Entrou em vigor a lei que reconhece oficialmente o abandono afetivo de criança ou adolescente como um ato ilícito civil — passível de indenização. O abandono afetivo é caracterizado pela omissão dos pais ou responsáveis no dever de garantir não apenas o sustento material, mas também o cuidado emocional e a convivência familiar.

Publicada no Diário Oficial da União no último dia 29 de outubro, a Lei 15.240, de 2025, modifica o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para determinar que a falta de atenção, carinho e presença dos pais na vida dos filhos pode gerar consequências legais. A norma reforça que a convivência e a “assistência afetiva” são deveres parentais, assim como o sustento material, a guarda e a educação.

O Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca) considera a inclusão expressa do abandono afetivo como ato ilícito civil no ECA uma evolução normativa essencial. Em entrevista ao Jornal Opção Tocantins, o consultor jurídico e colaborador da entidade, Matheus Brito afirma que “a mudança reconhece que o dever de cuidado previsto no art. 4º, §3º do ECA compreende a orientação quanto às principais escolhas profissionais, educacionais e culturais, e o apoio em momentos intenso de sofrimento ou dificuldade e a presença física e emocional, quando possível de ser atendida”.

Consultor jurídico e colaborador da entidade, Matheus Brito | Foto: Izadora Porto/ASCOM CEDECA/TO

Brito explica que, do ponto de vista jurídico, a alteração alinha o texto legal à jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que já reconhecia a responsabilização civil em casos de omissão grave no dever de convivência e cuidado, desde que comprovado o dano psíquico e o nexo causal. “A positivação no ECA dá maior segurança jurídica a esse entendimento e fortalece o caráter pedagógico da responsabilização, ao afirmar que vínculos afetivos e convivência familiar são dimensões indissociáveis do direito à proteção integral”, pontua.

Ele ressalta, contudo, que a norma “não visa compelir sentimentos, mas coibir a negligência afetiva dolosa ou culposa — a omissão reiterada de cuidado, atenção e presença — que resulte em prejuízos emocionais mensuráveis”. Para o Cedeca, a inovação legislativa reforça a centralidade do afeto como fator de desenvolvimento saudável e contribui para a construção de uma cultura de parentalidade responsável. “No cotidiano das famílias, tende a incentivar práticas de convivência mais estáveis, empáticas e conscientes de que a ausência afetiva pode gerar impactos jurídicos e psicológicos relevantes”, disse.

Foto: Izadora Porto/ASCOM CEDECA/TO

Brito acrescenta que a lei também exige aprimoramento nos fluxos de acolhimento, escuta e encaminhamento: será necessário qualificar as triagens e avaliações técnicas para diferenciar conflitos familiares comuns de situações configuradoras de abandono afetivo. “A abordagem deve ser interdisciplinar, integrando o sistema de garantia de direitos:  Conselhos Tutelares, Ministério Público, Defensoria Pública e rede socioassistencial”, afirma.

O consultor destaca ainda que, “o reconhecimento do abandono afetivo como ato ilícito civil é um avanço jurídico e simbólico que reafirma a importância da responsabilidade parental emocional, sem perder de vista os princípios da proteção integral e da prioridade absoluta que norteiam toda a política de atendimento à infância e adolescência”, acrescenta.

Segurança 

Para a psicóloga e jornalista Raimara Lourenço, a lei que reconhece o abandono afetivo de crianças e adolescentes como ato ilícito civil — passível de indenização — pode trazer resultados positivos a longo prazo. “A maioria das mães que acompanho com questões ligadas a ausência paterna são em casos já judicializados por conflitos de guarda e relacionados a pensão alimentícia. Então todas as intervenções são voltadas a orientações relacionadas a direitos e apoio emocional durante o processo”, afirma.

Psicóloga e jornalista, Raimara Lourenço | Foto: Arquivo Pessoal

Segundo Raimara, a segurança afetiva é essencial para o desenvolvimento saudável e influencia diretamente a saúde mental e as relações interpessoais. “Ela permite que as pessoas se sintam à vontade para expressar suas emoções, compartilhar seus pensamentos e buscar apoio quando necessário. A segurança emocional é crucial para o desenvolvimento pessoal e social, pois influencia diretamente a saúde mental e o bem-estar”.

De acordo com a profissional, a vivência de um ambiente emocionalmente seguro na infância é essencial para formar adultos com equilíbrio. “A segurança emocional é especialmente importante durante a infância, pois é nessa fase que as bases para a saúde emocional futura são estabelecidas. Crianças que crescem em ambientes seguros emocionalmente tendem a desenvolver uma autoestima saudável, habilidades sociais e uma maior capacidade de lidar com o estresse. Na vida adulta, a segurança emocional continua a desempenhar um papel vital na saúde mental e nas relações interpessoais”, explica.

Sobre os efeitos desta lei, ela pondera: “Não dá para saber qual a proporção que vai tomar com a execução dessa nova lei. No entanto, eu penso que ela pode trazer impactos positivos a longo prazo, porque mesmo que não diminua o índice de abandono afetivo, vai trazer reparação quando houver”.

Nova legislação

A nova legislação define assistência afetiva como o contato e a visitação regular destinados a acompanhar a formação psicológica, moral e social da criança ou adolescente. O conceito inclui ainda o dever de orientar sobre decisões importantes — como escolhas educacionais e profissionais —, oferecer apoio em momentos difíceis e manter presença física quando solicitado, sempre que possível.

Se comprovada a omissão ou o abandono afetivo pela Justiça, pais ou responsáveis poderão ser condenados ao pagamento de reparação de danos (indenização) pelos prejuízos causados, além de outras possíveis sanções. A lei também prevê que, em casos de maus-tratos, negligência, opressão ou abuso sexual, a autoridade judiciária poderá determinar o afastamento do agressor da moradia comum.

O ato ilícito é definido como uma conduta contrária à lei que gera responsabilidade civil e pode resultar em indenização. Ele se diferencia do crime, que é um ato ilícito penal e pode ser punido com prisão, multa ou outras penalidades, e não apenas com compensação financeira.

A medida tem origem no PLS 700/2007, de autoria do ex-senador Marcelo Crivella (Republicanos-RJ). O texto foi aprovado em votação final pela Comissão de Direitos Humanos (CDH) em setembro de 2015, com relatoria do senador Paulo Paim (PT-RS), e posteriormente encaminhado à Câmara dos Deputados.