Entre o jatobá e o baru, mulheres do Jalapão transformam frutos do Cerrado em sustento, cultura e futuro

08 junho 2025 às 15h31

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Por trás dos pães de jatobá e biscoitos de baru vendidos em feiras locais no coração do Tocantins, há muito mais que ingredientes do cerrado. Há uma história de resistência, inovação e empoderamento feminino, liderada por mulheres que decidiram transformar o que antes era apenas alimento para suas famílias em fonte de renda, cultura e autonomia.
Quem conta essa história é Raquel Pinheiro, vice-presidente da Associação Mulheres Unidas do Jalapão. Fundada em 2007, a associação surgiu a partir da união de mulheres assentadas da reforma agrária nos assentamentos Santo Onofre e Santa Tereza, no município de Ponte Alta. Diante da longa espera pela regularização das terras, elas encontraram no empreendedorismo uma forma concreta de resistência e geração de oportunidades.
O primeiro passo foi o artesanato, utilizando capim dourado e sementes do Cerrado. Com o tempo, o olhar se voltou também para os sabores da região.
Nós já morávamos na zona rural, já conhecíamos os frutos do Cerrado, já usávamos o barú, o jatobá, a mangaba nas nossas cozinhas. Por que não transformar isso também em fonte de renda?
A ideia ganhou força, e o grupo passou a se organizar com base em saberes tradicionais, respeito ao meio ambiente e uma lógica de cooperação. A transformação da produção doméstica em um empreendimento estruturado foi um desafio vencido com persistência e parcerias estratégicas.
Do quintal para a agroindústria
Sem estrutura adequada e equipamentos, a produção inicialmente era limitada. Mas, durante a pandemia, a associação conquistou apoio da União Europeia, via Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), e conseguiu construir a Agroindústria Mulheres Unidas. O espaço trouxe novas possibilidades, e também exigiu capacitação.

Com o apoio do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), as mulheres participaram de duas semanas intensas de oficinas com foco em panificação e manipulação segura dos alimentos. O Senar desenvolve iniciativas semelhantes em todo o Brasil, como o programa Juntos Pelo Agro, em parceria com o Sebrae, fortalecendo a gestão de pequenos empreendimentos rurais com base em capacitação e inovação.
Após esse processo, a associação conquistou o licenciamento municipal e, com apoio do projeto Elas Mais, certificou quatro produtos: pão de baru, pão de jatobá, pão de açafrão e biscoitos de jatobá e baru.

“A gente viu que dava certo. Já tínhamos o espaço, o conhecimento e, o mais importante, o orgulho de estar levando nossa cultura adiante com o sabor do nosso cerrado”, afirma Raquel.
Alimentar com cultura
Com o tempo, veio o entendimento de que alimento e cultura não se separam. E assim surgiu o projeto Sabores e Saberes do Jalapão, aprovado pela Lei Aldir Blanc via Secretaria de Cultura do Tocantins. A proposta une o trabalho das oficineiras com ações de mediação de leitura para as crianças. “Quando as mães estão na agroindústria, produzindo, uma companheira fica com as crianças na biblioteca, mediando leitura, organizando brincadeiras. Isso é cuidar da próxima geração também.”
A biblioteca mencionada é a única da Rede Vaga Lume em todo o Tocantins, instalada na sede da própria associação.
Ela é um orgulho pra nós. Recebemos livros de São Paulo, de uma ONG que leva literatura para os lugares mais distantes do Brasil.

Produção com valor agregado
Mais do que gerar renda, os alimentos produzidos pelas Mulheres Unidas são também um manifesto em defesa da saúde e do meio ambiente.
O jatobá, por exemplo, não precisa de açúcar. É ideal para combater anemia, bom para idosos, bom para crianças. E isso é importante num país onde o açúcar é um dos grandes vilões da saúde pública”, reforça ela. “A gente quer que as pessoas entendam que nossos produtos são ricos, naturais, respeitam o meio ambiente e têm origem. A origem importa.
A origem está no Cerrado, o segundo maior bioma brasileiro e também o que mais sofre com o desmatamento.
Quando a gente usa o jatobá, o barú, a gente protege a natureza. Ninguém vai querer queimar ou desmatar uma área da qual tira o próprio sustento.
A associação vende seus produtos em feiras e eventos como a Agrotins e, agora, também fornece para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), além de articular novos projetos com a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).

Economia solidária na prática
A estrutura da Associação Mulheres Unidas do Jalapão é guiada pelos princípios da economia solidária: autogestão, equidade, sustentabilidade e valorização do trabalho feminino.
Somos 35 mulheres no total. Destas, 20 estão ativamente produzindo nossos alimentos. E o que queremos agora é avançar. O próximo passo é criar um espaço físico, uma loja baseada nos princípios da economia solidária, respeitando o meio ambiente e os seres humanos. Nossa matéria-prima, os frutos, tem uma identidade importante. Eles são colhidos pelas mulheres com todo carinho. Têm um valor cultural, você não encontra em qualquer lugar, não é feito em qualquer padaria. A gente colhe, limpa, quebra, torra… e tudo isso respeitando o meio ambiente. É algo que se passa de geração em geração, para os nossos filhos, nossos netos, tudo com amor e carinho.

Mulheres que transformam
Histórias como a de Antonieta Rocha de Sousa, 42 anos, mostram o impacto concreto da associação:
No começo, a gente participou de capacitações, fizemos cursos… tudo em grupo, juntas, lá na agroindústria. Foi ali que surgiram as ideias. Uma ajudando a outra, aprendendo com responsabilidade, e hoje estamos firmes na produção. Minha vida mudou muito. Antes eu não tinha renda, dependia só do Bolsa Família e do salário do meu marido. Depois que comecei a produzir, passei a ganhar meu próprio dinheiro. As coisas em casa melhoraram. Dois anos atrás fiquei viúva, e foi a produção que me sustentou. Consegui dar conta dos meus filhos, comprar o que gosto, levar comida pra dentro de casa. Me envolvi tanto que até as dores da alma sumiram. Tem colega que fala de depressão, e eu digo: ‘Eu não tenho tempo pra isso!’. Lá, a gente trabalha, ri, se apoia. Só alegria. O que eu mais amo é fazer os biscoitos de jatobá e baru. E o pão de baru… ah, esse eu faço com muito gosto.

Deuzeli, 47 anos, também encontrou no trabalho com os frutos do Cerrado um novo sentido de pertencimento:
Por exemplo, o jatobá: a gente coleta ele no campo, beneficia, transforma em farinha. Depois embala, coloca o rótulo… e também usamos essa farinha para fazer pão, biscoito e até sorvete. Com isso, conseguimos agregar valor aos nossos produtos e levar uma renda a mais para dentro de casa. Isso fez muita diferença na minha família. Eu gosto mesmo é de fazer pão e biscoito de jatobá. E também usamos o baru, que é riquíssimo em ferro. Mas, pra mim, o pão e o biscoito são os preferidos de fazer.

Inova Cerrado: bioeconomia e futuro
Iniciativas como a da Associação Mulheres Unidas dialogam diretamente com o Inova Cerrado, programa do Sebrae em parceria com a Fundação de Amparo à Pesquisa do Tocantins (Fapt), voltado para o fomento da bioeconomia e inovação na região.
Com duração de um ano, o projeto oferece metodologia de ideação, capacitação, mentoria e redes de contato para transformar ideias sustentáveis em negócios viáveis, tudo com foco no bioma Cerrado e no fortalecimento do ecossistema local.
A iniciativa do Sebrae teve o objetivo de selecionar potenciais empreendedores, empresários e pesquisadores e oferecer capacitação e mentoria. E, além disso, contribuir na construção de uma rede de contato para ajudar os empreendedores no desenvolvimento do negócio para que eles tenham sucesso no mercado, explica Rogério Ramos, diretor técnico do Sebrae.
Para Adelice Novak, coordenadora estadual de Inovação do Sebrae, o impacto vai além da economia:
O grande impacto desse trabalho é formar uma nova geração de empreendedores comprometidos com um desenvolvimento mais sustentável, baseado na inovação e no uso responsável dos recursos naturais do Cerrado.

Identidade, renda e esperança
Com produtos certificados, apoio técnico e institucional, e um modelo baseado em cooperação e sustentabilidade, mulheres como Antonieta e Deuzeli não apenas produzem alimentos: elas cultivam novas perspectivas para si, para suas famílias e para o futuro do Jalapão.
Hoje, quando a gente vê nossos produtos com rótulo, código de barra e tudo certinho, dá um orgulho danado. Mas mais do que isso, dá esperança. Esperança de que as mulheres da zona rural, muitas vezes invisibilizadas, podem sim fazer a diferença, conclui Raquel.
