Conheça o programa Família Acolhedora e como ele tem salvado vidas de crianças e adolescentes no Tocantins

19 outubro 2025 às 17h45

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Na casa de Ellen Kárita Rabelo da Silva, 31 anos, no município de Miracema do Tocantins, o clima é de cuidado. Enquanto embala a filha Ayla Emanuele, de cinco meses, e acompanha os deveres dos outros dois filhos, Alan Felix, de 12, e Alane Gabriela, de 8, ela fala sobre o amor que aprendeu a multiplicar.
Entre a rotina de mãe solo e as tarefas do curso de Serviço Social, Ellen recebeu a equipe de reportagem do Jornal Opção Tocantins com a mesma atenção e afeto com que acolhe quem chega à sua casa — inclusive três crianças retiradas do convívio familiar por abandono que passaram a fazer parte de sua história por meio do programa Família Acolhedora.
Criado para oferecer acolhimento temporário a crianças e adolescentes afastados judicialmente da família, o programa substitui o modelo institucional de abrigos, garantindo convivência familiar até a reintegração ou adoção.
Ellen conheceu o programa durante uma visita técnica da Universidade Federal do Tocantins (UFT), quando o município começou a organizar o projeto. “Eu conheci o programa através de uma atividade da UFT, quando fomos fazer uma visita técnica no Centro de Referência de Assistência Social (Creas) Lá eles estavam começando a organizar o programa e as divulgações. Eu me interessei porque já participo da rede de proteção desde que entrei na universidade e pensei: ‘É hora de sair do teórico e ir para a ação, não como estudante de serviço social, mas como sociedade civil’”, conta Ellen.
A experiência de acolher não é simples. “Eu atendi três crianças, irmãos. O mais velho não ficou comigo, ele já estava acostumado com outra família. Fiquei com os dois menores, de três anos e um ano e meio, por quatro meses, até eles irem para o abrigo. Na mesma época, descobri que estava grávida da minha filha, uma gestação de risco, então não podia pegar bebês menores”, relata.
Apesar da rotina intensa, ela afirma que a experiência valeu cada esforço. “A família acolhedora é um abrigo na hora da tempestade. Um lar que oferece afeto, rotina e comida, coisas que as crianças não tinham. Ellen lembra que as crianças chegaram com traumas, fome e dificuldade de sono, mas se transformaram rapidamente. “Uma semana depois já abraçavam, sorriam, diziam que amavam. Tudo muda quando elas se sentem seguras. Para mim, foi uma das experiências mais diferentes que já tive, exigiu muito tempo e atenção, mas aprendi muito. Aprendi a lidar com elas e, em consequência disso, com meus próprios filhos”, diz.
Ellen aconselha outras famílias a participarem do programa. “Entre. Não vai se arrepender. As pessoas têm medo, mas é muito gratificante cuidar de uma criança e ver a transformação acontecer”, afirma.
O cadastro para participar em Miracema pode ser feito diretamente na Secretaria de Assistência Social, que conta agora com equipe técnica dedicada, incluindo assistente social e psicólogo, para selecionar e acompanhar as famílias. “Não é qualquer família que pode entrar, eles se preocupam com a segurança das crianças”, explica.
Serviço intermunicipal

A história de Joana (nome fictício) sintetiza o impacto que o programa Família Acolhedora pode ter na vida de uma criança. Moradora de Miranorte, ela foi afastada do convívio familiar depois que surgiu uma denúncia de abuso sexual um familiar. O caso, segundo a equipe técnica da Secretaria Municipal de Assistência Social, segue sob investigação judicial, e o suspeito foi afastado da cidade por medida de proteção, embora não tenha sido preso.
Fernanda da Cruz Santos Teles, primeira-dama e secretária de Assistência Social de Miranorte, explica que a iniciativa atende atualmente os municípios da comarca de Miranorte: Barrolândia, Dois Irmãos do Tocantins, Rio dos Bois e o próprio município de Miranorte. “Desde setembro de 2024, quando os municípios firmaram o compromisso de instituir o serviço de forma intermunicipal, temos trabalhado no cadastramento, sensibilização e mobilização de famílias interessadas em acolher crianças e adolescentes e, em alguns, casos, até idosos”, detalha.

Com histórico de deficiência intelectual e atraso no desenvolvimento da fala, Joana vivia com a mãe e a avó, ambas também com limitações cognitivas e dificuldades de autonomia. “Ela não se expressava, não falava, não compreendia o que acontecia à sua volta. A falta de estímulo era total”, relatou
Diante da situação de vulnerabilidade e risco, a equipe técnica optou por inseri-la no programa Família Acolhedora, evitando que fosse levada para um abrigo institucional. “Mesmo com as limitações da família, havia um vínculo afetivo. Seria uma nova violência afastá-la definitivamente de quem ela ama. Então, trabalhamos para fortalecer essa rede e garantir que ela recebesse afeto e estímulo”, explicou Fernanda.
Joana permaneceu nove meses em uma família acolhedora da cidade, onde passou a receber atenção integral, estímulo cognitivo e acompanhamento de uma equipe multidisciplinar. A família acolhedora que a recebeu é composta por outras quatro crianças, o que proporcionou à adolescente a experiência de conviver em grupo, desenvolver empatia e aprender limites. Durante esse período, aprendeu a falar, se expressar e interagir. “Hoje ela conversa, demonstra sentimentos e até faz brincadeiras. Houve um salto de desenvolvimento impressionante”, contou Tatiane Coelho dos Santos, pedagoga do município.

O retorno à família biológica foi acompanhado de perto pela rede de proteção, que mantém visitas semanais e monitoramento diário por meio de uma cuidadora designada pela prefeitura. “A acompanhante chega às sete da manhã, ajuda na rotina de alimentação, higiene e leva Joana para a escola. À tarde, busca e permanece com ela até o início da noite. Aos fins de semana, o Conselho Tutelar e a equipe técnica fazem revezamento de visitas”, detalhou Régila Barbosa, assessora técnica da secretaria.

O processo de reintegração familiar segue sendo acompanhado de perto pelo Creas e pela equipe multidisciplinar do município. “Acompanhar a evolução dela é gratificante. Foi um trabalho coletivo, com o envolvimento da pedagoga, assistente social, psicóloga e coordenação — todos comprometidos com a reconstrução dessa história”, afirma a servidora.
Mesmo de volta à mãe e à avó, Joana continua próxima da família acolhedora. “Ela chora de saudade, manda áudios, e a família ainda a visita. Esse vínculo precisa continuar, porque representa segurança emocional para ela”, afirmou Fernanda.
Hoje, aos 12 anos, Joana frequenta a escola regular, participa de atividades no Centro de Convivência e é acompanhada por neurologista, psiquiatra e equipe psicossocial. A mãe e a avó participam do grupo de convivência de idosas da Assistência Social, onde, segundo Fernanda, também têm apresentado avanços. “Elas estão dançando, socializando, aprendendo a cuidar da casa e a se organizar. O processo é lento, mas é evolução.”
Fernanda define o caso como “um divisor de águas” na experiência do município com o Família Acolhedora. “O serviço salvou a vida de Joana, e também da família dela. É a prova de que acolher com afeto é política pública, é cuidado e é transformação social”, concluiu.
O programa e regras
O programa Família Acolhedora é um serviço de acolhimento provisório e excepcional em ambiente familiar, destinado a crianças e adolescentes afastados do convívio familiar por medida protetiva. Ele é aplicado em casos de abandono, maus-tratos, negligência ou outras violações, ou quando as famílias responsáveis se encontram temporariamente impossibilitadas de cumprir sua função de cuidado e proteção. A medida é gratuita, continuada e de responsabilidade estatal, sendo incorporada ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) pela Lei 12.010 e considerada preferencial em relação ao acolhimento institucional.
O serviço oferece atenção individualizada, promovendo o bem-estar e o desenvolvimento saudável da criança ou adolescente, com possibilidade de reintegração à família de origem ou, em último caso, encaminhamento para adoção. O acolhimento é temporário, com prazo máximo de 18 meses, podendo ser estendido pelo juiz, e acompanhado por equipe técnica que monitora tanto a família acolhedora quanto a de origem.
No Tocantins, segundo dados do Ministério Público do Tocantins (MPTO), atualmente 87% das crianças e adolescentes afastados de suas famílias são encaminhados para abrigos institucionais. Dos 46 municípios com leis instituintes do Serviço Família Acolhedora (SFA), apenas 22 possuem famílias efetivamente cadastradas, totalizando 45 famílias e 16 crianças/adolescentes sob cuidado. A meta do estado é que, até 2027, pelo menos 25% das crianças e adolescentes em medida protetiva sejam acolhidos em ambiente familiar.
Em Palmas, o serviço foi instituído pela Lei 3.096 de julho de 2024, funcionará na 704 Sul (onde antes era o Flor de Lis) e está em reforma. A equipe inclui um coordenador, um psicólogo e uma psicóloga, e a lei prevê capacidade inicial para 15 famílias acolhedoras.
O auxílio financeiro às famílias é de, no mínimo, um salário mínimo (R$ 1.518), com acréscimo de 25% para crianças com deficiência. No caso de irmãos, a bolsa é proporcional ao número de crianças. O pagamento é mensal, proporcional ao período de permanência do acolhido, e só ocorre após a guarda judicial ser homologada.
Para ser família acolhedora, é necessário ter mais de 21 anos e pelo menos 16 anos a mais que a criança acolhida, apresentar boas condições de saúde física e mental, não possuir antecedentes criminais ou dependência química, não estar inscrito no cadastro nacional de adoção e obter consentimento de todos os membros maiores de 18 anos da família. É exigida participação em formações continuadas, acompanhamento semanal da equipe técnica e abertura para acolher crianças com diferentes perfis, incluindo irmãos ou crianças com deficiência. O acolhimento é temporário e não equivale à adoção, com prioridade para a reintegração familiar.
Fortalecimento
Para fortalecer a política de acolhimento familiar, o MPTO tem realizado o seminário “Acolher Tocantins”, em diversas comarcas do Estado, integrando etapas de construção do novo Plano Estadual de Convivência Familiar e Comunitária, coordenado pela Secretaria de Estado do Trabalho e Desenvolvimento Social (Setas) e em parceria com os 139 municípios. Representantes de mais de 40 municípios assinaram a Carta de Compromisso pela Convivência Familiar e Comunitária, formalizando o compromisso de implementar o SFA, a expansão do serviço e o engajamento das redes de proteção.
Segundo o promotor Sidney Fiori, coordenador do Centro de Apoio Operacional às Promotorias da Infância, Juventude e Educação (Caopije), o acolhimento familiar é uma alternativa legal, socialmente mais adequada e prioritária em relação ao institucional, permitindo convivência afetiva, cuidado individualizado e acompanhamento técnico.

“O acolhimento familiar é preferencial porque estudos científicos mostram que a institucionalização prejudica o desenvolvimento da criança. Quando uma criança cresce em um ambiente familiar, ainda que temporário, ela constrói vínculos, sensação de pertencimento e cuidados individualizados, fundamentais para sua saúde física e mental.”
Ele alertou para os impactos de não proteger as crianças: “Se não garantimos a proteção integral na infância, os efeitos se refletem na vida adulta. Crianças que sofrem abandono, maus-tratos ou abuso têm maior risco de traumas, problemas de saúde mental e dificuldades de socialização. O acolhimento familiar previne esses danos, oferecendo segurança, cuidado e oportunidades de desenvolvimento, além de reduzir a probabilidade de comportamentos violentos ou delinquentes no futuro.”
O promotor destacou que a implementação do Serviço de Família Acolhedora no Tocantins é um compromisso de todos, e que cada criança afastada de sua família de origem merece crescer em um lar que ofereça proteção, vínculo afetivo e acompanhamento técnico especializado.