Ulisses Franklin Cunha: “passagem de ano é momento para refletir e renovar esperanças”
31 dezembro 2023 às 00h08
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O psicólogo Ulisses Franklin Cunha, professor da Universidade Estadual do Tocantins (Unitins), analisa que as festas de final de ano, tem significado muito especial para a sociedade contemporânea. Ele observa que o réveillon é um ritual de passagem que serve ao mesmo tempo como descarrego daquilo que não deu certo e renovação das esperanças de um ano vindouro de prosperidade. “Nós estabelecemos muitas metas nesse ritual de passagem de um ano para o outro. Mas a maioria das vezes essas metas, são muito mais impulsionadas por um imperativo da cultura do que por uma meta que é de fato sua”, alerta o professor, enfatizando que essas metas que não se aplicam a todas as pessoas.
Ulisses Franklin aponta que o estilo de vida altamente competitivo da sociedade atual tem aprofundado o desprezo pelo autoconhecimento. “A gente sabe dizer quem são as personalidades e figuras públicas com mais seguidores no Instagram, com mais postagens, a gente sabe dizer muitas coisas do mundo, mas a gente sabe dizer muito pouco da gente mesmo”, observa o psicólogo que defende uma maior atenção com o nosso interior. “A gente precisa exercitar essa capacidade de ser altruísta consigo mesmo, essa capacidade de ser gentil com você mesmo, fazer um carinho em você”, recomenda.
Nesta entrevista exclusiva ao Jornal Opção Tocantins, Ulisses Franklin Cunha, fala sobre inteligência emocional, analisa os impactos dos avanços tecnológicos na vida das pessoas e arrisca um conceito de felicidade com base no que foi debatido no Congresso Internacional da Felicidade, realizado recentemente em Curitiba (PA) e que contou com sua participação. “Eu penso que a felicidade está contida nos pequenos prazeres da vida, nos pequenos prazeres desde que você esteja cem por cento presente naquilo. Um simples cafezinho quente num dia chuvoso pode significar a felicidade para você”, ressalta, acrescentando que “a felicidade está em um estado em que você está muito consciente daquilo que você está fazendo”.
Nós, seres humanos, somos seres da linguagem, do simbólico. Somos seres culturais. Nós gostamos de rituais
Ruy Bucar – Como o sr. avalia esse ritual de passagem de ano da sociedade moderna que busca aproveitar uma data para fazer esse exercício de que é possível esquecer os aspectos negativos e projetar para o próximo ano só coisas boas?
Eu penso sempre que a gente está nessa passagem de ano. Há muito debate, muitos compromissos, muitos diálogos no sentido de se tentar esquecer aquilo que não foi interessante e aproveitar a passagem do ano para colocar no ano que está ficando para trás toda a responsabilidade de apagar aquilo que é negativo e ao mesmo tempo renovar as experiências.
Do ponto de vista teórico, nós, seres humanos, somos seres da linguagem, do simbólico. Somos seres culturais. Nós gostamos de rituais. Então, a passagem de um ano para outro é um espaço e um momento de muitas reflexões. É um espaço e um momento na vida das pessoas onde elas se imbuem. Onde elas se propõem a fazer uma série de reflexões, eu diria. Então, é um momento onde nós fazemos um balanço da nossa vida, do nosso ano em especial. Uma memória mais recente, pensando nisso. Daí você pensa assim, quais foram as coisas que eu tinha pensado ou que eu tinha planejado fazer esse ano e que não deram certo? O que eu posso fazer para o ano que vem? Eu acho que a experiência se centra aí. O que eu fiz este ano que não deu certo ou o que eu deixei de fazer, o que eu posso fazer no ano seguinte e o que eu preciso fazer para atingir essas metas. Eu vejo muito que o Ano Novo tem esse significado para as pessoas. É um tempo de renovar as esperanças e é um tempo também de fazer este salvo das coisas que não deram certo e a gente vê o que pode fazer para dar certo no ano seguinte.
A pandemia, serviu para colocar uma lupa nos problemas individuais e coletivos da humanidade
Ruy Bucar – A pandemia da Covid-19, deixou marcas profundas na convivência social. Já é possível fazer um balanço dos impactos desse período na saúde mental das pessoas?
Eu penso que a pandemia, serviu para colocar uma lupa nos problemas individuais e coletivos da humanidade. Então, aquilo que estava sendo abafado por um ritmo de vida muito rápido, muito instantâneo, a pandemia deu um freio e fez com que as pessoas olhassem para dentro de si porque elas passaram a ter mais tempo de convívio consigo mesmas e essa lupa, foi dado um zoom do ponto de vista individual, não é? O que eu estou fazendo da minha vida, no que eu estou empregando o meu tempo e os problemas sociais da humanidade de uma forma planetária, desde que a pandemia afetou o mundo todo. Penso que há ainda resquícios da pandemia, especialmente do ponto de vista individual.
A rapidez que o universo das tecnologias da informação e comunicação adquiriu pós pandemia foram imensas e elas ficaram
Do ponto de vista global, as coisas já caminham para um novo momento pós pandemia. Se a gente for pensar na força que ganhou os meios de comunicação, né? Hoje se fazem reuniões com pessoas espalhadas em vários lugares. Todas essas coisas ficaram na pandemia. A rapidez que o universo das tecnologias da informação e comunicação adquiriu pós pandemia foram imensas e elas ficaram. Do ponto de vista individual, do mundo psicológico, cognitivo, algumas pessoas ainda estão se recuperando, especialmente aquelas que perderam entes queridos e que ainda talvez não tenham superado isso, que talvez não tenham se perdoado por não terem dito algo para essas pessoas, não é? Então eu penso que ainda há resquícios da pandemia no universo psicológico de algumas pessoas, sim. Porque foram dois anos e não tem dois anos que acabou. Então o tempo que permanece nessas questões costuma ser um pouco mais duradouro, eu diria.
Afirmar que a humanidade saiu melhor abarcaria uma gama muito maior de percepções. Eu não diria melhor, diria mais consciente
Ruy Bucar – É possível dizer que a humanidade saiu melhor da pandemia, ou não necessariamente. Temos que lembrar que ao longo desse processo, se viu uma banalização da morte e a exacerbação do ódio. Como o sr. avalia essas manifestações?
Eu particularmente não consideraria a métrica como melhores ou piores no pós-pandemia. Eu penso que a gente saiu mais consciente do modo de vida que nós estávamos levando. Porque essa característica de uma sociedade melhor, ela perpassa por uma série de indicadores, não é? A economia melhorou, a educação melhorou, a saúde melhorou? Do ponto de vista da humanidade como um todo, eu não me sentiria seguro de dizer que nós saímos melhores da pandemia. Eu diria que nós saímos mais conscientes porque, como eu afirmei anteriormente, esse zoom que nós demos em nós mesmos e no mundo, atingiu as pessoas de forma muito individual. Algumas pessoas adquiriram essa consciência maior de como conduzir a sua própria vida, de como elas se percebiam. Outras me parece que não. Então afirmar que a humanidade saiu melhor abarcaria uma gama muito maior de percepções disso que a gente passou. Eu não diria melhor, diria mais consciente.
Ruy Bucar – Aproveitando este ritual de mudança de ano, o que sr. recomenda ou o que é possível fazer para se começar um ano efetivamente interessante na perspectiva das conquistas pessoais?
Olha, não somente pela minha formação, que é a psicologia, mas eu penso que do ponto de vista até mesmo da nossa espécie humana, eu acho que como começar melhor o ano seguinte? Penso que estando mais consciente daquilo que você deseja, daquilo que você é, estando mais consciente do que você precisa melhorar de fato. Nós estabelecemos muitas metas nesse ritual de passagem de um ano para o outro. Mas a maioria das vezes essas metas, são muito mais impulsionadas por um imperativo da cultura do que por uma meta que é de fato sua. Porque todos, vamos pensar, estabelecem muitas metas comuns. A maioria das pessoas estabelece metas comuns em que sentido? Ah, vou perder alguns quilinhos ou vou começar uma nova atividade física, vou começar uma pós-graduação, vou aprender um novo idioma. E essas são metas que não se aplicam a todas as pessoas. Mas a cultura diz, de modo muito geral, que essas deveriam ser metas que as pessoas deveriam tomar para elas.
As metas SMART, específicas, mensuráveis, atingíveis, relevantes e temporais, elas precisam ser importantes para você
Eu gosto muito de usar uma perspectiva que é do mundo dos negócios, mas que é aplicável ao indivíduo, que é o que eles chamam de metas SMART. Metas SMART, vêm de um acrônimo do inglês que quer dizer específicas, mensuráveis, atingíveis, relevantes e temporais. Tudo isso para quem? Para você, não para o outro. Porque nós vivemos em uma cultura onde somos mergulhados e avaliados o tempo todo por esse olhar do outro. A gente faz metas pensando em como o outro me veria se eu atingisse aquela meta. Então, às vezes eu penso, preciso aprender um novo idioma porque eu vou ser melhor aceito no trabalho, porque eu vou melhorar meu currículo. Mas você, de fato, quer aprender essa nova língua porque você considera que, para você, individualmente é importante? Então, essas metas SMART, específicas, mensuráveis, atingíveis, relevantes e temporais, elas precisam ser importantes para você. Por isso que eu falo de autoconhecimento e autoconsciência. Isso que eu quero para mim para o próximo ano, isso que eu estou adotando como meta. O quanto isso é relevante, importante e exequível para mim, independente do olhar do outro? Porque a gente costuma medir-se pela régua do outro. A nossa métrica é essa aceitação do outro, é essa validação do outro. E as redes sociais são um prato cheio de fazer com que a gente atinja metas. Perdão, com que a gente estabeleça metas a partir daquilo que eu vejo, especialmente no mundo das redes sociais e na mídia. Então, a gente vê alguém fazendo algo e você, olha, eu vou fazer isso também. Mas você faz isso muito automático. Você não permite se perceber, se olhar e pensar. Essa de fato é uma meta para mim? Ah, está todo mundo fazendo uma nova pós-graduação. É importante? É. Mas é isso é que eu quero para o meu 2024? Às vezes não, a meta é começar o segundo curso e não fazer uma pós-graduação. Mas se está todo mundo fazendo pós-graduação, eu vou fazer uma pós para atender esse imperativo que é a cultura. Então, eu vejo que esse estabelecimento de metas, precisa ser algo muito individual. O que você quer para você? O que é importante? O que é relevante? O que é prioridade para você e não para o outro?
Vivemos numa cultura, numa sociedade, onde a gente tem muito pouca presença naquilo que estamos fazendo
Elâine Jardim – Se a gente impõe metas para nós mesmos realizarmos os nossos sonhos, como é que a gente faz para manter o foco e continuar ali na luta desviando da temida procrastinação?
Eu sou um exemplo. Faz tempo que eu tento realmente ser fitness, vir para a academia e eu não consigo ter aquela coisa diária, de um horário, de estar lá, de ter constância. Não consigo. Isso se refletiu nos meus olhos. Eu vejo isso acontecer com muitas outras pessoas. De que forma a gente pode buscar essa constância? Não só nisso que eu falei, mas também em outras várias coisas.
Bom, essa pergunta é bem interessante, porque assim, a procrastinação é um tema que, em todos os lugares que eu vou conversar sobre qualquer outro assunto, a procrastinação aparece como se ela atravessasse tudo. Como se ela atravessasse nossa vida pessoal, nossa vida profissional. Porque a gente vive numa cultura, numa sociedade, onde a gente tem muito pouca presença cem por cento naquilo que a gente está fazendo. Então, o que é procrastinação? É deixar para depois algo que é importante. Então, o primeiro passo para vencer a procrastinação é dar o primeiro passo em direção àquilo que você quer. Porque a procrastinação é um comportamento. E comportamentos, eles são alimentados por questões que são da estrutura do pensamento, mas que também são alimentadas por questões… como que eu posso dar um nome para isso? Você vai deixando para depois algo, porque você vai inserindo uma série de outras coisas entre o momento que você está e aquilo que você quer fazer. Então, por exemplo, se a meta é adotar um estilo de vida mais saudável, mas você vai sempre procrastinando do tipo, não, eu vou deixar para começar só ano que vem. O ano já está acabando, eu vou deixar para começar no ano que vem. Isso é uma ideia, um pensamento. Meu pensamento é de, se eu deixar para o início do ano que vem, vai ser mais fácil eu adotar esse novo comportamento.
Uma das coisas mais difíceis na nossa espécie é mudar a nós mesmos. Principalmente em um mundo que está o tempo todo nos dizendo como a gente deve ser
O primeiro passo é mudança de mentalidade. Mudar o pensamento. Por que eu estou achando que se eu começar na segunda ou ano que vem, eu vou atingir essa meta? Por que eu não faço agora? O que é mais difícil quando se trata de mudança de mentalidade é dar o primeiro passo. Começar. Começar. Começar é o primeiro ponto importante. E isso começa na cabeça da gente, dentro dos nossos pensamentos. Então, a gente precisa colocar isso como prioridade e se colocar nesse lugar onde você quer estar. Se eu quero adotar uma vida mais saudável, uma rotina, então, faz um esforço para amanhã, se possível, colocar um tênis na bolsa e ao sair do trabalho eu vou dar uma volta aqui na Praça do Lago. Para você ir se colocando, aos poucos, nesse novo lugar de mentalidade que você está se propondo a colocar. É fácil? Não. Porque uma das coisas mais difíceis na nossa espécie é mudar a nós mesmos. Principalmente em um mundo que está o tempo todo nos dizendo como a gente deve ser. E isso volta lá no que eu disse anteriormente. Quando eu coloco uma meta que não é aquilo que eu estabeleci para mim, mas que o outro, que a rede social, que esse olhar do outro colocou, é muito mais difícil para eu fazer aquilo que é importante para mim.
Tem uma autora, Regina Narravo Lins, que diz que a mudança de mentalidade, se assemelha a um movimento de placa tectônica
Tem uma autora, Regina Narravo Lins, que diz que a mudança de mentalidade, se assemelha a um movimento de placa tectônica. Sabe aquela coisa milimétrica a cada ano? Mas é preciso se permitir a esse movimento. E aí você pode ir fazendo essa mudança de mentalidade, estabelecendo, por exemplo, pequenos diálogos consigo mesmo. Olhar para você mesmo, é fazer esse mergulho interior. O que é meta para mim? O que é prioridade? E por que eu quero adotar isso? Porque é importante adotar uma meta, mas que faça sentido para a gente. A gente estabelece prioridade e mantém o foco naquilo proporcionalmente ao quanto aquilo é importante para mim. Para a minha carreira, para o meu desenvolvimento pessoal, para o meu crescimento em como ser humano. Daí a meta é ser uma pessoa melhor para mim. Primeiro, como eu posso ser uma pessoa melhor para mim mesmo? E é interessante que na medida que essa placa tectônica, que é a mudança de mentalidade, ela vai acontecendo, novos hábitos vão se construindo e daqui a pouco aquilo que era um desafio se incorpora a quem nós somos, ao que nós fazemos, ao que nós passamos a fazer porque o ser humano nunca vai ficar pronto. Nós nunca vamos ficar prontos e acabados. O ser humano está eternamente no processo de vir a ser, de nos tornar uma nova pessoa. A gente está o tempo todo à margem de um novo ser que nós somos. Mas é preciso permitir aquilo. É preciso fazer algo para que a gente se torne aquilo que a gente é capaz de ser. Não é fácil, mas é possível. Há um caminho. Precisa ser caminhado agora.
Felicidade é uma coisa que não é um outro que vai te dar propriamente, mas é como você percebe aquilo que está fazendo
Ruy Bucar – Isto posto, me parece que toda essa movimentação tem um objetivo, talvez não seja consciente, mas que justifica todos esforços, que é um estado de felicidade? Como alcançar esse estado de felicidade como um sentimento ou energia que pode levar a transformações de comportamentos mentais?
Olha, esse tema, felicidade, me parece de uma complexidade além do que a palavra pressupõe, não é? A gente talvez pense que a felicidade é algo bem simples. Penso que ela está contida na simplicidade, mas não seria tão simples, até porque nós estamos vivendo tempos muito compulsivos, tempos muito instantâneos, tempos muito ansiosos. E como você bem colocou no começo, a felicidade é um estado de bem-estar. Isso quer dizer que não dá para ficar feliz 24 horas do dia, não é? Porque a gente está vivendo e a gente está ali exposto a uma série de situações que podem reduzir esse estado de bem-estar. Mas eu penso que a felicidade está contida nos pequenos prazeres da vida, nos pequenos prazeres desde que você esteja cem por cento presente naquilo. Um simples cafezinho quente num dia chuvoso pode significar a felicidade para você. Me parece que a felicidade está em um estado em que você está muito consciente daquilo que está fazendo. Eu vi recentemente, agora em novembro, no Congresso Internacional de Felicidade em Curitiba, onde a felicidade é analisada e discutida em inúmeras palestras pela ótica da psicologia, da ciência, da filosofia e da espiritualidade. E cada uma dessas instâncias e cada uma dessas áreas de conhecimento vai tratar a felicidade por uma ótica. Mas o que é comum a todas elas quando se refere ao tema da felicidade é esse estado de presentificação e autoconsciência. Porque a felicidade é uma coisa que não é um outro que vai te dar propriamente falando, mas é como você percebe aquilo que está fazendo, que você está vivendo. Se a gente pensar aqui na cultura imediatista que a gente está vivendo, talvez as pessoas associem muito a felicidade a uma questão material, a uma questão de posse, a uma questão palpável.
Ruy Bucar – De consumo?
De consumo, exatamente. As relações de consumo são muito associadas a esse estado de bem-estar. Mas a gente pode consumir coisas imateriais, como por exemplo apreciar um belo pôr do sol na praia, apreciar a presença de um amigo que você não via há algum tempo. Essas coisas se traduzem nesse estado de bem-estar ao qual nós chamamos de felicidade. E daí eu vejo, eu fico assustado quando eu vou a algum lugar e vejo, por exemplo, que tem um casal onde ele está no telefone e ela no telefone, eu olho nele, e eles não estão conversando e aproveitando a presença um do outro. Eu vejo que eles estão ali presentes apenas em matéria, mas não estão em espírito, não estão em presença presente. Então eu penso que a felicidade tem que estar associada a esse estado de autoconsciência e de presentificação. Que é essa capacidade de estar para si e para o outro ali em tempo real e inteiramente. E lembrando sempre que não é uma questão material, mas é uma questão muito mais do sentimento. É uma questão muito mais relacionada de como você percebe aquela experiência que você está vivendo. A felicidade é recomposta por experiências positivas. Eu acho que eu poderia fechar esse tópico da felicidade com essas duas palavras, presentificação e autoconsciência.
Nunca tivemos tanto acesso à informação na história da humanidade quanto agora. Porém, nunca estivemos tão afastados de nós mesmos
Parece que há uma percepção de que o avanço tecnológico, essa transformação tão rápida, e essa ideia de consumo como lugar da felicidade, permite uma leitura de que o ser humano está se tornando mais superficial nas suas relações e também naquilo que nutre a sua essência. Até onde esta percepção tem nexo com a realidade?
Eu acho que essa leitura também é superficial, não é nada profundo do comportamento humano, porque a tecnologia sempre existiu e ela sempre avançou. É possível enxergar que o ser humano, independente desses rótulos que a gente atribui a um período histórico, há uma busca de aprofundamento de como é que a pessoa avalia também esses aspectos de uma leitura que se faz, de que a sociedade tem ficado mais superficial nas suas relações.
Vou lembrar de dois autores que dão um nome bem pontual a esse período da história da humanidade ao qual nós estamos vivendo, que é o Zygmunt Bauman, um sociólogo polonês, e ele diz que nós estamos vivendo tempos líquidos. Então a vida é líquida, os amores são líquidos, é tudo muito líquido, escorre pelas mãos, existe muito pouca completude das coisas porque é tudo muito rápido, muito fulgás. Então eu troco de celular todos os anos, especialmente no final do ano, então eu também posso trocar o esposo, posso trocar o amigo, então tudo escorrega pelas nossas mãos porque a gente não consegue mais segurar nada. E outro autor, que é o [Byung] Chul Han, coreano, ele tem um livro que chama “A Sociedade do Cansaço”. Então ao mesmo tempo que é tudo muito líquido, tudo muito fugidio, tudo muito efêmero, passageiro, a sociedade, o imperativo é que a gente tem que dar conta de fazer um monte de coisas ao mesmo tempo.
Se a gente parar para pensar que atualmente a grande maioria das pessoas tem dois, três empregos. Há algum tempo atrás a gente não via isso, as pessoas tinham um trabalho apenas e elas viviam com aquilo e viviam bem, elas tinham mais momentos de introspecção, de reflexão, de avaliar a sua própria vida. Hoje, de fato, nós estamos vivendo muito mais na superficialidade e muito menos na profundidade. A gente está vivendo o que o Chul Han também chama de “A Sociedade do Desempenho e da Produtividade”. A gente se sente mal se tiver que dar um atestado no trabalho porque a gente não está produzindo, a gente não está fazendo essa roda da produtividade geral. Então, de fato, nós estamos cada vez mais cansados, nós estamos cada vez mais exaustos, estafados e cada vez mais distantes de nós mesmos porque a gente está fazendo tudo muito rápido, então a gente tem pouca profundidade naquilo que a gente faz. A gente faz várias coisas ao mesmo tempo, mas nenhuma daquelas coisas que a gente está fazendo a gente faz com cem por cento de atenção, com cem por cento de presença mesmo. É por isso que talvez justifique o fato de ninguém escutar o áudio na velocidade 1. Todo mundo põe no 1x, no 2x. Então, a vida também está acontecendo naquele movimento, naquela velocidade. Então, a gente faz as coisas mais rápido. E o que a gente não para para perceber é que se você ouvir um áudio na velocidade 2x, não é a voz daquela pessoa que você está escutando. É uma voz que foi alterada graficamente, que foi alterada virtualmente. Não é a voz da pessoa que a gente está ouvindo em tempo real. Então, a vida também vai adquirindo esse status de velocidade, mas não profundidade. Vai perder, de fato, a sua essência. Nós nunca tivemos tanto acesso à informação na história da humanidade quanto estamos tendo agora, nesse século 21. Porém, nunca estivemos tão afastados de nós mesmos quanto estamos agora. A gente está muito mais próximo desse imperativo da cultura, do social, do olhar do outro. A gente está cada vez mais próximo daquilo que a sociedade diz que você tem que ser, do que, de fato, você diz para você mesmo que você tem que ser.
A gente precisa exercitar essa capacidade de ser altruísta consigo mesmo, essa capacidade de ser gentil com você mesmo, fazer um carinho em você
Ruy Bucar – Como o sr. avalia o desafio da busca interior de nós mesmos?
Construir a si mesmo é um desafio tremendo. Você estabelecer metas e prioridades, ainda mais agora, nesse momento de virada do ano, como a gente está conversando aqui. Estabelecer essas metas pensando na teoria do SMART, com especificidade, com mensurabilidade, com relevância, é um desafio porque a gente está perdendo essa capacidade de entrar em diálogo mais profundo com a gente mesmo. Me assusta o fato de conversar com as pessoas e elas terem um desconhecimento grande delas mesmas. O que te dá prazer? O que te deixa feliz? O que te deixa alegre? O que te deixa motivado? O que te deixa entusiasmado? Quais são as coisas que te deixam apreensivo, triste, ansioso, angustiado? Tudo o que se refere a características e habilidades psicológicas, intrapsíquicas, individuais, as pessoas estão perdendo tanto pra isso. A gente sabe dizer quem são as personalidades e figuras públicas com mais seguidores no Instagram, com mais postagens, a gente sabe dizer muitas coisas do mundo, mas a gente sabe dizer muito pouco da gente mesmo. E por isso que é difícil a gente estabelecer metas e cumpri-las, porque a maioria delas não são nossas, são desse outro que também habita dentro de nós. Mas a gente precisa exercitar essa capacidade de ser altruísta consigo mesmo, essa capacidade de ser gentil com você mesmo, fazer um carinho em você.
Desejo que 2024 seja um ano em que nós tenhamos autoconsciência e que a gente esteja presente de fato naquilo que desejamos para nós
Que mensagem o sr. deixa para os nossos leitores neste momento tão especial da passagem de ano em que 2023 vira passado e 2014 já se faz presente?
Eu desejo que 2024 seja um ano de muita autoconsciência. Eu estou muito com essa palavra na cabeça, porque eu de fato percebo o quanto nós estamos afastados de nós mesmos. Então eu desejo que 2024 seja um ano em que nós tenhamos autoconsciência, de que nós tenhamos automotivação e que a gente esteja presente de fato naquilo que desejamos para nós.