Exploração de lítio avança sobre áreas protegidas no sul do Tocantins
28 outubro 2025 às 17h52

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A expansão da mineração de lítio no Brasil alcança a Amazônia Legal, região que concentra o maior número de povos tradicionais e áreas de florestas nativas preservadas do país. Entre 2022 e 2025, os pedidos de exploração do minério atingiram recorde e incluem áreas próximas a terras indígenas, unidades de conservação e assentamentos da reforma agrária, como ocorre no sul do Tocantins.
O Brasil possui o décimo maior depósito de lítio do mundo, estimado em 1,3 milhão de toneladas, das quais 390 mil toneladas são economicamente viáveis, de acordo com dados do Serviço Geológico dos Estados Unidos. Especialistas indicam que esses números podem estar subestimados, já que o subsolo brasileiro ainda está em fase de mapeamento.
Até o momento, existem 53 requerimentos para exploração de lítio na Amazônia Legal, sendo 48 (90%) protocolados a partir de 2022, segundo levantamento da Repórter Brasil com base na base de dados pública da ANM (Agência Nacional de Mineração). Especialistas alertam que a extração do minério pode se expandir rapidamente e intensificar conflitos socioambientais na região.
O lítio é considerado estratégico para a transição energética, sendo usado principalmente em baterias de veículos elétricos e no armazenamento em larga escala de energia gerada por painéis solares e turbinas eólicas. Esses dois setores, transporte e geração de energia elétrica, são os maiores emissores de gases de efeito estufa no planeta.
“Existe uma disputa bastante violenta por recursos estratégicos na Amazônia [como lítio, níquel e terras raras]”, analisa a socióloga e geógrafa Elaine Santos, pós-doutora pelo IEA (Instituto de Estudos Avançados), da Universidade de São Paulo. “A ampliação da exploração mineral ali certamente vai provocar o aumento dos conflitos”, alerta.
“O aumento de requerimentos para um mineral específico é preocupante. O lítio é essencial para a transição energética, mas seu avanço acontece sem a devida avaliação dos custos sociais e ambientais”, pondera Pedro Igor Galvão Gomes, mestrando em Ciências do Ambiente da Universidade Federal do Tocantins e bolsista do Rights Lab da Universidade de Nottingham, no Reino Unido.
Processos minerários no Brasil
Desde 1943, foram protocolados 4,4 mil processos minerários ativos no Brasil, sendo 3,9 mil a partir de 2022, segundo dados da base da ANM.
Uma das preocupações está na proximidade desses processos com áreas protegidas. Dos 53 requerimentos na Amazônia Legal, mais da metade (29) está sobreposta ou a menos de 10 km de 21 territórios, incluindo cinco terras indígenas, oito unidades de conservação e oito assentamentos da reforma agrária. Desses 29 pedidos, 18 receberam autorização da ANM para pesquisa, etapa que envolve trabalho de campo e pode gerar impactos nos territórios, muitas vezes sem contato com as comunidades afetadas.
A legislação ambiental não proíbe atividades minerárias a menos de 10 km de terras indígenas, mas considera que essas áreas podem ser impactadas nessa distância. Por isso, exige estudos de impacto e consulta prévia às comunidades, conforme previsto na Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário.
“A devastação vai para dentro das terras indígenas, por mais que o empreendimento fique a 10 quilômetros”, opina Alcebias Sapará, coordenador da Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira).
As unidades de conservação possuem zonas de amortecimento e requerem estudos específicos antes de qualquer exploração. Quanto aos assentamentos, o Incra deve ser acionado para definir medidas compensatórias devido aos impactos sobre a política de reforma agrária.
Em Minas Gerais, o Vale do Jequitinhonha ganhou o apelido de “Vale do Lítio” pelo governo mineiro devido ao seu potencial mineral. No entanto, os impactos da mineração chamam atenção de moradores e especialistas. “Tudo mudou. O rio acabou, a água está contaminada”, relata um indígena, que pediu para não ser identificado.
“O nosso território se tornou uma zona de sacrifício em nome da dita transição energética”, lamenta a historiadora Lauanda Lopes, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), que pesquisa os efeitos da mineração de lítio no Vale do Jequitinhonha desde 2024, pelo projeto Liquit.
Principais impactos
Entre os principais impactos da mineração estão dificuldades de acesso à água, contaminação de rios, aumento de poeira e de doenças respiratórias, além de rachaduras em casas atribuídas a tremores provocados pelas mineradoras.
“O atual modelo de exploração de lítio no Vale do Jequitinhonha perpetua um ciclo histórico de exclusão social, degradação ambiental e negação da população tradicional”, conclui um parecer do Ministério Público Federal de Minas Gerais, ao qual a Repórter Brasil teve acesso.
“Se acontecer na Amazônia o que está acontecendo no Vale do Jequitinhonha, vamos ter uma situação futura de falta de água, aumento dos conflitos e desrespeito aos direitos das comunidades locais”, avalia Lauanda Lopes.
Ao menos duas mineradoras que atuam no Vale do Jequitinhonha, Atlas e M4E, buscam explorar lítio na Amazônia.
A Atlas Lítio Brasil, subsidiária da norte-americana Atlas Lithium Corporation, tem entre seus acionistas o conglomerado japonês Mitsui & Co. Ltd e Roger Noriega, ex-embaixador dos EUA na OEA e ex-secretário-assistente de Estado no governo George W. Bush. A empresa atua em Minas Gerais desde 2018 e possui 797 km² em direitos minerais de lítio, mas ainda não iniciou exploração comercial.
Na Amazônia, a Atlas protocolou três pedidos em 2024 para pesquisa de lítio no sul do Tocantins. A ANM ainda avalia os processos, que não estão próximos de áreas protegidas, segundo levantamento da Repórter Brasil. Mesmo assim, a empresa reconhece riscos potenciais de operar na região.
O relatório corporativo da Atlas afirma que as políticas ambientais do Brasil, especialmente a preservação da Amazônia, são “continuamente fiscalizadas pela mídia”. Adverte que mudanças no ambiente político ou regulamentações desfavoráveis podem afastar investidores ou compradores de seus minerais. A Atlas também admite que pressões de comunidades locais e ONGs podem atrasar planos de negócios.
Em 28 de agosto, a Justiça Federal suspendeu a licença ambiental de um projeto da Atlas em Araçuaí (MG) por não consultar comunidades quilombolas diretamente impactadas. O juiz afirmou que a concessão da licença consolidaria a violação ao direito de consulta prévia, prevista na Convenção 169 da OIT. O projeto está a 5,5 km da comunidade quilombola.
Em abril, o MPF já havia alertado sobre possível violação de direitos em Araçuaí e pediu cancelamento de audiência pública entre a empresa e a comunidade, destacando risco de “severa restrição hídrica e de acesso à água para a população regional”.
A Atlas ainda não iniciou exploração comercial, mas firmou parceria para escoar a produção à chinesa Sichuan Yahua Industrial Group, que fornece baterias para empresas como Tesla, BYD e CATL. Procurada, a Atlas não respondeu até a publicação da reportagem.
Requerimentos para pesquisa de lítio no Tocantins
No sul do Tocantins, a APA Lago de Peixe/Angical é a área mais impactada na Amazônia Legal, cercada por 12 requerimentos para pesquisa de lítio a menos de 10 km de distância. Cinco pedidos foram protocolados em 2023 pela M4E Lithium Ltda., totalizando 9,4 mil hectares, com pesquisa autorizada pela ANM.
Criada em 2007 como compensação de uma hidrelétrica instalada no rio Tocantins, a APA abriga diferentes ecossistemas, como áreas de mata ciliar e veredas, com fauna e flora do Cerrado, incluindo espécies ameaçadas de extinção, como pacu-dente-seco, aracu-boca-pra-cima e tipos de bagre.
No território vivem comunidades tradicionais e pequenos produtores que já convivem com empreendimentos agropecuários e hidrelétricos, e agora enfrentam a expansão da mineração.
Em seu site, a M4E defende o Brasil como território favorável à mineração de lítio e destaca apoio de governos de “partidos de esquerda e direita”. A empresa cita a frase de Elon Musk: “lithium is the new oil”.
Pesquisadores da região consideram preocupante a possibilidade de mineração na APA. “É uma pressão tão grande, tem a agropecuária, as usinas hidrelétricas, as mudanças climáticas, o desmatamento em massa e agora a mineração. Se pensar em conservação, a mineração é quase inviável. Se isso continuar, é mais uma área a ser perdida”, afirma Alice Ferreira Araújo, bióloga da UFTO.
Ela também destaca risco à fauna aquática, pois a mineração pode contaminar rios por lixiviação, processo em que a água dissolve minerais e produtos químicos do solo, afetando a cadeia alimentar e reprodução de espécies migratórias.
Além do Tocantins e do Vale do Jequitinhonha, a M4E tem requerimentos em cinco estados (Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte), totalizando 64 pedidos apresentados entre 2021 e 2024.
A M4E afirma atuar apenas na fase de pesquisa mineral, sem realizar lavra ou exploração, e realiza estudos “de escritório” baseados em dados públicos e imagens de satélite, identificando restrições ambientais e áreas sensíveis, como unidades de conservação.
Segundo a empresa, caso os estudos indiquem potencial geológico e ausência de restrições ambientais, futuramente poderá solicitar autorizações para “coletas de amostras de rochas”, sem configurar atividade de “lavra, mineração ou exploração mineral”.
A M4E afirma manter compromisso com a “transição energética sustentável” e que a viabilidade de depósitos depende tanto do potencial geológico quanto da compatibilidade socioambiental.
A LRC (Lithium Royalty Corp), investidora canadense da M4E, preferiu não comentar o caso.
