Em um mundo cada vez mais conectado, onde muitas vezes levamos — literalmente — o trabalho para casa por meio de nossos smartphones, a separação entre vida pessoal e profissional se torna cada vez mais difícil de distinguir. A série da Apple TV+ Ruptura (Severance, no original) explora essa questão ao extremo. Na obra, somos apresentados à Lumon, uma empresa que oferece a seus funcionários um peculiar plano de trabalho: uma cirurgia cerebral capaz de dividir a mente em dois polos, garantindo que o empregado só se recorde do expediente enquanto está dentro da empresa — e, ao sair, sua vida profissional simplesmente desaparece de sua memória.

A ideia de “esquecer” o trabalho e simplesmente desligar o cérebro dos problemas profissionais é tentadora. No entanto, a própria série já começa instigando um certo temor, ao nos apresentar Helly R., deitada em uma mesa de escritório. Embora consciente e articulada, ao ser questionada sobre quem é, ela não consegue responder, indicando que o processo de ruptura foi bem-sucedido. Nesse contexto, o “Interno” (como é chamada a parte do cérebro que trabalha) não possui outra saída, estando à mercê do “Externo” (quem vive fora da empresa), que se torna praticamente seu dono. O episódio inicial já traz esse dilema: “Estou aqui trabalhando para quê?” O próprio trabalho é um mistério que ainda deve ser desvendado nas próximas temporadas.

Quando finalmente saem da empresa, os funcionários não se recordam do dia de trabalho | Foto: Divulgação AppleTV

Trazendo um pouco de conceitos filosóficos para a questão podemos dizer mesmo que, fora do mundo distópico e ficcional da série, nossa persona, que trabalha, cumpre uma carga horária de trabalho, o faz para suprir uma outra parte de nós mesmos, que muitas vezes sequer aproveita esse sacrifício. Extrapolando isso, temos também a própria família, onde os pais cedem parte de seus recursos para prover uma nova vida. Um trabalho por vezes inglório. 

Aristóteles considerava o trabalho algo vil, capaz de oprimir a inteligência. Dizia que quem só tinha membros e corpo a oferecer estava condenado à escravidão, visto que a maioria dos trabalhos da época — e o próprio conceito de trabalho — eram dissociados do uso das capacidades mentais. Platão já afirmava que cada ser humano nascia com disposição para alguma atividade. Confúcio ia além, dizendo que a escolha da profissão correta equivaleria a não trabalhar, frase muito utilizada por coachs hoje em dia. O espírito cristão foi além: Max Weber, considerado por muitos como o pai da Sociologia, disse que “o trabalho dignifica o homem”.

A dualidade entre o trabalho e a vida pessoal é muito bem trabalhada em Ruptura. Fora toda a questão filosófica que possa ensejar, dramas paralelos ocorrem em meio à tarefa dos quatro internos do Departamento de Refinamento de Dados — uma função enigmática, cuja finalidade permanece desconhecida tanto para os personagens quanto para o espectador.

Basicamente, o trabalho deles consiste em identificar sequências de números, sem compreender sua real importância. Essa falta de propósito tangível remete a um fenômeno muito presente no mundo corporativo: a alienação do trabalho, onde o funcionário executa tarefas que, muitas vezes, não compreende, e cuja relevância se perde na burocracia da hierarquia empresarial.

Essa sensação de inutilidade e repetição remete diretamente ao clássico Tempos Modernos (1936), de Charles Chaplin, onde o operário, reduzido a uma peça do maquinário industrial, é condenado a apertar parafusos incessantemente, sem jamais ver o produto final de seu trabalho. Em Ruptura, os funcionários da Lumon vivem uma versão contemporânea desse dilema: eles cumprem ordens, seguem processos sem sentido aparente e jamais questionam a finalidade real de suas funções — pelo menos até que alguns começam a despertar.

Tempos Modernos de Charles Chaplin | Foto: Divulgação

Se em Tempos Modernos Chaplin usava o humor e a sátira para criticar a mecanização extrema do trabalho, Ruptura aposta na tensão psicológica e na distopia corporativa, explorando até onde essa lógica pode chegar. O que começa como um experimento de separação entre vida pessoal e profissional logo se revela um verdadeiro aprisionamento, onde o “Interno” nunca descansa e o “Externo” se beneficia sem jamais enfrentar as consequências.

Esse cenário nos leva a uma reflexão sobre a fragmentação do indivíduo diante do trabalho. A promessa de um equilíbrio perfeito entre vida pessoal e profissional, oferecida pela Lumon, se revela um contrato perverso. Se por um lado o “Externo” pode viver sem o peso das responsabilidades do trabalho, por outro, o “Interno” existe apenas para trabalhar, sem memória de descanso ou vida social. Essa lógica impõe uma pergunta desconfortável: se um indivíduo só existe dentro do expediente, ele ainda é um ser humano completo?

Além disso, a série constrói uma crítica ao discurso corporativo moderno. A Lumon tem uma estrutura hierárquica rígida e um sistema de crenças que se assemelha ao fanatismo religioso. Os funcionários são constantemente incentivados a enxergar a empresa como uma entidade benevolente, enquanto seus superiores agem de maneira fria e calculista. O ambiente de trabalho é cuidadosamente desenhado para ser simultaneamente acolhedor e claustrofóbico — corredores longos e vazios, luzes brancas impessoais e ausência de janelas reforçam a ideia de aprisionamento.

Um dos setores da empresa é destinada a criação de cabras (ainda não revelado pra que servem) | Foto: Divulgação AppleTV

Enquanto o mundo real discute novas formas de trabalho, como a adoção do home office e a busca por modelos mais flexíveis, Ruptura leva essa discussão ao extremo, questionando se um dia a separação entre vida e trabalho pode se tornar algo literal. Se hoje já somos reféns das notificações, dos prazos intermináveis e da cultura da produtividade, o que nos impediria de aceitar uma solução como a da Lumon no futuro?

A série estreou em 18 de fevereiro de 2022, recebendo aclamação da crítica e conquistando uma base fiel de fãs. No entanto, um hiato de quase três anos fez com que a espera pela segunda temporada fosse longa. Agora, Ruptura finalmente retorna, com novos episódios sendo lançados semanalmente na Apple TV+. O último episódio foi ao ar em 7 de fevereiro de 2025, e o próximo está programado para 14 de fevereiro, seguindo o cronograma de um capítulo por semana.

Apesar de cumprirem as ordens, os personagens não fazem a menor ideia de qual o objetivo de seu trabalho | Foto: Divulgação AppleTV

Além de um elenco muito habilidoso com Adan Scott interpretando o protagonista Mark Scout e Britt Lower a Helly R. uma das primeiras surpresas que temos ao acompanhar os créditos da série e o nome de Ben Stiller, famoso por atuar e dirigir filmes de comédia, ele assume a direção e a produção executiva da série criada por Dan Erickson.