O que começa como um caso isolado, um adolescente com autismo alvo de bullying em uma escola, em Palmas, logo se revela algo muito maior. As agressões, que chegaram ao ponto de colocarem fezes dentro da mochila de um estudante do Centro de Ensino Médio Tiradentes abriram investigação no Ministério Público do Tocantins (MPTO).

Relatos descrevem humilhações repetidas, omissão da direção e até professores que questionaram o diagnóstico do aluno. A promotoria quer entender possíveis falhas e que medidas precisam ser tomadas, além disso, também pediu à escola três datas para realizar atividades educativas, numa tentativa de transformar o caso em ponto de partida para debates sobre inclusão e respeito.

O episódio no Tiradentes não é uma exceção. Histórias semelhantes se multiplicam, narradas por famílias e profissionais que convivem com crianças autistas.

Uma jovem, contratada por uma clínica particular para acompanhar alunos neurodivergentes, preferiu não se identificar e relatou que precisou abandonar o trabalho em um Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) de Palmas após apenas dois dias, enquanto acompanhava uma das crianças matriculadas na unidade:

“No primeiro dia já presenciei uma cena horrível de uma das professoras puxando uma criança pelo braço, porque ela queria um brinquedo e não era o horário. Essa criança também era autista. Quando a criança que eu acompanhava se desregulava, a professora pedia para eu retirar ela da sala, sempre com grosseria. Chegou a verbalizar que não tinha paciência para ‘aquele tipo de comportamento’”.

Outra voz, a de uma mãe, também em anonimato, confirma a falta de suporte dentro das escolas:

O meu filho tem direito a um acompanhamento, mas já fui diversas vezes à escola, procurei a prefeitura e mesmo assim não consegui. Sempre sou jogada de um para outro e é muito difícil, já falei com mães na mesma situação que eu, temos que ficar mendigando o que deveria ser básico para os nosso filhos e acontece bastante

A lei que existe, mas nem sempre chega à sala de aula

O promotor Sidney Fiori, da Infância e Juventude em Palmas, lembra que, em 2024, o bullying passou a ser tipificado como crime no Brasil. E alerta que, quando praticado por adolescentes, o ato é considerado infração: “Quando um adolescente pratica um crime, esse ato é considerado um ato infracional. Nesse caso, ele vai responder perante a Vara da Infância e Juventude, onde podem ser aplicadas medidas socioeducativas. Essas medidas podem variar: desde as de meio aberto, como prestação de serviço à comunidade ou liberdade assistida, até, em última instância, as de meio fechado, como semiliberdade e internação.”

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Sidney Fiori | Foto: Reprodução

Mas, segundo ele, a lei não se resume à punição:

É de responsabilidade do poder público desenvolver protocolos de proteção à criança e ao adolescente. Isso inclui capacitação continuada dos professores e medidas integradas com a comunidade em torno da escola. Caso esses protocolos ainda não existam, precisam ser criados

O que dizem as escolas

Em nota, a Secretaria da Educação afirmou que não foi comunicada oficialmente sobre o novo procedimento aberto em 2025 do estudante do Centro de Ensino Médio Tiradentes . Disse, porém, que já havia tomado providências em 2024: remanejamento dos agressores para outros turnos e atendimento domiciliar ao aluno. Segundo a pasta, o estudante concluiu o ensino médio sem novos registros de violência.

A Seduc acrescentou que mantém ações permanentes de prevenção ao bullying e promoção da inclusão, em parceria com comitês de segurança escolar e profissionais da área.

A rede municipal também destacou que conta com atendimento pedagógico multiprofissional especializado, com 89 professores atuando nas salas de recursos em unidades de ensino e acrescentou que está ampliando o número de salas multifuncionais para atender a crescente demanda, após análise realizada no primeiro semestre.

A implantação de novas salas está prevista ainda para este segundo semestre. Segundo a secretaria, não há necessidade de novas contratações, já que o último concurso ofertou vagas para profissionais da educação especial, que estão em processo de posse.

Por fim, a pasta reforçou que funções de cuidadores e professores especializados são distintas: enquanto os cuidadores auxiliam na locomoção, higienização e alimentação, os professores das salas de recursos atuam no campo pedagógico, com atendimento adequado e individualizado.

O peso psicológico

Mas mesmo concluindo a trajetória escolar, traumas emocionais ainda podem persistir. A psicóloga Larissa Ferreira Nogueira explica por que o bullying é especialmente devastador para estudantes com TEA:

Quando a violência é direcionada a crianças e adolescentes com autismo, os impactos costumam ser ainda mais intensos. De modo geral, pessoas dentro do espectro apresentam maior sensibilidade a estímulos emocionais e sociais, e muitas vezes têm dificuldade em compreender a intenção do outro, interpretar expressões faciais ou ironias e lidar com mudanças inesperadas nas interações. Por isso, quando sofrem bullying, seja físico, verbal ou até silencioso, como o isolamento, podem ter ainda mais dificuldades para entender o que está acontecendo.

Ela lembra que muitas dessas crianças e adolescentes podem apresentar comportamentos de alerta:

É comum observar impactos na autoestima, no desenvolvimento emocional, no desempenho escolar e até no desejo de socialização. Muitos passam a evitar o ambiente escolar, desenvolvendo um medo intenso, além de alterações no sono e na alimentação, sinais claros de que algo errado está acontecendo

O episódio investigado pelo MPTO é grave, mas talvez seu maior peso esteja na realidade que muitas vezes passa despercebida: a escola, lugar de aprendizado e socialização, pode se transformar em território hostil para crianças e adolescentes que mais precisam de proteção.

Enquanto isso, mães continuam batendo em portas em busca de apoio, profissionais se sentem impotentes diante do preconceito, e estudantes autistas enfrentam uma violência silenciosa.