Aline Bouhid

São Paulo é uma das maiores metrópoles do mundo e enfrenta uma crise humanitária sem precedentes no que diz respeito à população de rua. A cidade concentra 24,8% do total de pessoas nesta situação no Brasil, de acordo com dados do Observatório Nacional dos Direitos Humanos, lançado em 2023 pelo Ministério dos Direitos Humanos.

Problemas familiares (44%), desemprego (38%) e o uso de álcool ou drogas (28%) são os principais motivos apontados para a situação de rua. Surpreendentemente, 67% dessas pessoas já tiveram emprego com carteira assinada. Entre elas, 14% apresentam algum tipo de deficiência, sendo a física a mais comum (47%), seguida por transtornos mentais (18%) e deficiências visuais (16%).

Se não puder dar uma volta pelas ruas do centro de São Paulo, porque a situação é visível, vale rememorar esses números no momento em vereadores da maior cidade do país decidem instaurar uma CPI para investigar quem ajuda a população de rua, não as causas do problema em si.

Ontem, 2, o vereador Rubinho Nunes, membro do partido União e um dos fundadores do Movimento Brasil Livre (MBL), propôs a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara Municipal de São Paulo e conseguiu as assinaturas necessárias para a instaurar o inquérito.

Em tese, a CPI visa investigar Organizações Não Governamentais (ONGs) que atuam com pessoas em situação de rua na cidade, com foco na região central e na cracolândia. Na prática, servirá para perseguir e pressionar o trabalho social e humanitário liderado pelo padre Júlio Lancellotti exercido nas ruas da capital paulista.

Conhecida como CPI das ONGs, a comissão está programada para ser instalada em fevereiro, após o retorno dos trabalhos da Câmara. O principal alvo da investigação é a atuação do padre em relação às entidades Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto (Bompar) e o coletivo Craco Resiste. Ambas trabalham com a população em situação de rua e dependentes químicos na área central de São Paulo.

Padre Júlio Lancellotti, ao ser questionado pelo Painel da Folha em dezembro, negou qualquer envolvimento direto com as operações das entidades mencionadas.

“Elas são autônomas, têm diretorias, técnicos, funcionários. A Câmara tem direito de fazer uma CPI, mas vai investigar e não vai me encontrar em nenhuma das duas”, esclareceu o líder religioso.

Ele enfatizou ainda que não faz parte do conselho da Bompar há 17 anos e que ocupou um cargo não remunerado no conselho deliberativo da entidade.

Além disso, Padre Júlio criticou a abordagem do vereador e seus aliados, acusando-os de personalizar e criminalizar a questão para evitar o debate sobre o assunto.

Ele sugeriu que a investigação deveria incluir o prefeito Ricardo Nunes e a Secretaria de Assistência Social, que administram os fundos públicos relacionados.

Nesta quarta-feira, 3, lideranças de movimentos sociais, personalidades, políticos e ativistas saíram em defesa do padre Júlio Lancellotti. João Pedro Stedile, da coordenação nacional do MST, Débora Lima, presidenta estadual do Psol, a liderança da União Nacional dos Estudantes (UNE) e o deputado federal Pastor Henrique Vieira (Psol-RJ), entre muitos outros, destacam a importância do trabalho do religioso e a perseguição, já histórica, contra os movimentos populares e contra os que lutam em defesa dos mais pobres e pela justiça social.

Cabe lembrar que a CPI pode ter implicações eleitorais, dada a proximidade de Lancellotti com Guilherme Boulos (PSOL), pré-candidato à Prefeitura de SP em 2024 e liderando as pesquisas de opinião. Rubinho Nunes é do UB e partido apoia a reeleição de Ricardo Nunes (MDB) e ainda tem Kim Kataguiri, filiado à sigla, como pré-candidato.