Comunidades tradicionais do norte do Tocantins relatam mudanças ambientais perceptíveis no cotidiano, especialmente na região do Bico do Papagaio, onde os rios Tocantins e Araguaia se encontram. Moradores, lideranças comunitárias e pesquisadores apontam redução no volume de água, alterações no regime de chuvas, aumento das temperaturas e maior frequência de incêndios florestais, com impactos diretos sobre o modo de vida local.

No quilombo Carrapiché, em Esperantina, o líder quilombola Antônio Pereira de Jesus, conhecido como Piolho, acompanha há cerca de três décadas as transformações do rio Tocantins. Segundo ele, trechos antes navegáveis hoje apresentam bancos de areia e ilhas recentes, que permitem a travessia a pé em determinados pontos. A diminuição do nível da água, afirma, ficou mais evidente após o aumento das queimadas nas margens, especialmente em 2023.

A comunidade de Carrapiché é formada por sete famílias que vivem em uma área de dez alqueires. De acordo com os moradores, parte do território original foi ocupada por grileiros. A subsistência depende do cultivo de feijão, banana e mandioca, além da pesca. Para reduzir a pressão sobre a vegetação e o aumento do calor, os quilombolas deixaram de plantar arroz. “Em dias muito quentes, a água do rio fica morna à tarde”, relata Piolho.

Rio Araguaia

Situação semelhante é observada ao longo do rio Araguaia. No povoado de Pedra Grande, também no norte do estado, uma antiga estrutura metálica usada para atracar a balsa que faz a travessia para o Pará permanece distante da água há cerca de duas décadas, segundo moradores. A pescadora aposentada Rosimeire Rodrigues afirma que os períodos de cheia estão mais curtos e com menor volume, enquanto as fases de seca se prolongaram.

Dados oficiais reforçam os relatos das comunidades. Um relatório publicado em junho pela Ambiental Media, com base em 51 anos de informações da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), aponta redução na vazão dos rios da região. A bacia do Araguaia registrou queda de 10% na vazão mínima, com secas mais intensas. Já a bacia do Tocantins perdeu 35% da disponibilidade hídrica, o equivalente a 12 piscinas olímpicas por minuto.

Diante da escassez de dados científicos específicos sobre o norte do estado, a Universidade Federal do Norte do Tocantins (UFNT) firmou parceria com a Universidade Estadual de Tyumen, da Rússia, para a instalação de uma Estação de Pesquisa e Monitoramento de Mudanças Climáticas no Bico do Papagaio. A unidade deve ser implantada a cerca de 20 minutos de barco de Pedra Grande, na área conhecida pelos moradores como “bico do Bico”, uma zona de transição entre os biomas Cerrado e Amazônia. O projeto integra um acordo de cooperação entre os governos brasileiro e russo.

O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) também propôs a criação de uma Área de Proteção Ambiental (APA) no Bico do Papagaio e outra no Paleocanal do rio Tocantins. Segundo o órgão, a medida contribuiria para a conservação dos ecossistemas e para a absorção de carbono. A proposta, no entanto, enfrenta resistência de produtores rurais do Tocantins, Maranhão e Pará, que manifestam preocupação com possíveis restrições às atividades agropecuárias.

Na avaliação de Maria Senhora Carvalho, 74, coordenadora do sindicato regional dos trabalhadores rurais e agricultores familiares de Esperantina, São Sebastião do Tocantins e Buriti do Tocantins, a criação da APA pode ajudar a enfrentar a perda de recursos hídricos. Levantamento realizado pelo sindicato em parceria com a ONG APATO identificou 11 lagos em Esperantina que deixaram de ser perenes e passaram a secar nos períodos de estiagem. Para ela, o desmatamento, praticado por grandes e pequenos produtores, está entre os principais fatores associados à redução da água e ao aumento do calor.

Como alternativa, o sindicato incentiva práticas de agroecologia. Segundo Maria Senhora, o plantio consorciado de espécies frutíferas em áreas preservadas tem permitido manter a renda das famílias e recuperar a vegetação.

Quebradeiras de coco babaçu

Em São Miguel do Tocantins, quebradeiras de coco babaçu também relatam dificuldades associadas às mudanças ambientais. A atividade depende da manutenção das palmeiras em pé, mas a oferta de cocos tem diminuído. Além disso, o aumento do calor e a abertura de áreas de floresta tornam a coleta mais difícil. No estado, a Lei do Babaçu Livre, em vigor desde 2008, proíbe a derrubada e a queima das palmeiras, além do uso predatório de agrotóxicos nessas áreas. As trabalhadoras, porém, afirmam que a fiscalização é insuficiente e que a legislação nem sempre é cumprida.

Os relatos das comunidades do Bico do Papagaio evidenciam transformações ambientais já incorporadas ao cotidiano da população local, que busca formas de preservar o território e manter suas atividades tradicionais diante das mudanças observadas nos rios e na paisagem do norte do Tocantins.

*Com informações da Folha de São Paulo