Com a chegada de dezembro, volta a sensação de urgência que faz muita gente querer resolver pendências, reorganizar a casa, acertar contas e até reescrever a própria rotina antes da virada. Embora pareça apenas um comportamento cultural, esse impulso tem base científica. A psicóloga Elisa Feitosa Lopes* explica que o fenômeno é conhecido como fresh-start effect — e que, usado sem realismo, pode gerar culpa, comparação e esgotamento.

“A virada carrega uma expectativa cultural gigante de recomeço, como se fosse uma borracha mágica capaz de apagar tudo que não deu certo”, observa. “Essa cobrança de ‘chegar ao dia 31 com tudo resolvido’ muitas vezes vem muito mais de fora do que de dentro.”

Para ela, a sensação de renovação existe, mas ninguém “zera a vida” na prática. “A gente só segue vivendo, ajustando e recomeçando muitas vezes — e isso não precisa acontecer só em dezembro.”

motivação existe, mas dura pouco

Segundo Elisa, o entusiasmo para mudar de hábitos é real e aparece em vários dados de comportamento: mais buscas por dieta, inscrições em academia, promessas e listas. “Mas esse impulso é curto. Ele funciona como um gatilho de partida, não como combustível para o caminho inteiro”, afirma.

Sem organização prática, rotina adaptada e metas realistas, a motivação evapora — e o ciclo de frustração se repete logo em janeiro. “Muita gente entra no ano com um otimismo mágico, acreditando que só virar o calendário transforma tudo.”

O que realmente priorizar na última semana do ano

Para a psicóloga, a pergunta mais importante não é “o que falta fazer”, mas sim “o que reduz minha ansiedade agora”.
“O que priorizar depende muito do seu momento de vida, da sua energia e da sua saúde mental”, destaca. “A verdadeira prioridade é tudo aquilo que devolve sensação de chão. Primeiro resolva o que tira seu sono. Depois, o que devolve energia.”

Os erros mais comuns

Elisa aponta quatro comportamentos que sabotam o planejamento de fim de ano e tornam janeiro ainda mais pesado:

  • metas vagas demais — “vou me exercitar mais” não diz nada sobre quando ou como;
  • excesso de metas — quanto mais itens, maior a chance de abandonar tudo;
  • mentalidade do tudo ou nada — esperar o cenário perfeito e desistir ao primeiro tropeço;
  • ignorar o fator financeiro — compras impulsivas de dezembro e parcelamentos longos que estouram no início do ano.

“O ideal é escolher poucas prioridades e aprofundar nelas”, diz.

Como tornar a organização mais leve

A organização de fim de ano, segundo Elisa, vira punição quando a pessoa tenta “compensar” um ano difícil com esforço extremo. Ela recomenda uma lógica mais gentil, baseada em microtarefas e conforto emocional.

“Troque o ‘vou arrumar a casa inteira hoje’ por ‘vou fazer 20 minutos do que mais me incomoda agora’. Isso gera avanço sem esgotar energia”, orienta. A psicóloga também sugere incluir pequenos confortos no processo: música, cheiros, café ou companhia. “O corpo relaxa, e a mente acompanha.”

Outro ponto é abandonar comparações com vidas perfeitas nas redes sociais. “O Instagram vende um dezembro que não condiz com o mundo real. Você não precisa de uma vida de Pinterest, só de uma vida que caiba em você.”

Metas possíveis: o que a psicologia recomenda

Elisa sugere o uso da metodologia SMART para transformar resoluções em ações sustentáveis. Ela exemplifica com uma meta simples, como ler mais:

  • específica: ler mais livros
  • mensurável: 1 por mês
  • alcançável: 20–30 minutos por dia
  • relevante: desenvolvimento pessoal
  • temporal: ao longo de 2026

Meta final: “Ler 1 livro por mês, separando 20 minutos antes de dormir ao longo de 2026.”

A psicóloga também orienta a prever obstáculos. “A vida real não acontece como no papel, e ter plano B evita desistências”, diz.

Poucas metas funcionam melhor

Não existe número mágico, mas Elisa reforça que o cérebro trabalha melhor com foco limitado.
“Para a maioria das pessoas, 1 a 3 metas realmente significativas funcionam muito melhor. Prefira poucas metas bem cuidadas do que muitas abandonadas.”

Culpa pelas metas não cumpridas: como lidar

Para a psicóloga, frases como “você não tentou o suficiente” são injustas e ignoram saúde mental, rotina e circunstâncias. Ela recomenda começar anotando 3 aprendizados do ano e 2 coisas que deram certo, por menores que pareçam.

“Isso muda o foco do ‘fracasso’ para a trajetória”, afirma.
Depois, trocar autocobrança por curiosidade: “O que estava acontecendo comigo naquele momento?”

Se a culpa estiver muito pesada, buscar psicoterapia pode ajudar. “Não como castigo, mas como cuidado.”

O impacto emocional da organização

Arrumar casa, finanças e rotina pode aliviar o ruído cognitivo e aumentar a sensação de controle. Pesquisas relacionam ambientes caóticos a maior estresse e dificuldade de relaxamento.
Mas Elisa alerta: organização também pode virar fuga emocional.

“A pergunta que importa é: você está organizando para cuidar de você ou para aliviar culpa?”

Descanso também é planejamento

O descanso precisa ter dia e hora, assim como qualquer outra tarefa. “Ele precisa ser inegociável”, diz.
Para ela, descanso é produtividade emocional: recarrega, clareia e prepara o corpo para sustentar as metas do próximo ano.

Faxina digital: o peso invisível

Elisa recomenda começar pelo básico: limpar conversas e arquivar o resto; atualizar senhas; deletar aplicativos esquecidos; organizar fotos em pastas. “A bagunça digital pesa tanto quanto a casa desorganizada, só que de um jeito silencioso”, afirma.

O excesso de estímulos, notificações e comparações contribui para o cansaço acumulado de dezembro.

Finanças e o janeiro apertado

O aperto financeiro no início do ano é, segundo ela, resultado da mistura entre emoção, pressa e expectativas. Para minimizar o impacto ainda em dezembro, ela sugere:

  • limite realista de gastos;
  • lista de presentes dentro desse limite;
  • evitar parcelamentos;
  • renegociar dívidas quando possível.

“Muita coisa é estrutural, não se resolve num mês. Mas dá para ajustar aos poucos.” Pequenas ações, como rever assinaturas, vender itens parados e priorizar dívidas com juros altos, já aliviam.

Para quem chega esgotado ao fim do ano

Se a energia está baixa, grandes metas só aumentam a culpa. “Escolha uma coisa que te devolve 1% de energia: arrumar uma gaveta, caminhar cinco minutos, responder duas mensagens, dormir melhor. Começar melhor não é virar a chavinha — é parar de se abandonar.”

Ela reforça: “Se o ano foi pesado, você não precisa terminar forte. Precisa terminar inteira(o) o suficiente para começar 2026 sem carregar tudo sozinho.”

* Elisa Feitosa Lopes. Psicóloga – CRP 23/2121, Analista Profiler (Solides), Pós-graduanda em MBA em Liderança e Formação de Gestores pela UFT. Fundadora da Anamu Psicologia e Desenvolvimento Humano. Atua com psicoterapia clínica, palestras, rodas de conversa, treinamentos, grupos terapêuticos e programas de bem-estar corporativo. Possui experiência em gestão de pessoas, desenvolvimento humano, comunicação assertiva, gestão do tempo e qualidade de vida no trabalho.