Diego Panhussatti: “A população negra foi empurrada para favelas, morros e zonas rurais sem titularidade”
23 novembro 2025 às 08h00

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O debate sobre igualdade racial ganha força no Mês da Consciência Negra, e no Tocantins ele passa, inevitavelmente, por quem acompanha essa pauta de perto há anos como o advogado Diego Panhussatti.
Formado em Direito pela Universidade Federal do Tocantins, ele articula sua experiência institucional e sua trajetória dentro dos movimentos sociais para discutir os desafios da população negra no estado, especialmente no campo do acesso a direitos e da garantia de políticas públicas.
A seguir, ele fala sobre identidade racial, saúde mental, território, juventude e as particularidades do Tocantins nesse debate.
Para começar: antes mesmo do Direito ou da justiça, como nasceu em você essa inquietação e essa consciência racial?
A UFT foi decisiva nessa construção. O Tocantins é um estado majoritariamente negro, cerca de 70% da população se declara parda ou preta, mas por conta do processo de miscigenação, muitos jovens negros não se reconhecem como tal ou não veem isso como um elemento importante da identidade.
Eu fui o primeiro jovem da minha família a entrar na universidade, então fui o primeiro jovem negro a adentrar e me formar. Hoje não sou mais o único, tenho um primo cursando, mas naquela época isso tinha um peso grande.
E foi no movimento estudantil que eu encontrei esse espaço de pensar a sociedade, entender nosso lugar e nosso papel enquanto cidadãos. Ali também fui apresentado ao movimento negro enquanto movimento social organizado, que identifica os problemas da sociedade a partir da questão racial, combate o racismo e busca a promoção da igualdade racial.
Dentro da universidade, conheci o coletivo Enegrecer, onde atuo até hoje. Sempre brinco dizendo que “deixei de ser moreno para me tornar um homem negro”, porque esse processo envolve abandonar essa camada de negação, ressignificar a própria identidade racial e se afirmar como negro.
A escolha pelo Direito veio muito por pressão familiar, mas eu sempre tive a busca pela justiça como horizonte. Só que antes de atuar no sistema de justiça, a experiência era muito técnica e a letra da lei, sozinha, não me interessava tanto quanto promover acesso real à justiça. Durante a faculdade, foram os movimentos políticos que me deram ânimo para concluir o curso.
No Tocantins existe uma questão particular sobre identidade racial? Como você percebe isso?
O primeiro elemento que identifiquei foi justamente a dificuldade de reconhecimento racial. Em estados como Rio de Janeiro ou Bahia, por questões culturais, há mais tranquilidade para se identificar como negro. Aqui, por causa da miscigenação, que o movimento negro denuncia há décadas, isso não acontece com facilidade.
Na Defensoria Pública, onde atuamos voltados ao acesso à justiça das coletividades, acompanhamos trabalhadores rurais sem terra, comunidades quilombolas e outras comunidades tradicionais. E é inevitável reconhecer que a maior parte dessas comunidades é composta por famílias negras, tanto as quilombolas, que já têm origem negra, quanto muitas não quilombolas, que também são famílias negras rurais.
Nos atendimentos, especialmente diante dos conflitos agrários, eu vejo muito da história da minha própria família. A população negra, após a escravidão, não recebeu nenhuma política de reparação. A Lei de Terras impediu o acesso à propriedade a quem não tinha alfabetização, justamente a população recém-liberta.
Sem terra e sem educação, a população negra foi empurrada para favelas, morros e também para zonas rurais sem titularidade. Minha família é um exemplo: meus avós e tias eram sem terra, foram expulsos, chegaram a ocupar o antigo lixão do município porque ninguém incomodava. Só tiveram regularização fundiária décadas depois.
A minha geração é a que mais tem tido acesso a direitos. A anterior não teve educação como deveria; e a dos meus avós, menos ainda, vidas marcadas por muito trabalho e pouca garantia de direitos.
No campo, além da questão fundiária, o acesso a políticas públicas é muito precário: educação rural inferior à urbana, dificuldades no atendimento à saúde, mulheres parindo em carrocerias, falta de energia elétrica ,muitas famílias ainda vivem à base de lamparina. São situações desumanas, invisíveis para quem vive no contexto urbano.
O movimento negro debate muito a questão da identidade. Como você vê isso hoje?
O movimento negro, enquanto movimento social, acadêmico, cultural e quilombola, ainda não tem consenso sobre o uso do termo “pardo”. Há quem veja o termo como indicador útil para políticas públicas e há quem o considere uma violência racial. Outros defendem que todos deveriam se autodeclarar pretos. É uma pauta em constante debate.
Também há divergências sobre colorismo. Alguns militantes acreditam que no Brasil existe, sim, uma gradação de experiências a partir do tom da pele, como nos EUA; outros defendem que, aqui, essa lógica não se aplica da mesma forma.
No Tocantins, condenamos a miscigenação não pelo fato de ela existir, mas pela origem violenta desse processo: a escravidão e, especialmente, as violências sexuais sofridas por mulheres negras. Essas relações originaram crianças mais claras, com menos fenótipos negros, que por consequência do racismo tinham mais acesso. Isso iniciou um processo de apagamento da identidade.
Depois, no século XX, o Estado brasileiro adotou políticas eugênicas, como a imigração europeia em massa, para “embranquecer” a população. A miscigenação foi usada como ferramenta de extermínio simbólico da população negra.
Esse apagamento persiste. Até hoje, quando querem elogiar uma pessoa negra, evitam dizer “negro” ou “preto”, usando “moreno”. Mas em situações de conflito, o ataque racial é direto: vira “preto”, aí com carga pejorativa. O problema nunca é a palavra, mas a intenção racista que a sociedade ensinou.
Por isso insistimos na reafirmação da identidade negra.
Você transita pelo Direito, pela militância e pela Defensoria. Como essas frentes dialogam no seu cotidiano?
A Defensoria é um espaço muito aberto para quem tem sensibilidade social. Ela não é imparcial como Judiciário ou Ministério Público, ela tem lado, o lado dos vulnerabilizados. Então toda tese que defenda grupos vulneráveis é passível de atuação.
O principal acúmulo que obtive na Defensoria foi a presença em territórios quilombolas. O Tocantins tem mais de 53 territórios certificados, mas apenas um titulado, a Ilha de São Vicente, em Araguatins, e isso só ocorreu porque era uma ilha já demarcada, sem proprietários privados a indenizar.
Muitas comunidades estão há 100, 200 anos no mesmo território e, de repente, são surpreendidas por reintegrações de posse de fazendeiros que nunca pisaram lá, ou herdeiros que moram em outros estados. Essas famílias não sabem viver fora daquele lugar onde nasceram, onde avós e pais estão enterrados.
Acompanhar isso de perto, ver que injustiças tão antigas seguem acontecendo, reafirma que a luta vale a pena. E nos ajuda a enfrentar a lógica dominante, que sempre coloca o agronegócio como única via de desenvolvimento. As comunidades tradicionais convivem com a natureza há séculos sem destruí-la, mas raramente têm sua importância reconhecida.
Sobre saúde mental: como você enxerga esse tema entre a população negra?
A saúde mental é um gargalo para toda a sociedade, mas os indicadores mostram que a população negra sofre de forma mais intensa. Homens negros, especialmente homens negros gays, são os que mais cometem suicídio. Idosos negros também apresentam índices altos, geralmente por questões financeiras, depois de uma vida inteira de trabalho sem conquistas materiais que deem segurança no fim da vida.
Para a juventude negra, os fatores são diversos: pertencimento, autoaceitação, aparência, aceitação da cor, primeiras experiências de racismo, que acontecem majoritariamente na escola. Racismo não tratado vira trauma. E trauma impacta autoconceito, autoestima e saúde mental.
Como militantes, somos vanguarda na denúncia disso. Não dá para tratar adoecimento mental como algo generalizado, existem especificidades raciais.
Recentemente, o SUS tem olhado mais para isso. Existem comitês de equidade, inclusive na Secretaria Estadual de Saúde, que promovem capacitação sobre como receber jovens negros, indígenas e outras populações racializadas. Antes, o acesso era quase impossível: você só chegava ao CAPS em crise. Hoje já há mais portas de entrada.
E como melhorar esse acesso?
A desburocratização é um começo. O jovem negro precisa ter acesso facilitado, porque a dificuldade cotidiana já é enorme. A terapia é fundamental, mas foi por muito tempo negligenciada.
Felizmente, cresce o movimento de decolonização da psicologia, buscando abordagens menos eurocêntricas e mais conectadas às subjetividades negras. Muitos profissionais negros têm criado consultórios sociais, com atendimentos online a preços acessíveis, 30, 50 reais, o que permite que mais pessoas tenham acesso. Conheço muita gente que só faz terapia hoje por causa disso.
E quanto aos avanços institucionais no Tocantins?
O Brasil tem avançado. Existe o Ministério da Igualdade Racial, e isso estimulou estados e municípios a criarem suas próprias secretarias de igualdade racial. No Tocantins, temos secretaria estadual e municipal. Isso sinaliza uma preocupação do Estado.
Mas há críticas: falta recurso. Muitas dessas secretarias são representativas, têm discurso, têm datas simbólicas, mas não têm orçamento para executar políticas efetivas. Ainda assim, é um avanço, e precisamos garantir sua continuidade.
Outra crítica importante é a omissão dos estados na regularização fundiária quilombola. A responsabilidade é tripartite, União, estados e municípios, mas quase todos se omitem, inclusive o Tocantins. Isso deixa tudo nas mãos do Incra, que tem dificuldades estruturais, falta de servidores, lentidão nos laudos antropológicos e dificuldade para indenizar proprietários.
Quando o estado tem lotes dentro de territórios quilombolas, ele regulariza para as famílias, mas faz isso como lotes individuais, não como titulação coletiva, o que não resolve o problema. Falta uma política efetiva, e isso ainda é um grande entrave.
