A bacia hidrográfica do rio Tocantins registrou perda de 35% na vazão mínima de segurança ao longo das últimas cinco décadas. O dado faz parte de uma análise inédita realizada no âmbito do projeto especial Cerrado – O Elo Sagrado das Águas do Brasil, resultado de 12 meses de investigação da Ambiental Media com base em informações da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) e da plataforma MapBiomas. O levantamento abrange seis importantes bacias brasileiras: Tocantins, Araguaia, Paraná, Parnaíba, São Francisco e Taquari.

Entre as regiões analisadas, a bacia do Tocantins aparece em segundo lugar na redução da vazão de segurança, atrás apenas da bacia do São Francisco. A mesma posição é observada no crescimento da soja irrigada: entre 1985 e 2022, a área dedicada ao cultivo do grão aumentou 138 vezes, conforme apontam os dados do MapBiomas.

O estudo também identificou mudanças em outros indicadores relacionados ao ciclo hidrológico da região. Houve uma redução de 23% na média de chuvas desde a década de 1970 e um aumento de 8% na evapotranspiração potencial – índice que mede a quantidade de água devolvida à atmosfera pelo solo e pela vegetação, sob influência direta da radiação solar.

Síntese de dados da bacia do Tocantins:

  • Redução de 35% na vazão mínima de segurança (de 1.415 m³/s para 924 m³/s)
  • Aumento de 13.765% na área de produção de soja (de 10.322 ha para 1.431.190 ha)
  • Redução de 22% na vegetação nativa (de 22.276.543 ha para 17.270.091 ha)
  • Queda de 23% na pluviosidade (de 143,38 mm/ano para 110,57 mm/ano)
  • Aumento de 8% na evapotranspiração potencial (de 119,12 mm/ano para 128,46 mm/ano)

O projeto

A pesquisa foi desenvolvida em uma cooperação técnica, sem fins comerciais, com acesso a bancos de dados da ANA que reúnem informações desde os anos 1970. Também foram analisados 37 anos de dados de uso e ocupação do solo do MapBiomas. O trabalho teve coordenação científica do geógrafo Yuri Salmona, doutor em Ciências Florestais pela Universidade de Brasília (UnB) e diretor-executivo do Instituto Cerrados.

Dados da pesquisa

Considerando o conjunto das seis bacias analisadas, o estudo identificou uma redução média de 27% na vazão mínima de segurança (Q90) entre os períodos de 1970–1979 e 2012–2021. Essa perda representa cerca de 1.300 m³/s – o equivalente a 30 piscinas olímpicas por minuto. Em apenas um dia, esse volume seria suficiente para abastecer todo o Brasil por mais de três dias.

O Q90 é o volume mínimo de água presente no rio em 90% das medições realizadas. A análise de precipitação revelou uma queda média de 21% nas chuvas nas seis bacias estudadas. Paralelamente, a evapotranspiração potencial aumentou 8%. O conjunto desses dados aponta para um cenário de menor incidência de chuvas, diminuição na vazão dos rios e maior perda de água por evaporação no bioma.

Para compreender a pressão sobre os recursos hídricos no Cerrado, foram avaliados dados de cobertura vegetal e expansão da monocultura de soja entre 1985 e 2022. De acordo com o MapBiomas, houve uma redução de 22% da vegetação nativa nas seis bacias e um crescimento de quase 20 vezes na área plantada de soja, que passou de 620 mil hectares para mais de 12 milhões de hectares.

O Cerrado ocupa cerca de 25% do território nacional e abastece oito das doze grandes regiões hidrográficas do Brasil. Sua posição elevada favorece o escoamento de rios e aquíferos, respondendo por 90% da vazão do rio São Francisco e contribuindo com praticamente toda a água que abastece o Pantanal. Também fornece recursos hídricos a rios da Amazônia, como Xingu e Tapajós. Uma das reportagens do projeto utiliza infográficos ilustrados e interativos para demonstrar a conexão entre os ciclos hidrológicos dos dois biomas.

O Cerrado concentra hoje boa parte da expansão da agricultura voltada à exportação de commodities e já tem quase metade de sua área ocupada por essas atividades, segundo dados do MapBiomas. O bioma é descrito por especialistas como um espaço com legislação ambiental menos restritiva do que a aplicada à Amazônia. “Quando o Cerrado é devastado, estamos colocando em risco os recursos hídricos do Brasil, afetando a todos nós”, afirma Yuri Salmona.

O desafio de traduzir dados complexos

“É comum encontrar pessoas indignadas com a escassez de água nas torneiras, ou agricultores temerosos de uma queda de safra diante da irregularidade do clima. Uma dona de casa ou uma proprietária de restaurante se incomodam com a alta de preço dos alimentos. Todos esses públicos, no entanto, não associam essas questões problemáticas com o desmatamento do Cerrado, mas deveriam”, comenta Salmona.

Transformar bases extensas de dados técnicos em conteúdos compreensíveis para diferentes públicos foi um dos principais desafios do projeto, realizado ao longo de mais de um ano. “Mais do que o uso de novas tecnologias, o diferencial está na união de especialistas de áreas distintas – jornalistas, cientistas ambientais, analistas de dados espaciais, designers e programadores – para produzir uma narrativa acessível, engajante e assertiva sobre o Cerrado”, explica Thiago Medaglia, diretor-executivo da Ambiental e idealizador da iniciativa.

As principais conclusões do estudo são apresentadas por meio de mapas tridimensionais e um painel interativo com gráficos exclusivos, contendo dados detalhados sobre cada bacia hidrográfica e as camadas analisadas.

O projeto Cerrado – O Elo Sagrado das Águas do Brasil, segundo Medaglia, busca colocar o bioma no centro do debate público. Ele destaca que o Cerrado, historicamente menos abordado em políticas ambientais se comparado à Amazônia, tem papel essencial no abastecimento de água, na atividade agrícola e na estabilidade climática do país. “Seja na balança comercial, na torneira de casa ou na conservação de espécies, sem Cerrado, não há futuro viável para o Brasil.”

Sobre a Ambiental

A Ambiental é uma organização brasileira sem fins lucrativos voltada ao jornalismo investigativo com base científica e em dados. Seu foco está em coberturas rigorosas sobre mudanças climáticas, proteção de biomas e comunidades tradicionais, e caminhos para um desenvolvimento sustentável.