O sociólogo e jornalista Maurício Hashizume é professor efetivo da Universidade Estadual do Tocantins (Unitins), docente da Secretaria da Educação do Tocantins (Seduc) e da Uninassau Palmas, reconhecido por suas pesquisas sobre desigualdades sociais, cidadania global e processos decoloniais. Doutor em Sociologia pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, em Portugal, investigou temas como colonialidades, movimentos indígenas e interculturalidade.

Antes de ingressar na academia, atuou como jornalista em veículos como UOL, Carta Maior e Repórter Brasil. Em 2017, chegou ao Tocantins para atuar como professor substituto na Universidade Federal do Tocantins (UFT) e se fixou no mais jovem estado do país. 

Ativo no campo da pesquisa, ele integra o grupo de pesquisa Igualdade Étnico-Racial e Educação (IERE) da UFT, dedicado à investigação de práticas educativas decoloniais. Em entrevista ao Jornal Opção Tocantins, Hashizume aborda os desafios políticos, sociais e institucionais do Estado, que completa 37 anos, refletindo sobre instabilidade política, desigualdades históricas e o potencial do Tocantins para construir estratégias inovadoras que promovam equidade e justiça social. Ele destaca, ainda, a importância de transformar conhecimento acadêmico em ações concretas, impactando educação, políticas públicas e movimentos sociais.

Professor, o Tocantins convive há quase duas décadas com sucessivas crises políticas. Nesse período, nenhum governador conseguiu concluir um mandato completo de quatro anos. Essa instabilidade é fruto de características estruturais do Tocantins ou de desafios comuns a regiões ainda em consolidação? Afinal, o Estado já caminha para 37 anos e, de “jovem”, passou a adulto. Como o senhor interpreta esse cenário?

Tenho uma visão muito cética com essa ideia de juventude ou não juventude. Esse argumento é muito usado, inclusive, quando se analisa o Brasil como um todo, sob o rótulo de “democracia jovem”. Vejo isso, muitas vezes, como uma forma de camuflar ou de deixar de discutir questões estruturais, que estão na base da formação da sociedade. Não têm a ver apenas com a separação de Goiás, mas com processos de longa duração.

As características que marcam não só o Tocantins, mas também a sociedade brasileira como um todo, estão ligadas à condição de países colonizados. Esses países passaram por processos históricos que deixaram marcas profundas, que não são rapidamente superadas. Muitas vezes, o que se apresenta como solução acaba aprofundando determinados traços.

Por isso, não vejo a instabilidade política como algo específico do Tocantins, mas como parte de um padrão estrutural mais amplo. Também não considero algo que será resolvido com ações pontuais. É um processo longo.

Aqui, nós percebemos fortemente como as relações de poder são contínuas e não se rompem facilmente. Isso vale em termos de classe, de raça, de gênero e também em relação à sexualidade. Existe uma lógica profunda de exclusão, que se reflete em todos os campos, inclusive no institucional.

Não é que “o Tocantins não aprendeu a atuar na democracia”. Os problemas estruturais permanecem e geram instabilidade e desigualdade. Apesar das sucessivas trocas de governo, talvez as estruturas de poder tenham se mantido muito semelhantes. Enquanto não tivermos uma democracia mais profunda, qualificada e popular, que envolva de fato toda a população, continuaremos com esse cenário de aparente mudança, mas de manutenção estrutural.

Esses afastamentos deram continuidade a padrões históricos ou trouxeram mudanças? 

Eu acho que indicam manutenção do poder. Mas quando falamos em padrão, não se trata apenas da troca em si, do afastamento ou da não conclusão de mandato. É um padrão de grupos. A população do Tocantins é majoritariamente negra — 70% — e isso se reflete na representação política? Não. Assim como as mulheres, que também são maioria, mas não têm representação proporcional na política. Portanto, não é apenas a lógica da troca que importa, mas o padrão histórico, de longa duração.

Como avalia a construção da elite política tocantinense dentro desse panorama?

Não é um tema em que tenho estudos muito aprofundados, mas, de forma geral, o que se observa são muitos enfrentamentos entre grupos. Em termos de substância, no entanto, o que eles defendem é muito parecido. É por isso que vemos a recorrência de pessoas ou microgrupos circulando entre diferentes alianças. As aproximações e os afastamentos acontecem, mas os projetos de poder se assemelham bastante.

E de que forma o senhor acha que a Assembleia, o Poder Legislativo, contribui para fortalecer ou fragilizar essas instituições, diante da pouca representatividade de mulheres e negros que o senhor mencionou?

A minha análise é que eles são muito unidos, o que se aproxima dessa lógica de projetos semelhantes. A grande parte do Legislativo comunga do mesmo projeto. São raros os mandatos que propõem algo realmente diferente.

Apesar de haver diferenças, não se trata de oposição substantiva. Como essa proximidade é grande, a divisão entre os poderes acaba fragilizada. Embora haja enfrentamentos aparentes, quando olhamos os pontos cruciais, há muita coincidência.

No fundo, há mais confluência do que oposição. Isso faz com que tudo acabe sendo muito referendado, consensual, em vez de termos uma lógica de independência entre os poderes.

Isso significa que não há possibilidade de mudança? Não, é possível haver avanços, melhorias pontuais, lógicas de transparência. Não é uma coisa estática. Existem acompanhamentos, portais da transparência, fiscalizações. Mas é sempre bom lembrar que muitas situações não chegam a se tornar operações. Há muitas questões que não vêm à tona.

E como isso afeta diretamente a população, na sua análise?

Isso tem muitas implicações. Na educação, por exemplo, sabemos que a continuidade é fundamental: investimentos regulares, planejamentos de longo prazo. Mas quando há instabilidade política, tudo fica comprometido. Políticas em andamento podem ser paralisadas ou descontinuadas, mesmo quando já possuem planejamento consolidado.

Essa instabilidade afeta principalmente as políticas sociais, que têm impacto direto na população. Essas áreas precisam de estabilidade para gerar resultados melhores. O Tocantins ainda é empobrecido em políticas sociais. 

Na educação há programas de fortalecimento da educação, que apesar de críticas parecem estar funcionando. Mas na área social não vemos programas estaduais sólidos, como de habitação ou inserção no mercado de trabalho. Existem políticas de governo, mas não políticas públicas permanentes. Hoje, por exemplo, o IBGE aponta que o Tocantins tem cerca de 500 mil pessoas em vulnerabilidade social. Como resolver isso? 

Exatamente. É nesse sentido: precisamos avançar a partir de conquistas como o Programa de Fortalecimento da Educação (Profe). Fortalecer as condições de trabalho dos professores é uma base, mas não resolve tudo. Hoje mesmo há paralisação em torno do Plano de Cargos, Carreira e Remuneração (PCCR), outra questão importante.

Na área social em geral, haveria muitas possibilidades: habitação, saúde. Em qualquer pesquisa de opinião pública, a saúde aparece entre as maiores preocupações. Basta atravessar a rua e chegar ao Hospital Geral de Palmas (HGP) para ver as condições difíceis da rede pública.

Na universidade, trabalho uma disciplina de extensão sobre direito à moradia. E vemos que muitas vezes o planejamento de políticas públicas não gera justiça social, mas sim ainda mais exclusão. Ou seja, todas as ações do plano diretor de organização da sociedade, por exemplo, muitas vezes estão favorecendo a especulação imobiliária. 

O Estado, em vez de caminhar para a redução das desigualdades, acaba acentuando ou reforçando a lógica das desigualdades, então? E seguindo esse ponto: a criação de Palmas como capital planejada foi um desenvolvimento equilibrado ou aprofundou desigualdades regionais dentro do Tocantins? 

Quem anda por Palmas percebe essa lógica. Eu sempre falava isso para os meus alunos. Essa lógica foi reproduzida de outras capitais planejadas, como Goiânia e Brasília. Essas cidades mostraram que produziram muita desigualdade, reforçaram desigualdades. E Palmas, como nova capital planejada e organizada, acabou reproduzindo isso. Quem conhece minimamente Palmas sabe o quanto ela reforça essa lógica da segregação, da dificuldade de mobilidade social e urbana.

Mas, diante de tudo isso que o senhor falou, há esperança? Como o jovem pode buscar soluções ou novos caminhos? 

Eu acho que sim. Atuando no campo da educação e das universidades, acreditamos nessa luz no fim do túnel. Podemos construir, ainda que pouco a pouco, políticas e ações de redução das desigualdades.

Aí entra muito a lógica da educação antirracista, que temos trabalhado tanto no Ierê quanto na Seduc. Existem ações importantes nessa linha e já vemos avanços: hoje há discussões que antes não existiam. Isso já é um passo.

Também temos a discussão sobre economia solidária, sustentabilidade, consumo e formas de vida menos impactantes. Isso é mais debatido hoje do que no passado. A Conferência das Partes (COP) também traz oportunidades de ampliar esse debate, mas precisamos ir além, olhar para o dia a dia.

No Tocantins, o grande futuro está nas comunidades tradicionais e nos povos indígenas. O mundo inteiro está em busca de reconhecer isso, porque percebem que o futuro passa por aí. Só que isso ainda não é valorizado ou trabalhado como deveria.

Sempre digo: o Tocantins já salvou muita gente. Por que os quilombos estão aqui? Por que tantos povos indígenas se organizaram nesta região? Muitos fugiam das ações coloniais. Aqui já foi e pode ser um lugar de renascimento e fortalecimento.

Se buscarmos valorizar esses conhecimentos e formas de vida, chegaremos à conclusão de que o óbvio estava ao nosso lado. Em vez de pensar em soluções mirabolantes e distantes, podemos reconhecer que a continuidade de vida desses povos também serve para todos nós.

Por isso falo tanto da questão colonial. Precisamos sair da lógica da imposição ou do preconceito e entrar na lógica do reconhecimento real. Diante da emergência climática, o futuro está muito mais nesses povos do que nas referências tradicionais que usamos.

Acredito demais na educação. As universidades têm um papel enorme. Poderiam fazer muito mais. A APECOS – Associação De Pesquisa e Extensão Coletiva e solidária é iniciativa com professores das três instituições, por exemplo, é fruto dos professores, não de uma política institucional. Institucionalmente, não se pensa em algo nessa linha, por causa de agendas e prioridades diferentes. Mas buscamos ultrapassar essas barreiras.

É uma contribuição pequena, poderia ser maior, mas vai nessa linha: tentar dar esperança e construir um projeto diferente, que vá além da repetição de modelos já conhecidos.

Na verdade, existe uma espécie de necessidade de entender o que realmente o Tocantins é. É como se fosse olhar para o próprio espelho e valorizar aquilo que existe como vida dentro do Estado.

A partir dessa proposta, talvez sim, participar de fóruns, integrar redes. Isso já acontece, mas ainda de forma muito incipiente. E não é só no Tocantins. O próprio Brasil também passa por esse processo de tentar se entender melhor, de compreender sua própria história. Para quem trabalha com ciências sociais, é muito interessante perceber que ainda estamos descobrindo muita coisa sobre o processo colonial.

O Tocantins também é um lugar de encontro de muitas pessoas. Eu vivi isso quando morei em Brasília: lá também é um ponto de encontro. Aqui no Tocantins, chegam pessoas de várias regiões, com outras histórias e conhecimentos, que se somam ao que já existe. Isso pode produzir muitas coisas interessantes. Mas muitas vezes esse encontro é subaproveitado, preso a uma visão monolítica que não permite inovações.

Rodando pelo Estado, percebe-se essa diversidade. Há regiões com forte presença de migrantes do Nordeste, outras com pessoas vindas do Norte, do Sul, do Sudeste, e o Centro-Oeste, especialmente Goiás, é sempre uma referência. Isso poderia gerar muita coisa, mas ainda é pouco valorizado.

Então o Tocantins seria uma amostra grátis do Brasil como um todo?

Totalmente. É um lugar de renascimento, onde as pessoas se encontram para refazer a vida, criar novas possibilidades, às vezes até inesperadas.

Cheguei em 2017, defendi meu doutorado em 2020, e nesses oito anos tive experiências enormes, que inclusive dialogam com meu próprio estudo. Eu costumo dizer que tenho um “pós-doutorado da vida” a partir dessa vivência.

Isso tornou tudo mais complexo e também mais difícil, porque a academia às vezes se fecha em si mesma. É importante, mas falta conexão com o cotidiano, com a rua. A universidade ainda preserva certo isolamento, e esse é um desafio.

Nas minhas andanças pelo Tocantins, entre Cerrado, Amazônia, forte influência nordestina e a expansão da fronteira agrícola (Matopiba), aprendi muito na prática sobre o que estudava. Muitas coisas se confirmaram, outras não, mas isso foi apurando minha visão para poder fazer uma devolutiva maior.

O Tocantins condensa grandes desafios do Brasil. E há um ponto que vale lembrar: a questão ambiental. Ela aparece muito no marketing do Estado, mas se for levada a sério e planejada de forma menos concentradora, mais voltada à justiça social e ao atendimento da população, pode ser fundamental.

O Tocantins ainda guarda coisas que já não existem em outros lugares. É uma espécie de reserva. Pessoas vêm para cá atrás daquilo que perderam em seus locais de origem. Eu mesmo tenho aqui uma qualidade de vida que não teria em São Paulo.

Mas isso precisa ser organizado, com justiça social. Veja: falamos do Jalapão e lembramos das comunidades quilombolas. Falamos do Cantão e pensamos nas comunidades indígenas. A Ilha do Bananal também. Esses santuários foram preservados por esses povos, mas muitas vezes eles têm pouquíssima condição de aproveitar esse potencial. E não é só questão de recursos: é de valorização, de reconhecimento pleno da cultura.

Então, essa força ambiental do Tocantins não está apenas na natureza, mas nos povos que aqui vivem. Isso é enorme.

E se o Tocantins de fato trabalhar de modo que realmente valorize e pense nisso de forma estratégica, acho que temos muitas possibilidades. 

Vale a pena estar aqui?

Sim, vale muito a pena. É como eu estava dizendo, nesse aspecto pessoal eu sou muito agraciado por ter tido primeiro a oportunidade de vir para cá, porque às vezes a pessoa até tem a vontade, mas não tem a oportunidade. E eu, felizmente, tive a oportunidade de vir para dar aula na UFT. Vim como substituto, acabei ficando, formando uma nova família aqui e tendo um grande aprendizado.

E aí eu falo com total tranquilidade: às vezes a gente pensa que a pessoa vem com alta formação e só está trazendo as coisas para cá, e fica aquela lógica de “não deixar a pessoa ir embora para reter talentos”. Mas não é isso. As coisas já estão aqui também. Quem já está aqui também tem uma enorme formação, uma enorme experiência, que não representa só o Tocantins, mas o Brasil, a América Latina, o Sul Global. Essa lógica de imensas riquezas — não só econômicas — tem também um valor social extremamente elevado, e lida com desigualdades profundas ao mesmo tempo.

Então fica a questão: como dar a sua contribuição e aproveitar o que aprendeu para também fazer parte disso? Acho que o Tocantins é muito essa troca: a oportunidade de aprender, de pensar alternativas, de dar a sua contribuição.

E a questão do Estado novo, da capital nova, também favorece. Existem instituições no Tocantins, claro, mas não é como estar em um lugar com 400 ou 500 anos de história. Aqui os processos são mais recentes, e isso traz desafios, mas também a chance de construir propostas novas, que ainda não estão tão arraigadas ou inacessíveis.

Eu tive a oportunidade de viver em Portugal, por exemplo. A universidade em que fiz o doutorado foi fundada em 1290, 210 anos antes da invasão portuguesa ao Brasil. É muito tempo. E eu sou descendente de japoneses, que também têm tradições muito antigas. Comparado a isso, aqui temos muitas oportunidades.

A questão é construir algo que não reforce desigualdades nem exclusões, mas que valorize o que é mais justo. Hoje se fala muito em equidade, e isso é importante. Valorizar o futuro que está presente no território do Tocantins, mas que muitas vezes não é reconhecido.

Alguma questão que eu não tenha perguntado e que o senhor queira acrescentar?

Muito do que coloco aqui é fruto da convivência nesses espaços, dentro e fora da universidade, com colegas e parceiros da vida. Não é algo apenas pessoal. E, em algum momento, quem trabalha com universidade e pesquisa sempre tem essa vontade de transformar essas reflexões em um projeto mais efetivo, talvez uma pesquisa mais aprofundada. Eu faço parte de um trabalho com colegas de outros estados sobre o Matopiba, por exemplo. Mas ainda é algo inicial. Tenho colegas da UFT em Porto Nacional com quem converso muito sobre ciências sociais, e a ideia é produzir algo mais acadêmico no futuro.

O que compartilhei aqui foi em linhas mais gerais. Não tenho ainda um livro ou pesquisa específica publicada que sistematize tudo isso. Mas acho que era mais ou menos isso que dava para partilhar neste contexto.