Enquanto a Espanha se prepara para cimentar o direito ao aborto em sua Constituição, o Brasil navega em direção contrária, ampliando barreiras legais e morais que transformam um direito já precário em uma via-crúcis de julgamento e dor. Esta é a história de um retrocesso que tem gênero, poder e uma pergunta: se os homens abortassem, a lei seria a mesma?

Era uma noite qualquer quando A., 29 anos, foi arrastada para debaixo de uma ponte,  como noticiado pela Agência Pública . O trauma da violência sexual, entretanto, era apenas o começo de seu sofrimento. Grávida de seu agressor, ela peregrinou por hospitais públicos em São Paulo, ouvindo negativas onde a lei prometia acolhimento.

Ninguém lhe informou que, desde 1940, o Código Penal isenta de punição o aborto em casos de estupro. Sozinha, descobriu na internet um direito que o Estado lhe sonegava. Sua jornada só terminou em um terceiro hospital, onde interrompeu a gestação já com mais de 12 semanas.

Uma década depois, a Agência Pública contou outra de muitas histórias, a de F., uma mulher também de 29 anos, vítima de estupro por alguém próximo, e que viu a mesma história se repetir, agora agravada. Com a gestação avançada, passando de 22 semanas, foi barrada em São Paulo e precisou embarcar em um avião para Salvador, custeada por uma ONG, para realizar o procedimento no único serviço do país que a aceitou. 

“É isso mesmo que eu quero fazer, estou com um pouquinho de medo, talvez por estar sem ninguém da família, mas vai dar tudo certo”, disse ela, por mensagem. 

Talvez nenhum outro caso simbolize a opressão e a violência do movimento antiaborto no Brasil como o da menina capixaba de 10 anos. Estuprada pelo próprio tio, ela engravidou. A gestação foi interrompida com autorização judicial, mas a sua agonia foi amplificada por uma horda de conservadores.

Manifestantes, mobilizados pela extremista de direita Sara Giromini – que divulgou criminosamente o nome da criança e o hospital em Recife onde ela estava -, cercaram a unidade de saúde, gritando impropérios contra a vítima.

O resultado foi tão devastador que a família da menina, com sua vida exposta e ameaçada, precisou ser integrada ao Programa de Apoio e Proteção às Testemunhas, Vítimas e Familiares de Vítimas da Violência (Provita), que prevê mudança de identidade e endereço.

Veja o que o extremismo contra o aborto fez com a vida dessa criança. Em um sistema que funcionasse, onde o aborto fosse um direito acessível, ninguém saberia de sua existência. Ela teria tido privacidade em um momento de trauma indescritível. Em vez disso, foi revitimizada publicamente, sua infância obliterada duas vezes: primeiro pela violência de um homem, depois pela crueldade organizada de uma multidão.

Enquanto A.,  F. e a jovem criança enfrentavam essa saga, o Brasil registrava, em 2024, seu maior número de estupros em cinco anos: 78.463 casos, resultando em 214 vítimas por dia. Nesse mesmo período, o Congresso Nacional, majoritariamente masculino e conservador, não se mobilizava para proteger essas mulheres, mas sim para aprovar projetos de lei que tornam o aborto legal uma miragem ainda mais distante.

A hipocrisia institucionalizada

Atualmente, o aborto legal no Brasil pode ser realizado em três situações: estupro, risco de vida materna ou quando o feto possui anencefalia. Contudo, a distância entre a letra da lei e a realidade nas portas dos hospitais é abissal.

Consequentemente, as mulheres passam pela tensão, medo, angústia e julgamento por onde elas passam, por onde forem encaminhadas.

A professora Ana Elisa Bechara, vice-diretora da Faculdade de Direito da USP, expõe a crueza do sistema: “Há poucos lugares que efetivamente fazem o procedimento e ainda há dúvidas, inclusive por parte dos agentes públicos envolvidos, sobre como os casos devem ser conduzidos”.

Ela acrescenta: “Por isso, a gente vê mulheres que muitas vezes tem que viajar mais de mil quilômetros para conseguir realizar o aborto e outros casos em que essas mulheres acabam tendo que esperar tempo demais, evoluindo contra a sua vontade a gravidez”.

Este cenário de opressão sistêmica é, na verdade, um projeto político. Enquanto o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, votava pela descriminalização do aborto até a 12ª semana em 2025 – sob o argumento lúcido de que a prática é “questão de saúde pública, não de direito penal” -, a Comissão de Direitos Humanos do Senado aprovava, no intervalo de 48 horas, o Projeto de Lei 2.524/24.

Este projeto proíbe o aborto após a 22ª semana, mesmo nos casos hoje permitidos por lei. Além disso, em 2024, a bancada conservadora na Câmara fez avançar um projeto que equipara o aborto após a 22ª semana a homicídio, com pena de 6 a 20 anos de prisão. A ironia cruel é que, se aprovada, uma vítima de estupro que abortasse após esse período poderia enfrentar uma pena maior que a de seu próprio estuprador.

Por que a Espanha avança e o Brasil retrocede?

Em outubro deste ano, o governo socialista de Pedro Sánchez, na Espanha, anunciou a histórica intenção de inscrever o direito ao aborto na Constituição. “Com este governo, não haverá retrocesso nos direitos sociais”, declarou Sánchez. Se aprovado, o país se tornará o segundo do mundo a constitucionalizar esse direito, seguindo os passos da França.

A trajetória espanhola é um contraponto gritante à brasileira. Também de forte tradição católica, a Espanha descriminalizou o aborto em 1985 e, em 2010, sob o governo de José Luis Zapatero, legalizou a interrupção voluntária até a 14ª semana. Hoje, 70% dos espanhóis apoiam a legalidade do procedimento. No Brasil, um Datafolha de 2024 mostra que apenas 7% da população defende a liberação em qualquer situação.

A cientista política Celi Pinto, professora emérita da UFRGS, desfaz um mito conveniente. “Sempre se falou que, no Brasil, a questão do aborto estava muito associada ao fato de o país ser majoritariamente católico. Na verdade, se olharmos a Europa — Espanha, Portugal, França e até a Irlanda, extremamente católica — todos já têm aborto legal”., diz ela à Agência Pública. 

Para ela, o conservadorismo brasileiro no tema é mais contemporâneo e político do que religioso. “Há 50 anos, ele era visto de forma muito mais natural do que hoje”.

Uma esperança em suspenso

O julgamento no STF sobre a descriminalização do aborto até a 12ª semana arrasta-se desde 2023. Até o momento, o placar está em 2 votos a 0 a favor, com os votos pioneiros da ex-ministra Rosa Weber e de Barroso. Durante seu voto, Barroso provocou: “Se os homens fizessem aborto, ele já teria sido legalizado há muito tempo.”

Essa frase, que ecoa como um mantra da luta feminista, não é uma mera provocação retórica. É a constatação de uma verdade corpórea. É a percepção de que um corpo que não gesta, um corpo que não é submetido à violência sexual com a mesma frequência estatística, legisla sobre corpos que vivenciam essas realidades. O julgamento, no entanto, foi interrompido por um pedido de destaque do ministro Gilmar Mendes e não tem data para retomada.

Enquanto isso, o STF também derrubou uma liminar que permitia a enfermeiros realizar abortos legais, restringindo ainda mais o já escasso quadro de profissionais habilitados. Em São Paulo, a Justiça estadual suspendeu uma decisão que autorizava o aborto em casos de retirado da camisinha sem consentimento, demonstrando como a interpretação judicial é frequentemente hostil aos direitos das mulheres.

O direito ao aborto, mesmo nas situações já legalizadas, não deve ser uma concessão do Estado, sujeita ao humor de parlamentares e à pressão de grupos de interesse. Deve ser um direito garantido, acessível e humano.

Toda mulher que desejar fazer o aborto deve ter o direito de fazer, sem questionamentos, sem imposição. Nenhum direito deve depender da aprovação de quem jamais precisará exercê-lo. Decisões sobre o corpo e a maternidade pertencem exclusivamente às mulheres. O aborto, seja legal ou não, é uma realidade  e criminalizá-lo apenas empurra mulheres pobres e vulneráveis para procedimentos inseguros e clandestinos. É o Estado que fecha os olhos diante das mortes evitáveis e da violência institucionalizada.

O contraste com a Espanha não é meramente geográfico; é civilizatório. Um país opta por erguer uma muralha constitucional em defesa da liberdade. O outro, sob o jugo de um conservadorismo anacrônico, escolhe demolir até as proteções mais básicas.