No portão simples de uma casa alugada na região norte de Palmas, o som dos latidos se mistura ao barulho da água e do rodo arrastando pelo chão. É manhã, e a rotina no abrigo coordenado por Raquel Scarparo, protetora de animais há seis anos, já começou. “A gente chega, dá ração, repõe a água, dá medicação para quem precisa e só depois começa a limpeza. Vai até quase três e meia da tarde”, conta, enquanto observa um dos cães correr entre as baias.

O abrigo abriga cerca de 25 cães, entre adultos e filhotes. Tudo começou em 2019, quando Raquel e sua família decidiram transformar a paixão pelos animais em ação. “Meu filho entrou na faculdade de veterinária, e eu já conhecia algumas protetoras que estavam passando dificuldade. Elas precisavam de um lugar para os cães, e a gente decidiu alugar esse espaço e montar as baias”, lembra.

Baias dividem cachorros de acordo com necessidades e tamanhos | Foto: Júlia Carvalho/Jornal Opção Tocantins

O que era para ser apenas um abrigo temporário se transformou em uma missão de vida. “As outras acabaram saindo, e eu fiquei. Desde então, tomo conta praticamente sozinha”, diz, com um sorriso que mistura orgulho e exaustão.

Apesar de ser empresária, Raquel dedica boa parte dos dias ao canil. O marido e o filho ajudam como podem, o filho, veterinário, cuida das consultas e vacinações. Mas o trabalho é voluntário e pesado: feiras de adoção aos sábados, campanhas nas redes sociais, pedidos de ajuda e rifas para custear as despesas. “Um saco de ração de dez quilos dura um dia. Só de ração, medicação e produtos de limpeza, o gasto é enorme. E a gente tira do bolso quando a ajuda não vem.”

Raquel conta que os gastos com ração então entre os mais altos | Foto: Júlia Carvalho/Jornal Opção Tocantins
Raquel também organiza sessões de fotos para os cães que estão para adoção, como forma de chamar atenção de possíveis tutores | Foto: AdotaPets

Hoje, o abrigo funciona com apenas duas voluntárias fixas, que se revezam entre os turnos da manhã e da tarde. Cada limpeza leva quase o dia inteiro. Aos domingos, elas pagam uma pessoa para ajudar na limpeza, já que é o único dia em que as voluntárias tentam descansar um pouco. “Mesmo assim, não tem pausa de verdade. Sempre tem um cão doente, uma visita, uma mensagem pedindo socorro. É uma rotina que não para nunca.”

O apoio do poder público, por muitos anos, foi inexistente. “Antes da criação da Secretaria de Bem-Estar Animal, nunca recebemos nada. Nem um saco de ração, nem uma castração”, lembra. Agora, com a nova gestão, Raquel afirma perceber avanços. “Já fizemos feiras juntos, conseguimos algumas castrações. Ainda é o começo, tudo muito inicial, mas a gente está confiante.”

Os cachorros idosos sempre são os que sobram em meio aos que são adotados rapidamente, como filhotes | Foto: Júlia Carvalho/Jornal Opção Tocantins

Mesmo assim, a situação financeira é delicada. O abrigo pode encerrar as atividades no início do próximo ano. “A gente vai tentar doar o máximo possível de cães até lá, mas não sabemos o que vai acontecer. Pode ser o fim de um ciclo depois de seis anos.”

Os três cachorros fazem parte de uma ninhada que foi abadonada e resgatada por Raquel | Foto: Júlia Carvalho/Jornal Opção Tocantins

Pessoas que adotam e depois abandonam

Entre as dezenas de histórias que ela carrega, uma que aconteceu recentemente foi até publicada no instagram do abrigo, Snow, um pequeno cão branco, foi resgatado por Raquel em situação grave. “Eu cuidei dele por dois anos. Medicação, banho, tosa, alimentação especial. Até que ele ficou lindo, saudável, e conseguimos uma adoção para um casal da região sul”, conta.

Raquel costuma acompanhar todas as adoções de perto, mantendo contato com as famílias. Mas, com o tempo, percebeu que algo não ia bem. “Eles começaram a evitar mensagens, davam algumas desculpas, até que alguém postou nas redes sociais dizendo que um cachorro estava perdido em um ponto de ônibus. Fui até lá e encontrei o Snow irreconhecível: cheio de larvas, fraco, com o olhar apagado.”

Ela respirou fundo e resgatou o cão de volta, Snow precisou ser completamente tosado foi para uma clínica veterinária, onde ainda se recupera.

Raquel fala sobre o julgamento que os protetores sofrem. “Tem gente que quer denunciar a gente por ‘vender cachorro’”, lamenta. Na verdade, o que muitos chamam de venda é apenas o custeio mínimo para garantir que o animal vá para um lar com saúde e segurança.

Esses valores, referentes à castração, vermífugo, vacinação e microchipagem, são repassados diretamente aos parceiros responsáveis pelos procedimentos, como as lojas Petz e Cobasi, que mantêm convênios com os protetores. “Não é lucro, é garantia de cuidado. São custos que qualquer tutor responsável precisa ter, e muitos pagam com alegria porque sabem que estão adotando um animal já tratado e protegido”, explica.

Raquel reforça que todo o trabalho é voluntário. “A gente não ganha nada com isso. Pelo contrário, paga pra continuar ajudando. O que dói é ver gente julgando sem saber o quanto custa salvar uma vida.”

O abrigo também conta com cães com necessidades especiais | Foto: Júlia Carvalho/Jornal Opção Tocantins

A protetora defende que a adoção deve ser um ato responsável, não impulsivo. “Ter pena não tira animal da rua. A solução é a castração, é a conscientização. As pessoas precisam entender que cuidar de um animal é um compromisso, não uma emoção passageira.”

O caso de Snow é um retrato doloroso da irresponsabilidade disfarçada de boa intenção. “As pessoas acham que estão fazendo um favor quando adotam, mas adoção não é caridade, é compromisso. E quando esse compromisso é quebrado, quem paga o preço é o animal, que sente, que adoece, que espera”, desabafa Raquel.

Apesar das dificuldades, desistir não é simples. “A gente pensa em parar, todo protetor já pensou. Mas basta olhar pra eles… não dá. Eles precisam da gente.”

Este é Snow após ser resgatado e cuidado por Raquel, quando foi adotado por um casal | Foto: Arquivo Pessoal
Snow, atualmente sob cuidados veterinários, precisou ser totalmente tosado após sofrer uma série de complicações decorrentes do abandono depois de ser adotado | Foto: Arquivo pessoal

A causa dentro dos muros da universidade

Em outro canto da cidade, dentro do câmpus da Universidade Federal do Tocantins, o trabalho da Comissão de Saúde e Bem-Estar Animal (COSBEA) mostra que a causa animal também é um tema acadêmico e social. Criada para lidar com o problema de abandono de cães e gatos dentro da universidade, a COSBEA atua com professores, técnicos e voluntários.

Momentos de cuidados com o cachorros Buddy, encontrado no campus debilitado | Foto: Redes Sociais/Cosbea

“A comissão surgiu para tomar medidas diante dos animais abandonados no câmpus, combatendo maus-tratos e promovendo a conscientização”, explica Mariana Almeida, eleita vereadora em Palmas com a bandeira da causa animal, conhecida como MaryCats, é também fundadora da comissão. O grupo se divide entre ações de castração, campanhas de adoção e atividades educativas. “O abandono diminuiu depois das campanhas e dos vídeos de conscientização. Colocamos até uma placa na entrada da UFT lembrando que abandonar animais é crime, com pena de multa e reclusão”, diz.

As dificuldades, porém, são parecidas com as dos abrigos independentes. “A parte financeira é o maior desafio. Temos que arrecadar para custear ração, castração, procedimentos veterinários. E ainda há a dificuldade de adoção, os animais são muitos, e nem sempre encontramos lar para todos.”

Campanhas são feitas com frequência para a causa | Foto: Redes Sociais/Cosbea

Para MaryCats, a causa animal vai além do cuidado com os bichos. “É uma questão de saúde pública. Cuidar deles é cuidar da gente. Quem adota, melhora a saúde mental, diminui ansiedade e depressão. Animais soltos nas ruas também representam risco de acidentes e refletem na organização urbana.” Ela lembra ainda que a proteção animal se conecta com a luta contra a violência. “Existe a teoria do elo: quem maltrata um animal, pode maltratar uma criança, um idoso, uma mulher. A causa animal é também uma causa humana.”

Mariana Almeida e seu gabinete | Foto: Divulgação

Esperança ainda é o que sustenta

A rotina dos protetores de animais em Palmas se revela como uma das mais invisíveis e necessárias. São pessoas que trabalham além do horário, do cansaço e, muitas vezes, das condições financeiras, sustentadas apenas pela fé no que fazem.

“Nosso trabalho é árduo, e nem todo mundo entende. Já ouvi amigos perguntando por que faço isso se não ganho nada”, diz Raquel. “Mas é amor, é responsabilidade. E o que eu desejo é que as pessoas aprendam a respeitar mais a vida, de qualquer forma que ela se apresente.”

Contatos para adoção podem ser feitos via Instagram @adotapetss | Foto: Júlia Carvalho/Jornal Opção Tocantins