ser preso por corrupção. O relator chegou a dizer que não é razoável permitir que a inelegibilidade seja eterna. Na prática, essa mudança preserva o espírito da lei ou a enfraquece, na sua opinião?

Não existe, ao contrário do que foi dito, nenhuma inelegibilidade ad eternum. Existem inelegibilidades longas, sim, em virtude dos crimes atribuídos a condenados, mas nunca uma inelegibilidade eterna.

Alguém que pratique um crime de homicídio e seja condenado, por exemplo, a 22 anos de prisão, o que é perfeitamente possível e muitas vezes acontece, vai ficar inelegível por 30 anos. Pode ser até mais, mas o que determina é a gravidade do crime, que se reflete no tamanho da pena.

Então, só existem inelegibilidades longas para situações graves: crimes bárbaros, hediondos, abjetos. Amenizar o tratamento dado a delitos de extrema gravidade é uma irresponsabilidade muito grande.

Esse projeto foi encomendado. Ele não visa ao aperfeiçoamento de lei alguma. Ele foi feito para permitir candidaturas já no ano que vem, reduzindo drasticamente os prazos e beneficiando pessoas que estão inelegíveis e que, sem isso, ficariam muitos anos afastadas da política. Foi encomendado por pessoas como Eduardo Cunha, Anthony Garotinho e outros condenados em escândalos passados.

Então, o senhor acredita que, se o presidente Lula não vetar, vai beneficiar diretamente pessoas já inelegíveis?

Sim, vai beneficiar pessoas conhecidas. O principal é o próprio Eduardo Cunha, que estava impedido de participar e cuja filha apresentou o projeto justamente para liberar o pai.

E no caso do ex-presidente Bolsonaro, ele seria beneficiado?

Ele seria beneficiado na medida em que, se for condenado, ficará menos tempo inelegível do que ficaria com a regra atual. Mas não deixará de ficar inelegível e pode ter, inclusive, os direitos políticos suspensos.

Agora trazendo para o Tocantins: como essas alterações podem impactar diretamente o cenário político local, onde já temos políticos cassados e inelegíveis, como o ex-governador Mauro Carlesse?

Vamos analisar. Carlesse foi eleito em mandato-tampão em 2018 e reeleito em 2018. Em 2022, ele renunciou, e o governador Wanderlei assumiu. Pela renúncia, Carlesse fica inelegível por oito anos. Com ou sem alteração legislativa, ele continua inelegível. Só que, se barrarmos essa mudança, ele ficará inelegível por mais tempo: até 2031. Com a mudança, ficaria inelegível até 2030. Ele já se anuncia como pré-candidato, mas não pode. Ele é inelegível.

E no caso do governador Wanderlei Barbosa, o que levou o senhor a assinar o pedido de impeachment junto com o ex-prefeito de Palmas Carlos Amastha, considerando que ainda está em fase de inquérito, apesar das provas robustas?

O Amastha, nosso cliente no escritório, nos pediu essa providência. O pedido foi formulado por meio do nosso escritório. Entendemos que as esferas judicial e política são distintas. O pedido de cassação política (impeachment) não observa as mesmas regras do processo penal e não depende da conclusão dele. A Assembleia Legislativa, como poder independente, pode fazer a leitura dos mesmos fatos à luz da Constituição do Estado, que é o que estamos pedindo.

Aliás, o Mauro Carlesse renunciou pouco antes de a Assembleia realizar um processo semelhante contra ele. Ele renunciou horas antes da sessão que o cassaria. E seu processo criminal ainda nem foi julgado até hoje.

Qual a importância de protocolar esse pedido mesmo após o afastamento decidido pelo STJ?

É muito importante. Os casos estão bem caracterizados e documentados. As provas são evidentes. Os crimes praticados por essa organização criminosa que tomou conta do Estado não são apenas graves, são infamantes. Houve desvio de recursos destinados a alimentos e medicamentos em plena pandemia. Isso revela desprezo completo pela vida das pessoas mais humildes, que dependiam desses recursos. É um ato de corrupção em meio a um contexto dramático de mortes pela Covid-19.

Caso o governador renuncie, a Lei da Ficha Limpa se aplicaria, assim como no caso Carlesse?

Sim. Se ele for cassado pela Assembleia, ficará inelegível. Se renunciar, também ficará inelegível.

Mas nesse caso, tudo depende da vontade política da Assembleia. O senhor vê espaço para isso avançar, considerando que o presidente da Casa, Amélio Cayres, é aliado do governador?

Por isso orientei meu cliente a solicitar uma certidão da presidência da Assembleia sobre a tramitação do pedido. Vamos acompanhar diariamente e cobrar o andamento. Caso não ocorra, poderemos inclusive pedir responsabilização dos agentes políticos que não derem andamento devido.

Na política, os ventos mudam. No governo Carlesse, a Assembleia era 100% aliada, mas depois virou 100% contrária e estava prestes a cassá-lo. Quem hoje é amigo, amanhã pode se tornar apenas cumpridor de deveres.

É por isso que eu digo que tudo depende da força dos ventos políticos. Não uso essa metáfora à toa: os ventos mudam não apenas de velocidade, mas também de direção.

O governador alega que os contratos investigados foram firmados quando ele ainda era vice e que, ao assumir, mandou auditar os contratos. Esse argumento tem consistência jurídica?

Isso não muda nada. Tanto é que seu afastamento foi determinado. Os autos não contêm apenas isso. Ele seleciona o que considera suficiente para sua defesa, e tem o direito de se defender. Mas o processo contém quebras de sigilo bancário, recuperação de áudios e vídeos apagados, até registros de pessoas tirando selfies com montanhas de dinheiro. É um mar de documentos que não se resume a esses pequenos detalhes que o governador menciona.

Como o senhor avalia o silêncio da Assembleia Legislativa diante do caso? Poucos deputados se posicionaram. 

Lamentavelmente, a Assembleia Legislativa do Tocantins tem se portado como uma secretaria de Estado do governador. Isso em virtude das benesses distribuídas por meio de emendas e da ocupação de cargos comissionados para atender interesses parlamentares. Assim, tudo o que é falado por um deputado é medido não pela representação popular, mas pela vontade do governante. Digo isso com todo respeito aos parlamentares, mas peço a eles: mudem de postura.

Há 20 anos que o Tocantins não tem um governador que conclua um mandato. Como o senhor avalia esse cenário?

Esse é um problema que transcende o aspecto moral. O Tocantins se deixou afundar em um sistema de corrupção que se retroalimenta, criando uma interdependência entre Executivo e Legislativo. Isso tornou governar muito caro, porque é preciso manter esquemas de sustentação política com deputados, presidentes de partidos, cabos eleitorais. Isso custa caro para os cofres públicos, custa mandatos e, muitas vezes, até a liberdade dos governantes.

Nenhum teve coragem de romper com isso até agora. Falta coragem. Eu torço para que o governador Laurez seja essa pessoa. Ele tem trajetória política limpa, foi um grande prefeito em Gurupi e tem nome a zelar. Espero que rompa com esse sistema. 

Hoje existem mecanismos de controle rigorosos. Quem julga um governador não é o Judiciário estadual, mas o Superior Tribunal de Justiça. O Tocantins já é recordista de cassações no TSE e de prisões e buscas no STJ. Infelizmente, nosso estado ficou conhecido nacionalmente por isso. Precisamos romper com esse histórico.