“História é a vida da gente que a gente passou e estamos vivendo”. A frase de dona Isabel Rodrigues, 66 anos, dita sob a sombra da área da sua casa na Comunidade Quilombola Barra da Aroeira, carrega séculos de resistência e memórias de sua vida, e das histórias de seus antepassados. Esta é a primeira de uma série de reportagens especiais que o Jornal Opção Tocantins produzirá sobre as comunidades quilombolas do Tocantins.

A Comunidade Quilombola Barra da Aroeira está situada no município de Santa Tereza do Tocantins, no Estado do Tocantins, há cerca de  80 km de Palmas, e abriga aproximadamente 130 famílias, com 720 pessoas, entre crianças e adultos, descendentes de pessoas que foram escravizadas no Brasil, de acordo com a última pesquisa realizada em 2023. Após anos de luta, a comunidade possui titularidade, de uma área de aproximadamente 1.000 hectares.

Dona Isabel lembrou de muitas histórias, tanto de sua ancestralidade, como das que viveu ao representar a comunidade nos diversos Estados do Brasil, quando ia em busca de garantir os direitos dos quilombolas da Barra da Aroeira e lutar pela defesa de seu território. Ela relembrou dos motivos que lhe orgulham em ser quilombola. “Fiquei um pouco orgulhosa de representar a minha comunidade, por ter andado muito em busca de coisas para aqui e eu andei. E ainda hoje, se surgir oportunidade, eu sou doente, hoje eu sou adoentada, mas surgir Deus dá o meio e a gente vai lutar”, ressaltou.

Dona Isabel contou muitas histórias vividas pela Comunidade | Foto: Guilherme Paganotto

Em uma de suas andanças, dona Isabel, contou na primeira viagem a São Paulo, com o objetivo de defender a titularização das terras da comunidade, lá ela falou como o povo vivia, e explicou da necessidade de regularização para garantir moradia para os povos. Em seus relatos, ela contou que explicou às autoridades presentes, sobre como viviam as famílias do quilombo, apressadamente, foi interrompida por uma briga.

“Quando eu fui para São Paulo a primeira vez, eu acho que tinha ainda um papel desse tempo. Aí tinha uns pé de manga assim no fundo da casa, limpei mais o meu marido e botei as cadeiras lá. Comecei falando sobre o que vivi. Muitos diziam “Eu pensava que você tinha ido nessa reunião era buscar alguma coisa de futuro, mas você foi buscar, foi meio de nós ser escravizado” – mas tudo bem, fiquei calada. Ela continuou relembrando as falas, “Quilombo é povo do tempo da escravidão. Eu não quero que esse negócio seja expandido aqui da comunidade não, porque é um chama. Falar que tem um quilombo nesse lugar, os meus senhores vem buscar para botar no cativeiro”, e então eu entendi”, afirmou dona Isabel. 

Origem

A origem da Comunidade Quilombola Barra da Aroeira, surge da união de Félix José Rodrigues e Venância Rodrigues, que segundo os ansiãos da comunidade, ele era um “negro de força e coragem”, e ela, uma negra “sábia e bela”. Eles viviam em um quilombo localizado no Sul do Piauí, e em 1867, Félix se alistou no Exército para lutar na Guerra do Paraguai, com o objetivo de conquistar sua liberdade. Em reconhecimento à sua participação na guerra, recebeu uma doação de “12 léguas em quadra de terras”, o equivalente a cerca de 79 mil hectares. 

Comunidade Quilombola Barra da Aroeira | Foto: Divulgação

O casal mudou-se para essa região por volta de 1871, junto com sua família, após Félix ter feito uma varredura e delimitado qual região lhe seria de direito. Em entrevista ao Jornal Opção Tocantins, dona Isabel contou que as histórias de seus antepassados, diz que escolheu “terras sadias para plantação”, ou seja, terras férteis para o cultivo. Às margens do rio Caracol ao córrego Funil e dos rios Balsas e Serra Negra aos córregos Brejo dos Padres, Cambaúba e Tamboril, passando ainda pelos riachos Cutilado, Juá e Boa Vista. No entanto, segundo os moradores locais, o documento original da doação foi destruído em um incêndio, e as tentativas posteriores de registro oficial não foram completamente concluídas. A área passou então a ser ocupada, a partir de 1930, por outros descendentes de pessoas escravizadas, marco inicial da formação da atual comunidade.

Fonte de subsistência

A principal forma de subsistência da comunidade é a agricultura, com cultivos variados como arroz, milho, mandioca, feijão, abóbora e hortaliças. O extrativismo também é fundamental, com a coleta de frutos como pequi, buriti, bacaba, e o baru, planta nativa da região, o que contribui para uma grande diversidade alimentar, comércio e cultural. Vale ressaltar que todo produto consumido pela comunidade também é fonte de renda pelo comércio local, e todo o lucro das vendas ajudam na renda familiar, tudo agregado à venda do artesanato e benefícios sociais.

Liderança da comunidade, Joana Rodrigues | Foto: Guilherme Paganotto

Para a liderança da comunidade, Joana Rodrigues, ser quilombola é a junção de todas essas características, vinda de uma história de resistência e busca por liberdade.

“Para mim ser quilombola, é ser descendente de um povo de garra, e resistência, e significa ter costumes e cultura específica, ter uma alimentação rica e diversa, como a que temos aqui na comunidade”. 

Segundo Joana, recentemente foi comemorado o 1º Festival do Baru, devido ao alto consumo, e gosto popular pela castanha do baru. “Nós vendemos mais a fruta “in natura”, seja ela torrada ou crua, nós ainda fazemos paçoca, e temperos para frango caipira que criamos aqui”. 

Parte da culinária, Baru | Foto: Guilherme Paganotto

Tradição 

A tradição também se mantém viva por meio de parteiras, benzedeiras, rezadeiras, raizeiras, tocadores de viola de buriti, caixa de folia e foliões das festas populares, como as Folias de Reis e do Divino, com contação de causos e lendas locais. “Temos também o teatro retratando as histórias de nossos antepassados, temos a capoeira, o zumba, a dança da sussa, além da apresentação da dona Hermínia”, destacou Joana. 

Foto: Marcelo Les / Comunicação DPE-TO

Com cantos que carregam tanto herança cultural quanto o clamor por direitos e melhores condições de vida, um dos símbolos da forte identidade cultural da comunidade é o grupo quilombola Maculelê Raiz, que expressa em suas cantigas a ancestralidade e a resistência do povo. Uma das músicas entoadas pelo grupo diz: “Sou eu, sou eu, sou eu Maculelê, sou eu/ Viva Zumbi, nosso rei negro/ Corre pro mato que a batalha começou/ Vamos lutar meu senhor”.

Joana afirma que apesar de conviver com outros costumes, devido aos estudos e trabalho fora da comunidade, a cultura ainda é algo forte entre jovens e crianças.  “É uma cultura jovem forte entre os jovens, a maioria deles estão estudando, e alguns trabalham fora também,  mas a nossa identidade, nós conseguimos manter vivo. Na escola também são reforçadas as histórias dos antepassados para as crianças”. 

Tomada de decisões

As decisões são tomadas durante reuniões organizadas pela Associação Barra da Aroeira. Ela é organizada pelo Conselho da associação, o Conselho Fiscal, a Diretoria, e demais partes contribuintes. “Aqui na nossa comunidade são feitas assim. Antes da reunião a gente senta, conversa o que tá precisando ser articulado com a Assembleia Geral, aí nós vai e articula e tenta fazer e decidir o melhor. Tudo e tudo que é discutido é para benefício da comunidade geral”, explicou a líder, Joana. “Muitas vezes é algum conflito que tem dentro da nossa comunidade, porque já teve alguns conflitos aqui, tipo assim, uma pessoa que não é da comunidade que faz casa dentro, aí não quer sair”. 

Muitos casos são discutidos e resolvidos pelas próprias lideranças, outros casos necessitam do Poder Judiciário, como a Defensoria Pública do Estado do Tocantins (DPE-TO) para a defesa de seus direitos, em especial o direito ao território tradicional. Além do apoio jurídico, a DPE realiza ações dentro da comunidade, reforçando os direitos, além de iniciativas que promovem o combate ao racismo. 

Escolaridade

Na comunidade existe uma unidade escolar de Ensino Fundamental, a Escola Municipal Horácio José Rodrigues, com séries do 1º ao 9º ano. Já a partir do Ensino Médio, os adolescentes e jovens precisam ir em busca de ensino educacional até o município de Santa Tereza, a cerca de 14km de distância, com veículo disponibilizado pela própria Prefeitura. 

A professora, autora, compositora e cantora, Salviana Rodrigues da Silva, 58 anos, leciona desde 1993 na Escola Municipal Horácio José Rodrigues, e afirma que durante seus anos de sala de aula, sempre procurou fortalecer a cultura quilombola nos estudantes. Escola Municipal Horácio José Rodrigues. “Sempre eu tento passar isso, a importância da nossa cultura e histórias para as crianças. E de uns anos pra cá, surgiu a disciplina Cultura Quilombola”. 

Salviana Rodrigues tem livros e composições de sua autoria, e se apresenta nas festas culturais da comunidade. Entre suas produções publicadas estão “Poesia e Voz no Jalapão – TO: Cotidiano no Quilombola Barra da Aroeira”, e “Era uma vez… na Barra da Aroeira”, o qual ela contribui com histórias nativas. 

Professora, autora, compositora e cantora, Salviana Rodrigues da Silva | Foto: Guilherme Paganotto

Como as demais mulheres, Dona Hermínia Rodrigues nasceu e criou-se dentro da comunidade. É reconhecida por seus conhecimentos, e lidera o grupo folclórico da Dança do Lenço, além de ser artesã, raizera e benzedeira. Ela é uma das pessoas que ajudam a manter viva a história de seus antepassados na mente das crianças, com roda de histórias contadas no “Chapéu de Palha” da comunidade. 

Serviços básicos

Mesmo sendo um serviço público essencial, definido pela lei nº 7.783/89 (Lei de Greve), a comunidade, que está localizada a poucos quilômetros de Santa Tereza, ainda necessita de rede de tratamento de esgoto. 

Todas as famílias têm acesso à energia elétrica, e algumas possuem acesso à internet em suas residências. Já com relação à saúde, na comunidade existe um Postinho de Saúde, onde realizam atendimento de casos mais simples, em casos mais complexos os pacientes são encaminhados para Santa Tereza ou mesmo para Palmas. “Temos médico todos os dias de manhã, das 7h às 11h. E temos um técnico de saúde que fica de plantão 24 horas. Mas sempre tem o que melhorar”, disse Joana.

Comunidades quilombolas

Segundo a Fundação Cultural Palmares, existem no Brasil 2.474 comunidades quilombolas certificadas, sendo 39 comunidades localizadas de norte a sul do Tocantins.

A Comunidade Quilombola Barra da Aroeira é rica em patrimônio cultural, histórico, com tradição e saberes populares. E para as famílias a comunidade é símbolo de resistência e luta, na busca por reconhecimento dos direitos recebidos por ancestralidades como identidade negra. 

Joana compartilhou a rica cultura da Comunidade | Foto: Guilherme Paganotto

Joana expressa que queria que todas as pessoas conhecessem o quilombo e entendessem o sentido de ser quilombola.

“Eu queria mesmo que as pessoas entendessem e soubessem da nossa comunidade, e ser quilombola é a vivência e a comunhão. Porque nós temos uma vivência muito boa, passada por nossos antepassados. Temos também uma culinária riquíssima que não temos nem como se expressar, o tanto que a nossa culinária é tão riquíssima. Conhecer realmente a nossa história, conhecer como é ser uma rezadeira, ter uma rezadeira na nossa comunidade, ter uma pessoa para tirar o quebranto das crianças pequenas, quando a criança está só dormindo, só dormindo. A rezadeira, dona Hermínia, vai lá benze a criança e a criança melhora. Então, é isso que nós temos para oferecer”, concluiu.