Meritocracia: o santo milagreiro que nunca fez milagre

21 setembro 2025 às 16h15

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Por: Fernando Maciel Vieira
Dizem por aí que “quem quer, consegue”. Que “o segredo é esforço”. Que “o mérito é de quem batalha”. Pois olhe, se fosse assim, meu avô, que passava o dia de sol a sol na enxada, já era para ter virado dono de usina. Mas o que ele conseguiu foi coluna torta, calo na mão e aposentadoria que mal paga o remédio para pressão. O mérito, pelo visto, só funciona pra quem já nasce com a sombra da mangueira pronta para descansar.
A tal meritocracia virou o santo milagreiro da modernidade. Todo político adora rezar para ela: “estudem, trabalhem, se esforcem que um dia vocês chegam lá”. Mas nunca dizem onde é esse “lá”, nem mostram o mapa do caminho. Como lembra Pierre Bourdieu (1979, La Distinction), a escola, que deveria ser o grande elevador social, na verdade é a máquina que reproduz a desigualdade, porque cobra do aluno pobre aquilo que só o rico já tem de berço: capital cultural, rede de apoio e tempo livre para estudar sem ter que trabalhar de entregador de aplicativo.
E aqui no Brasil, a meritocracia ganhou sotaque ainda mais cruel: ela se mistura com o racismo estrutural. Florestan Fernandes (1978, O negro no mundo dos brancos) já denunciava que, depois da abolição, o negro não recebeu terra, nem escola, nem reparação. Recebeu foi a ordem de “se virar”. E até hoje, quando um jovem negro não consegue entrar na universidade, dizem que “faltou esforço”. Como se o mérito fosse uma corrida justa, quando na verdade uns largam da linha de chegada e outros, do fundo da ribanceira.
Frantz Fanon (1961, Os condenados da terra) lembrava que o colonialismo não acaba na independência: ele continua na forma de desigualdade, exclusão e hierarquia de cor. No Brasil, isso se traduz na ideia perversa de que se o negro não ascende, é porque não se esforçou. É o que Angela Davis (1981, Women, Race and Class) chama de cortina ideológica: a meritocracia funciona como maquiagem, cobrindo o rosto feio da desigualdade.
E aí, quando o povo começa a desconfiar que o jogo tá marcado, o que acontece? Crise na democracia. Porque democracia de verdade precisa dar chance igual, mas quando a meritocracia é usada como desculpa, o que temos é uma democracia cenográfica, que funciona bem na propaganda de TV, mas não na vida real. Como dizia Darcy Ribeiro (1995), “a educação brasileira é feita para não dar certo”. Porque se desse, ia abalar o trono dos que sempre mandaram.
No fundo, meritocracia é igual piada de mau gosto: só ri quem já tá sentado na parte de cima da mesa. O pobre, o negro, o favelado, o indígena, esses ficam sempre com o prato vazio e ainda escutam sermão sobre “falta de mérito”. É como dizer para peixe competir com pássaro em campeonato de voo: a derrota já vem no regulamento.
E se alguém ainda acha exagero, basta olhar os dados: mobilidade social no Brasil é quase tão rara quanto chuva no mês de agosto no sertão. O IPEA (2023) já mostrou que quem nasce pobre tem mais de 70% de chance de continuar pobre. Ou seja, o mérito até pode existir, mas só se for no campo do futebol ou no palco de reality show. No resto, é ladeira abaixo.
Enquanto isso, a elite repete o mantra: “se esforcem que vocês conseguem”. E, claro, eles aplaudem, porque quanto mais acreditamos no mérito, menos questionamos os privilégios. É como diz o ditado: “cabra marcado não escapa da cangalha”. E a cangalha aqui é o sistema, que bota peso nos ombros de uns e sela de ouro nos de outros.
Bauman (2000, Modernidade líquida) dizia que vivemos em tempos líquidos, onde tudo muda rápido. Mas, no Brasil, a única coisa sólida mesmo é a desigualdade. Ela não derrete, não esfarela, não se desfaz. E para justificar esse bloco de concreto, inventaram a lenda do mérito. Lenda boa, viu? Porque faz o pobre acreditar que a culpa da própria pobreza é dele mesmo.
E aqui eu me lembro do meu tio Zé, que sempre dizia: “quem nasce para tamborim nunca vira zabumba”. Ele falava rindo, mas no fundo era uma análise sociológica digna de tese. Porque, no Brasil, a estrutura social tá montada justamente para que o tamborim nunca vire zabumba. E se um ou outro consegue subir, logo vira vitrine, prova viva de que “o sistema funciona”. Mas não se engane: a exceção só existe para confirmar a regra.
E aí, minha gente, fica a pergunta que não quer calar: até quando vamos aplaudir esse teatro? Até quando vamos acreditar que basta estudar, rezar e trabalhar que o mérito chega, quando sabemos que o jogo é desigual desde a largada? Democracia sem igualdade real é como carro sem roda: até tem motor, mas não sai do lugar.
No fim das contas, a meritocracia é igual reza de beato preguiçoso: fala bonito, mas não muda a vida de ninguém. É um santo milagreiro que nunca fez milagre.
E você, leitor, vai continuar acreditando nessa ladainha ou vai ter a coragem de perguntar quem foi que inventou essa missa e por que sempre tem gente de joelho e outros de batina?