A cultura do marmitex
12 novembro 2024 às 17h16
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Antônio Egno*
Todas as coisas estão descobertas e expostas aos olhos daquele a quem temos de prestar contas”(Hebreus 4.13)
Graças a Deus pela escrita e pela leitura. Seria penoso se eu tivesse que falar para você o que estou escrevendo, pois estou ligeiramente rouco e minha garganta ainda está ferida em consequência do evento traumático do último fim de semana.
Não que tenha sido espalhafatoso. Na verdade, foi até silencioso e discreto. E depois, tentando sorrir do acontecido, enquanto o relatava para as minhas filhas, eu disse que o evento tinha me feito lembrar de um episódio que vi alguma vez na TV, sobre as formas mais estranhas ou inusitadas (porque banais) de se morrer. As meninas fizeram cara de quem estava tentando assimilar minha mistura de humor com horror. Foi quando eu me dei conta de que não conseguia compartilhar com as pessoas mais íntimas e queridas minha impressão sobre o evento mais terrível pelo qual passei em muitos anos.
Na verdade, não é fácil narrar um evento que foi em si mesmo ridículo (esse é o termo), durou poucos segundos e no qual, mesmo assim, você quase perdeu a vida. Todo o pânico e apreensão que você passou são difíceis de descrever, pois a duração foi tão curta e você está ali, tão vivo enquanto conta, sem nenhum arranhão aparente: como alguém que está de fora poderia mensurar isso? Somente os três que estão dentro (você, sua garganta e Aquele que tudo vê) sabem o que você quer dizer.
Daí a impressão de solidão exterior que isso desencadeia em você. E que te leva a meditar no irônico contraste entre a facilidade com que você pode morrer e a dificuldade que você mesmo e os outros têm de compreender e assimilar essa revelação. Venho refletindo nisso desde então. E dei muito graças ao Senhor por ter me concedido continuar vivendo. Mas também voltei a me lembrar da cultura do marmitex. E dessa vez, o incômodo que já sentia com ela assumiu o ímpeto de escrever a respeito.
A cultura do marmitex se chama assim em homenagem ao evento que a configurou pela primeira vez, quando percebi que os restaurantes têm o detestável hábito de colocarem nos marmitex a comida de menor qualidade do restaurante. Eles a preenchem com carne de segunda, mal assada e às vezes esturricada, em pedaços feios de grandes e duros. Isso quando não lhe destinam tomate “passado” e outros desprezos. Os mesmos restaurantes que se sentem obrigados a servir picanha fumegante em tiras finas e elegantes para o cliente que é atendido in loco no balcão. Por que isso, se o sujeito que pede a comida em casa está pagando pela comida tanto quanto o cliente que almoça no restaurante? De onde veio essa cultura de que a comida destinada à marmita pode e deve ser a de qualidade inferior?
Compreendi que tem a ver, basicamente, com as possibilidades de visualização, e isso no sentido amplo. O que está por trás da cultura do marmitex é o raciocínio de que, se a pessoa vai abrir a marmita em outro lugar, então tudo bem: ela não vai ver a minha cara de malandro mesmo. E como não vamos estar na presença um do outro, não preciso ser honesto nem sentir vergonha, pois não vou ser punido (com coisas do tipo: “Como assim! Essa carne horrorosa aí não, churrasqueiro! E vê se corta em tiras mais bonitinhas, por favor!”). O cliente ausente é como direito inexistente, pois só se atende o direito da presença física que se impõe como reivindicação, reclamação e possível exigência de reparação.
E quando digo direito não estou levando em conta o “direito do consumidor” nem considerações comerciais. O problema, para mim, é ético. O que a cultura do marmitex revela é uma certa falência moral, a perda coletiva da ideia de que é preciso fazer o que é certo mesmo quando não há constrangimento físico ou material implicado. Definha a convicção de que para se fazer o certo não se precisa de outra motivação além da própria satisfação da consciência. Para perceber a dimensão disso, basta refletir que pertence à mesma cultura do marmitex outros fenômenos afins: a venda de caixas de sapatos contendo um único pé para turistas apressadas, o envio pelos correios de caixas de encomendas vazias no lugar de produtos pagos, cédulas falsificadas passadas como troco na feira do bairro… Todos esses eventos são doses distintas de um mesmo veneno: a malandragem dissimulada e fortalecida na impunidade da “ausência”: o que os olhos não vêem o coração não sente.
Um antídoto seria recuperar pelo menos um aspecto da noção de coram deo (na presença de Deus). Se gerentes de restaurantes, políticos, atendentes de balcão, todos nós nos lembrarmos que estamos, em toda a nossa vida, em cada aspecto dela, na presença de alguém que tudo vê e a quem temos de responder, talvez menos pessoas sejam ludibriadas, menos clientes morram por engasgar com a comida e até comece a desaparecer a cultura do marmitex.
Antônio Egno
Antônio Egno do Carmo Gomes nasceu em Bandeirantes do Tocantins (TO) em 1974. Foi alfabetizado pela mãe e introduzido ao mundo literário pelas rodas de cordel promovidas pelo pai. Realizou seus estudos universitários na Universidade Federal de Goiás e é professor de Letras na Universidade Federal do Tocantins (UFT) desde 2011.
Tentou escrever seu primeiro enredo policial aos 15 anos, mas só lançou o primeiro romance em 2018, aos 46 anos, marcando o início da trilogia “Beleza & Temor”, da qual já publicou também o segundo volume.
Além disso, é autor do cordel “As desventuras de Nóis Mudemo”.
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