Enquanto o país celebra o Dia das Crianças, os números do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025 expõem um cenário ainda preocupante: a violência contra crianças e adolescentes ainda é uma realidade presente no Tocantins. Os dados mostram que, embora o estado tenha uma das menores taxas de mortes violentas infantojuvenis do país, as ocorrências de violência doméstica, maus-tratos e abuso sexual digital estão em crescimento.

Segundo o levantamento, o Tocantins registrou, em 2024, uma taxa de 3,4 mortes violentas intencionais por 100 mil habitantes de 0 a 17 anos, abaixo da média nacional (4,6). A maioria das vítimas adolescentes foi morta em via pública, enquanto as crianças, em sua maioria, morreram em casa.

Por outro lado, os crimes não letais aumentaram, especialmente aqueles ligados à violência doméstica e psicológica, à discriminação familiar e à produção de material de abuso sexual infantil, que registrou alta expressiva também no estado.

“Violência psicológica tem crescido entre adolescentes”

A defensora pública Elisa Maria Pinto de Souza, coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Nudeca), afirma que o núcleo tem recebido casos de diferentes formas de violência e que a violência psicológica tem se tornado cada vez mais recorrente.

“Recentemente nós recebemos dois casos de violência psicológica encaminhados pelo Disque 100 e um caso que chegou até a Defensoria por e-mail. Todos eram adolescentes que sofriam violência psicológica da própria família, em razão da orientação sexual ou identidade de gênero, os pais e familiares muitas vezes não costumam aceitar muito bem.”, relata.

Defensora pública Elisa Maria Pinto de Souza | Foto: Divulgação

Segundo Elisa, o Nudeca atua de forma integrada à rede de proteção, realizando acolhimento inicial e encaminhamento aos órgãos competentes, como o Conselho Tutelar, o Ministério Público e a Polícia Civil.

“Nossa atribuição é acolher a vítima, fazer uma escuta especializada e encaminhar os casos dentro da rede de proteção. A ideia é que esse fluxo funcione de forma a não revitimizar essas crianças e adolescentes, porque cada vez que a vítima relata a violência, revive uma dor profunda”, explica.

Machismo e preconceito estão entre os principais fatores

De acordo com a defensora, o machismo estrutural e o preconceito ainda são fatores centrais para a perpetuação da violência.

“A violência psicológica decorre muitas vezes da homofobia e da falta de entendimento sobre diversidade de gênero. Já a violência sexual tem origem, principalmente, no machismo que ainda marca a nossa sociedade, em que alguns homens acreditam ser donos dos corpos das mulheres e meninas, principalmente na fase inicial da adolescência quando as meninas começam a se desenvolver mais e estão mais vulneráveis”, pontua.

Ela reforça que muitos casos de abuso ocorrem dentro do próprio lar, o que dificulta a denúncia e o acompanhamento. “A maioria das ocorrências não tem a anuência da mãe, mas em alguns casos há conivência. É preciso analisar cada situação, mas via de regra, o machismo e a vulnerabilidade social são os principais fatores”, acrescenta.

Rede de proteção e desafios

O Nudeca integra a rede estadual de proteção e participa de projetos com o Tribunal de Contas do Estado, conselhos tutelares e escolas. A defensora explica que a Defensoria Pública tem trabalhado na divulgação do fluxo de atendimento para os municípios e na capacitação de profissionais sobre escuta especializada, prevista na Lei nº 13.431/2017.

“A escola é a principal porta de entrada da rede de proteção. É o lugar onde a criança estabelece vínculo de confiança com o professor. Por isso, temos feito palestras e capacitações para orientar educadores e conselheiros tutelares sobre como agir diante de uma denúncia de violência”, afirma Elisa Maria.

Além disso, o Nudeca e o Ministério Público estão promovendo um curso de capacitação virtual voltado à rede de proteção em todo o estado, para aprimorar o atendimento e reduzir a revitimização das vítimas.

Sinais de alerta e formas de denúncia

Elisa reforça que a comunidade também tem papel essencial na identificação e denúncia de casos de violência.

“A família, a escola e os vizinhos precisam estar atentos. Qualquer pessoa pode denunciar, inclusive de forma anônima, pelo Disque 100 ou pela ouvidoria do Ministério Público. O importante é que a informação chegue à rede de proteção, que fará a apuração e a responsabilização do agressor”, explica.

Segundo ela, a Defensoria Pública também pode ser procurada diretamente. “Muitas vezes, o agressor é alguém próximo. Nesses casos, o anonimato é fundamental para garantir a segurança de quem denuncia”, completa.

Afeto e responsabilidade como pilares da proteção

Para a coordenadora do Nudeca, o Dia das Crianças é uma data que deve ir além da celebração e servir como reflexão coletiva sobre o cuidado e a responsabilidade com a infância.

“Cuidar de uma criança é mais do que garantir direitos, é oferecer afeto, segurança e oportunidade de crescer com dignidade. Proteger a infância é dever de todos, família, escola, comunidade e Estado. Nossa missão é assegurar que nenhuma criança seja invisível, negligenciada ou privada do direito de sonhar”, conclui Elisa Maria Pinto de Souza.