Tocantins perde 1 em cada 3 alunos do fundamental da rede estadual em menos de 10 anos

24 agosto 2025 às 08h00

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A escola, mais do que um espaço de aprendizado, deveria ser um território de construção de sonhos, de experiências e de oportunidades. No entanto, para muitas crianças e adolescentes, ela se transforma em um lugar marcado pela ausência de pertencimento, barreiras invisíveis e escolhas forçadas, que acabam interrompendo trajetórias antes mesmo que tenham começado a se consolidar.
O abandono escolar não é apenas uma falha individual, mas um reflexo de desigualdades históricas e estruturais. O desafio não está apenas em colocar crianças e adolescentes na sala de aula, mas em garantir que esse espaço seja verdadeiramente inclusivo, acolhedor e capaz de sustentar o desenvolvimento de cada um deles.
A evasão escolar no Tocantins apresentou uma queda em 2023, segundo dados divulgados pela Secretaria de Estado da Educação (Seduc). A taxa média de abandono no ensino médio caiu quase pela metade em relação ao ano anterior, passando de 3,68% para 1,96%. Em 49 municípios, o índice foi zerado, sinalizando avanços importantes na permanência dos estudantes nas salas de aula.
Mesmo com a melhora geral, alguns municípios ainda registram taxas altas e preocupantes. Tocantínia lidera o ranking, com 11% dos alunos deixando a escola, seguida por Araguacema (9,7%), Rio dos Bois (8,5%), Conceição do Tocantins (8,5%) e Bernardo Sayão (8,1%). Por outro lado, há exemplos positivos de recuperação, como Campos Lindos, que reduziu de 11,6% em 2022 para 0% em 2023, e Palmeiras do Tocantins, que caiu de 21,2% para 6,3%.
Embora a realidade geral seja promissora, ainda existem recortes na Educação do Estado que merecem atenção.
Dados
Conforme dados do Censo Escolar levantado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), em 2015, mais de 252 mil crianças estavam matriculadas no ensino fundamental no Tocantins. Nove anos depois, em 2024, pouco mais de 218 mil alunos permaneciam na rede. A diferença de quase 34 mil estudantes, que em parte deveriam integrar as estatísticas, indicando que o ciclo do fundamental (9 anos), foi completado.
Na rede estadual a situação é ainda mais grave. Entre 2015 e 2024, as matrículas caíram de 91,2 mil para 59,9 mil, um terço dos alunos do ensino fundamental desapareceu das salas estaduais. As áreas rurais registram queda de 28%, quase 10 mil vagas a menos. Mesmo no curto prazo, de 2023 para 2024, o fundamental perdeu 4,2 mil alunos no total e 5,5 mil na rede estadual (-8,5%).

Enquanto o ensino fundamental registra retração, o ensino médio apresenta uma trajetória diferente: os jovens que chegam a essa etapa, em grande parte, conseguem permanecer, 68,4 mil alunos em 2021 contra cerca de 70 mil em 2024, período de três anos padrão que os adolescentes têm para conclusão.
Porém, os dados escondem uma exclusão silenciosa, quem não aparece nas estatísticas, porque não frequenta a escola, são justamente os jovens mais vulneráveis. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (PNAD) de 2024 revela que, entre os adolescentes de 15 a 17 anos que abandonaram ou sequer ingressaram no ensino médio, todos pertencem a grupos étnico-raciais negros ou indígenas. Mais de 60% desses adolescentes estão entre os 20% mais pobres da população tocantinense.
Motivos
As razões apontadas por quem trabalha com a defesa dos direitos da criança e do adolescente somam fatores materiais e pedagógicos. Em entrevista ao Jornal Opção Tocantins, Mônica Brito, secretária executiva do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, Cedeca Glória de Ivone, em Palmas, sintetiza o problema em termos de pertencimento e projeto escolar.
“Muitos adolescentes, muitos jovens têm que largar a escola para trabalhar, para poder gerar renda na própria família, para a sobrevivência e para a segurança alimentar. Está ainda na responsabilidade desses jovens a responsabilidade de manutenção também das famílias, que são focadas muito por mulheres, que são chefiadas por mulheres. Então os postos de trabalho são reduzidos para as mulheres, então esses jovens têm uma grande responsabilidade também com relação à sobrevivência e à segurança alimentar dessas famílias.”
Para Mônica, a questão vai além de medidas assistenciais pontuais. “A questão da evasão escolar do ensino médio é um dos nossos maiores desafios. Primeiro, porque a escola hoje não é construída para a permanência da criança na escola. São vários motivos. A própria metodologia da aprendizagem não torna a aprendizagem um fator prazeroso e de autonomia dos sujeitos. Você vê pelo modelo de educação adotado. Não é um modelo para fortalecer a diversidade, para fortalecer a empatia, a escuta. É um modelo focado em conteúdos. Então, isso já é uma dificuldade.”

A crítica atinge currículo, métodos de ensino e a sensação de que a escola não “pertence” a esses estudantes, seja por falta de escuta, práticas pedagógicas alienantes ou estruturas físicas e de serviço inadequadas.
A precariedade material das escolas aparece como um multiplicador de riscos. Mônica aponta “a estrutura precária das escolas, a alimentação escolar de baixa qualidade e a falta de avanço tecnológico” como elementos que afastam alunos que já estão imersos em outras realidades, onde a tecnologia e a conectividade fazem parte do cotidiano. “As escolas estão todas em situações precárias, a grande maioria. As escolas não acompanham a tecnologia, e esses meninos estão todos muito focados na tecnologia. A escola ainda tem quadro, né? Não é focada na tecnologia. Tanto a metodologia como a própria estrutura… Não há democracia na escola que incentiva o aluno a ser escutado e essa escuta ser uma escuta qualificada no sentido de considerar o protagonismo desses alunos. Então, é a mesma coisa de dizer: essa escola não pertence.”
O Jornal também conversou com quem lida com a evasão escolar na prática. Segundo Mízia Léia Coelho Pereira, técnica orientadora educacional na Superintendência Regional de Educação, diversos fatores levam crianças e adolescentes a abandonar a escola ou perderem o interesse pelos estudos. Entre eles, destacam-se questões socioeconômicas, a necessidade de trabalhar para ajudar a renda familiar, a falta de acompanhamento e incentivo da família, além de dificuldades na aprendizagem. “Muitos adolescentes querem alcançar algum bem material ou ter independência financeira, enquanto alguns pais não conseguem dar suporte. Isso faz com que o jovem opte por trabalhar, em vez de permanecer na escola”, explica Mízia.
Ela ressalta que, embora a evasão seja mais comum no ensino médio, também existem casos no fundamental. Para lidar com essas situações, as escolas da rede estadual têm adotado estratégias de acompanhamento diário da frequência dos estudantes. Esse monitoramento, realizado pelo orientador educacional ou pelo assistente social, permite que a escola entre em contato rapidamente com a família ou com o próprio estudante, identificando a causa da ausência e garantindo que a família seja notificada em tempo hábil.
“Se necessário, fazemos visitas domiciliares ou contatos por telefone e mensagens via WhatsApp. O objetivo é que o estudante perceba que existe uma equipe acompanhando e se preocupando com seu desenvolvimento e com a conclusão dos estudos”, afirma Mízia. Para os estudantes considerados mais vulneráveis, há também uma plataforma de acompanhamento, gerida pela superintendência regional, em parceria com a rede de apoio, como o Conselho Tutelar.
Mízia detalha que as escolas planejam, em conjunto com coordenadores pedagógicos, equipes multiprofissionais e professores, planos pedagógicos individuais para a volta do aluno que deixou a escola. Esses planos incluem atividades que recuperam os conteúdos perdidos durante o período de ausência, garantindo que o estudante também possa recuperar notas e retomar seu ritmo de aprendizagem. “O que desestimula o jovem quando ele volta é perceber que ficou para trás no conteúdo e nas notas. Por isso, adotamos essas estratégias para que ele não seja prejudicado”, explica.
Diante desse cenário, composto por causas externas (pobreza, trabalho precoce, falta de políticas públicas de busca ativa) e motivos internos (metodologia, estrutura, cardápio da escola), quais respostas estão em curso? A Seduc respondeu oficialmente por meio de nota à imprensa, que as matrículas no Ensino Médio da rede estadual se mantiveram estáveis de 2022 a 2024, e mostram redução na taxa média de abandono escolar: 3,7% em 2022 para 1,9% em 2023 na rede estadual.
A secretaria também lista programas e políticas voltados para permanência escolar: Busca Ativa Escolar; bolsas e programas como Programa Presente, Profe!, Programa Pé-de-Meia; ações como Programa Evasão Nota Zero, Programa Avança Mais; ampliação de escolas de tempo integral; e apoio de programas federais como PNAE (alimentação) e PNATE (transporte). A Seduc afirma ainda que a frequência é monitorada diariamente via Sistema de Gestão Escolar (SGE) com acompanhamento de equipes multiprofissionais.

Ações
Entre as iniciativas, o Programa Presente, Profe! oferecem bolsas mensais de incentivo a estudantes do 9º ano do Ensino Fundamental e das três séries do Ensino Médio em tempo integral. O objetivo é estimular a frequência e reduzir o abandono escolar, recompensando o esforço dos alunos com apoio financeiro. Já o Programa Pé-de-Meia, do governo federal, deposita mensalmente valores em poupança para estudantes que mantêm pelo menos 80% de frequência, funcionando como uma forma de motivação para permanecer na escola.
Outras ações incluem o Programa Evasão Escolar: Nota Zero, que atua de forma integrada com órgãos como o Ministério Público e as prefeituras municipais para acompanhar a frequência dos alunos, identificar aqueles em risco de abandono e oferecer suporte pedagógico para evitar que deixem a escola. O Programa Avança Mais busca atender estudantes que estão fora da faixa etária adequada para a série em que estão matriculados, oferecendo aulas complementares, tecnologias educacionais e acompanhamento individualizado.
Essas iniciativas mostram o conciliamento entre o paliativo e a transformação. Programas de transferência de renda e de correção de fluxo atuam diretamente sobre fatores materiais que empurram crianças para fora da escola; no entanto, especialistas e organizações locais reivindicam mudanças mais profundas no projeto escolar: democráticas, inclusivas e capazes de dar sentido à permanência. O Cedeca, por exemplo, insiste na necessidade de “busca ativa” como política concreta: não apenas falar sobre retorno, mas construir práticas que reconectem crianças e adolescentes à escola, a partir do diálogo com as famílias, territórios e rotinas de trabalho e cuidado.
Perder quase 1 em cada 3 alunos do ensino fundamental da rede estadual antes da conclusão do ciclo significa que milhares de crianças terão a trajetórias interrompidas de aprendizado, com impactos que vão muito além da sala de aula, sobre emprego futuro, saúde, participação cidadã e promoção da igualdade.
Enquanto os dados mostram números e tendências, as histórias que eles escondem falam de vidas interrompidas, escolhas forçadas e oportunidades perdidas. O desafio do Tocantins é preencher cadeiras vazias e reconstruir a escola como um espaço de pertencimento, aprendizagem e futuro para todos, em especial para aqueles que, historicamente, foram deixados para trás.