A Defensoria Pública do Estado do Tocantins realizou, na última semana, dia 17, a etapa regional do projeto “Defensorias nos Babaçuais”, um encontro que reuniu mulheres quebradeiras de coco babaçu dos estados do Tocantins, Maranhão, Pará e Piauí. A ação, sediada em Imperatriz (MA), buscou ampliar o diálogo entre o sistema de justiça e as populações tradicionais que vivem da preservação dos babaçuais, territórios que enfrentam o avanço do desmatamento e o uso indiscriminado de agrotóxicos.

Idealizado pela Defensoria Pública do Tocantins, o projeto foi construído em parceria com o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB) e se desenvolveu em duas etapas: uma de atendimentos jurídicos e sociais no município de Augustinópolis e outra de educação em direitos humanos e escutas coletivas na região de fronteira entre Tocantins e Maranhão.

Nesta entrevista ao Jornal Opção Tocantins, a defensora pública Kênia Alves, que coordena o Núcleo Agrário e Ambiental (DPAgra) e é uma das responsáveis pela concepção do projeto, fala sobre sua trajetória na Defensoria, explica o surgimento da iniciativa, comenta os desafios das mulheres quebradeiras e reflete sobre o papel da Defensoria na promoção da justiça climática e ambiental.

Defensora, para começar, conte um pouco da sua trajetória até chegar à coordenação do DP Agra.

Eu estou na Defensoria Pública já há 17 anos, quase 18. Em janeiro completo 18 anos como defensora pública. Atuei em várias comarcas, começando em Porto Nacional, depois fui para Arraias, onde permaneci por um bom tempo, depois para Pará, e retornei para Porto Nacional. Hoje sou defensora na Defensoria de Fazenda Pública e, ao mesmo tempo, coordenadora do Núcleo da Defensoria Pública Agrária e Ambiental.

O DPAgra tem a função de levar acesso à justiça para as populações do campo, principalmente no que diz respeito à terra e à preservação do meio ambiente. Atuamos com agricultores familiares, povos e comunidades tradicionais, quilombolas, e também lidamos, em certa medida, com povos indígenas, embora essa questão indígena seja mais de competência da Justiça Federal. A gente atua mais com comunidades rurais no Tocantins, em uma perspectiva de defesa coletiva do direito à terra e ao meio ambiente, mas acabamos atendendo também outras demandas relacionadas ao campo.

Sobre essa atuação nas comunidades, como surgiu a ideia de levar a Defensoria para os Babaçuais?

A ideia começou em 2024, quando fomos convidados pelo Movimento Interestadual das Mulheres Trabalhadoras de Cocuíba Sul para participar de um seminário em São Miguel, alusivo ao Dia da Cadepereira de Cocuíba Sul, em 7 de novembro. Participamos do seminário e, a partir daí, surgiu a ideia de desenvolver uma atuação específica para essa população tradicional.

O projeto foi construído coletivamente com o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MICB). Nosso primeiro passo foi conversar com o movimento para entender se eles tinham interesse na iniciativa, e eles demonstraram que sim. A partir daí, fomos estruturando o projeto até que estivesse pronto para ser apresentado às outras defensorias públicas por meio do Colégio de Defensorias Públicas Gerais, que apoiou a iniciativa.

O projeto foi desenvolvido em duas etapas. A primeira etapa, realizada de 23 a 26 de setembro, envolveu atendimentos individuais e coletivos nos Babaçuais, especificamente em Augustinópolis, no campus da Unitins. Foram mais de 300 atendimentos, com participação da Defensoria Pública da União, INSS, Instituto de Identificação, Secretarias municipais da Mulher, Assistência Social, Saúde, Secretaria de Cultura, entre outros parceiros. Além dos atendimentos jurídicos, realizamos escutas coletivas, rodas de conversa, e cinedebates com as mulheres.

E a segunda etapa do projeto, como se deu?

A segunda etapa ocorreu em Imperatriz, no Maranhão, próxima ao Tocantins, em um encontro regional que reuniu mulheres dos estados do Tocantins, Maranhão, Pará e Piauí, além de defensores públicos e parceiros. Foi organizada como um seminário com mesas redondas e tendas de discussão, sempre priorizando a participação ativa das mulheres.

Esse encontro permitiu uma troca de aprendizados. Nós, enquanto Defensoria, pensávamos que iríamos levar educação em direitos humanos para essas mulheres, mas aprendemos muito com elas, com sua experiência e luta histórica. Foi a luta dessas mulheres que garantiu a aprovação de 21 leis estaduais e municipais chamadas “Leis do Babaçu Livre”, garantindo o acesso às florestas de Babaçu para coleta e produção, embora ainda enfrentem dificuldades no cumprimento dessas leis.

E a senhora poderia detalhar os principais desafios dessas leis?

O maior desafio é o respeito e cumprimento das leis. As palmeiras de Babaçu têm sido derrubadas, muitas vezes por desmatamento ou uso indiscriminado de agrotóxicos, e ainda não há uma lei federal que proteja esse direito. No Tocantins, há uma reserva extrativista de Babaçu que precisa ser regulamentada, assim como em outros estados.

Durante o encontro, as mulheres entregaram um documento cobrando a regulamentação da reserva extrativista, assinado pelo MICB, pela Associação de Mulheres do Bico do Papagaio e pela Associação dos Movimentos Sociais do Bico do Papagaio. A carta traz demandas que a Defensoria reconhece dentro de sua atribuição, mas que ainda precisam de ação efetiva para garantir o acesso à terra e à preservação ambiental.

Durante o projeto, o conceito de justiça climática também apareceu. Como a senhora enxerga isso dentro do contexto das mulheres quebradeiras?

Dentro da justiça ambiental, a gente tem a luta pela preservação do meio ambiente, mas também a luta pelo acesso a outros direitos. Uma visão de justiça ambiental mais ampla, que inclui o direito ao trabalho, à educação, à saúde, entre outros, como parte da preservação do meio ambiente.

Quando falamos de justiça climática, estamos falando do momento atual que vivemos. A crise climática provoca mudanças que já estão afetando o planeta, e muitas vezes as populações que menos contribuem para essas mudanças são as mais impactadas por elas, especialmente aquelas em situação de vulnerabilidade. Esse é um tema discutido mundialmente, inclusive nas conferências da COP. Frequentemente, os países que mais emitem gases de efeito estufa, derivados de combustíveis fósseis, são os menos afetados pelas mudanças climáticas, enquanto os mais impactados são aqueles que menos contribuem para o problema. O mesmo acontece com as pessoas.

As mulheres quebradeiras de coco do babaçu, por exemplo, têm uma luta histórica que garante, mesmo que minimamente, a preservação dos babaçus. Ainda assim, enquanto mulheres e em situação de vulnerabilidade, elas estão entre as mais atingidas pelas mudanças climáticas. Hoje, há diminuição do acesso à água em seus territórios, aumento do desmatamento e queimadas próximas, todos efeitos das mudanças climáticas. Elas, no entanto, não contribuíram para esses impactos.

Pelo contrário, são elas que asseguram a preservação da biodiversidade, que sabemos, por pesquisas científicas, ser um dos principais trunfos contra os efeitos das mudanças climáticas. Quanto mais biodiversidade preservamos, menos o planeta sofre. E essas mulheres estão na linha de frente dessa preservação, sendo, portanto, protagonistas da justiça climática. Dentro dessa luta, elas também buscam a justiça de gênero. É um movimento de mulheres que busca melhorar a vida delas em relação à preservação ambiental, mas também por meio de acesso à saúde, educação, trabalho e demais direitos fundamentais. Elas lutam por justiça ambiental, climática e social ao mesmo tempo.

E quanto aos saberes tradicionais dessas mulheres, como eles se articulam com a legislação e com a atuação da Defensoria?

Os saberes tradicionais se transpondo para a legislação através das Leis do Babaçu Livre, que garantem o uso coletivo dos recursos naturais, inclusive em propriedades privadas.Elas chamam a palmeira de “mãe”, dizem que são “filhas da mãe palmeira” e que os cachos de coco são como “os seios da mãe”. É uma relação de afeto e cuidado. Essa cosmovisão nos ensina a pensar o direito de outra forma: não como instrumento de posse, mas de convivência e reciprocidade.

Ainda assim, nosso sistema de justiça precisa compreender e agir a partir desses saberes, que muitas vezes são apropriados pela indústria sem remuneração ou respeito ao movimento. A Defensoria reconhece juridicamente esses saberes, mas é preciso mais conscientização social e institucional.

Enquanto coordenadora do DPAgra, a senhora acredita que a luta das quebradeiras ainda é subestimada pelas instituições?

Sim, o sistema de justiça ainda não tem compreensão plena da realidade dessas mulheres. As leis existem, mas sua aplicação e reconhecimento ainda são limitados. A atuação da Defensoria, em parceria com o MICB, é fundamental para que as leis sejam efetivamente cumpridas e os saberes tradicionais sejam respeitados.

Houve algum momento do projeto que tenha sido particularmente marcante durante esse projeto?

Dois momentos me marcaram profundamente. Primeiro, perceber a Defensoria como promotora de direitos humanos e instrumento do regime democrático, indo além da assistência jurídica, ao construir um projeto junto com o movimento social. Segundo, acompanhar a participação da juventude do MICB, que apresentou uma carta com reivindicações à Defensoria, demonstrando consciência política e maturidade impressionantes, mesmo sendo jovens entre 18 e 25 anos.

E sobre os próximos passos do projeto, existe uma previsão de continuidade?

Sim. Estamos analisando as demandas do MICB e pretendemos realizar uma audiência pública. Além disso, mantemos contato com defensores públicos de outros estados para articular estratégias comuns. Planejamos uma nova edição do projeto no próximo ano, sempre em diálogo com o movimento e respeitando a experiência dessas mulheres.