Por Fernando Maciel Vieira 

Vivemos na era da terceirização da criação: o bebê nasce e já ganha três cuidadores — o tablet, o YouTube e a avó (nessa ordem). O pai e a mãe? Esses aparecem nos stories, sorrindo, com a legenda “Família é tudo”, enquanto o menino está na sala aprendendo palavrão em 4K.

E assim começa a nossa história — que poderia ser uma ficção, mas infelizmente é apenas o Tocantins sendo o Tocantins.

Capítulo 1: O Filho do Wi-Fi

Seu João, 44 anos, eletricista, acorda antes do sol e volta pra casa quando até o galo já está dormindo.
Dona Marta, sua esposa, vendedora numa loja do centro de Paranã, passa o dia ouvindo “tem desconto se pagar no Pix?”
E Pedrinho, o filho de 11 anos, é aluno da Escola Municipal Esperança do Futuro — um nome que parece promessa de político: bonito, mas difícil de cumprir.

Mas a verdade é que Pedrinho estuda mesmo é na Universidade Federal do YouTube, com pós-graduação em “Como responder aos adultos sem sair do jogo online”.
O menino não larga o celular nem pra comer. Já chegou ao ponto de reclamar que o arroz estava travando — achou que era lag.

Durante o jantar, a família se reúne — cada um com sua tela, claro.
— “Como foi a escola, Pedrinho?”
— “De boa.”
— “Fez a tarefa?”
— “Tô fazendo.”
(Também conhecido como: “vou lembrar disso amanhã, talvez, se o servidor cair e eu ficar entediado”.)

O silêncio é interrompido por um som sagrado: notificação do grupo da escola.
Dona Marta suspira e abre. Lá estão as mães discutindo sobre o lanche, o uniforme e o drama do “professor que não entende o meu filho”.
A pedagogia da culpa já começa a se manifestar em voz alta:
— “Ah, esse professor não tem paciência!”
— “Coitado do meu menino, é tão inteligente, mas a escola não estimula!”

Capítulo 2: A Culpa é Sempre do Outro

No outro dia, Pedrinho discute com o professor.
Marta é chamada à escola. Chega com o semblante de quem foi injustiçada pela ONU.
— “Mas eu educo ele direitinho!” — diz, ofendida.
E o professor, com aquele olhar de quem já coleciona olheiras pedagógicas, tenta explicar:
— “Educar direitinho não é só ensinar a dizer ‘bom dia’… é ensinar a ouvir um ‘não’.”

Marta volta pra casa bufando:
— “Essa escola de hoje não é mais como antigamente! Antes os alunos respeitavam! O problema é que essa geração é difícil mesmo.”
E o marido, Seu João, engrossa o coro:
— “É culpa da internet! Esses meninos não tomam sol, não sobem em pé de goiaba, não tomam banho de rio… Por isso estão tudo assim, elétricos!”
Mas, ironicamente, é ele quem, no domingo, liga a TV e passa o dia reclamando da vida e do governo, enquanto o menino tenta vencer o chefe final do jogo.

Capítulo 3: A Pedagogia da Culpa

E assim, nasce e cresce a pedagogia da culpa.
Um jogo de empurra que faria inveja a qualquer campeonato de vôlei:

Os pais culpam a escola (“Esses professores não têm vocação!”).

A escola culpa os pais (“Esses meninos vêm de casa sem limite nenhum!”).

O governo culpa o sistema (“Falta verba, falta estrutura, falta tudo!”).

E o professor… ah, o professor carrega a cruz, o pincel, o diário e o trauma coletivo.

No fim das contas, o único que não é ouvido é justamente quem deveria estar aprendendo.
E Pedrinho cresce achando que o mundo gira em torno do seu humor do dia.
Se tá feliz, estuda. Se tá cansado, o professor é chato.
Se tirou nota baixa, a culpa é da escola, do trânsito, da lua cheia ou do cachorro que latiu na madrugada.

Capítulo 4: A Vida como Ela É (no Tocantins)

O cenário é comum em qualquer cidade: o calor é de 40 graus, o ventilador gira cansado, e o professor tenta explicar a tabuada pra uma turma que acha que 3×7 é uma pegadinha.
No grupo de WhatsApp, Marta envia um áudio:
— “Gente, vocês acham que dá pra processar a escola se meu filho não aprender? Porque ele estuda tanto no celular…”
O grupo explode em risadas, figurinhas e indignação.

E o que ninguém percebe é o verdadeiro retrato dessa geração: pais cansados, filhos hiperconectados, professores exaustos e um país tentando educar com Wi-Fi instável.

Capítulo 5: Entre a Tela e o Espelho

O problema é mais profundo do que parece.
A terceirização da criação não é só física — é emocional.
Os pais amam, mas não estão.
Os filhos vivem cercados, mas sozinhos.
E a escola tenta preencher o vazio, mas sem ferramentas nem tempo.

A gente quer formar cidadãos conscientes, mas entrega o controle remoto antes da consciência.
Quer que aprendam a respeitar, mas não damos exemplo.
Quer que valorizem o estudo, mas reclamamos do trabalho.

E no fim, a culpa é sempre um Wi-Fi invisível que conecta todo mundo e resolve nada.

🔚 Epílogo: O Espelho da Culpa

No Tocantins, no Brasil, e em qualquer canto do mundo, educar sempre foi uma tarefa compartilhada — mas nunca terceirizada.
Hoje, confundimos “terceirizar” com “transferir responsabilidade”.
E o resultado é uma sociedade cheia de diplomas digitais e vazia de humanidade.

Talvez ainda haja tempo de desligar o roteador, olhar no olho e ensinar o que nenhum algoritmo sabe: empatia, limite e amor.

Mas, até lá, seguimos todos tentando, enquanto culpamos alguém por não conseguir o que a gente mesmo deixou escapar.

 E você, quando foi a última vez que educou — de verdade — sem culpar ninguém?