Thiago Barbosa Soares*

Vivemos tempos em que o discurso jornalístico tem assumido um papel determinante na formatação de modos de vida, crenças e percepções sociais. O que se publica, muitas vezes, tende a se tornar sinônimo do que se pensa ou se deve pensar. E, nesse ambiente, a religião, longe de ser exceção, figura como um dos terrenos mais férteis para disputas simbólicas que, à primeira vista, podem parecer neutras, mas estão embebidas de estratégias discursivas e relações de poder.

Um exemplo revelador dessa engrenagem discursiva encontra-se em matéria relativamente recente publicada no portal Jornal Opção, intitulada “Evangélicos deixam o protestantismo, buscam o catolicismo: um movimento em crescimento?” (cujo link é: https://www.jornalopcao.com.br/ultimas-noticias/evangelicos-deixam-o-protestantismo-buscam-o-catolicismo-um-movimento-em-crescimento-653024/). À primeira leitura, a manchete parece anunciar um fenômeno religioso em expansão. No entanto, uma análise mais atenta, e menos ingênua, leva-nos a perceber o quanto essa produção midiática está menos preocupada com a fidelidade estatística e mais com a construção de um efeito de verdade.

Curiosamente, o próprio texto da matéria reconhece a ausência de dados consistentes que sustentem a suposta tendência. Ao mesmo tempo, lança mão de relatos individuais e especulações espirituais para sugerir que o protestantismo (religiões conhecidas atualmente como evangélicas), identificado frequentemente com posições mais conservadoras, estaria cedendo terreno ao catolicismo, frequentemente associado a perspectivas progressistas. Trata-se, portanto, não apenas de informar, mas de desenhar uma narrativa que, ao se valer da ambiguidade e do prestígio do meio de divulgação, instala no imaginário coletivo uma ideia com forte potencial simbólico.

É nesse ponto que o olhar mais crítico e informado encontra respaldo na teoria foucaultiana do discurso. Longe de considerar os discursos como simples representações da realidade, Michel Foucault ensina-nos que eles operam como dispositivos de poder, organizando saberes, legitimando práticas e moldando condutas. O jornal, nesse caso, atua como vetor de um regime de verdade: não apenas relata, mas constitui o real (representacional).

Sob essa ótica, a notícia não apenas menciona uma possível conversão religiosa; ela a inscreve como fenômeno significativo, mesmo diante de números que a contradizem. A contradição não é acidental. Ela cumpre função estratégica: promove uma formação discursiva afinada com um projeto ideológico específico, no caso, progressista, capaz de disputar hegemonia simbólica no seio do campo religioso e, por extensão, político (a continuidade da extensão dá-se em outros âmbitos, como o cultural, por exemplo).

Ao sugerir que evangélicos estão migrando para o catolicismo por buscarem uma espiritualidade “mais rica” e “diversificada”, o texto insinua uma superioridade simbólica de uma vertente sobre a outra (uma avaliação nitidamente alinhada a um julgamento de valor travestido de análise). No plano discursivo, o protestantismo aparece como uma tradição empobrecida e literalista, enquanto o catolicismo ergue-se como portador de profundidade, misticismo e interpretação refinada.

Em termos epistemológicos, tal construção não é neutra, já que participa daquilo que podemos nomear, a partir de Foucault, de “episteme falseada”: uma estrutura de saber que opera pela validação de narrativas que não necessariamente correspondem à realidade empírica (concreta e vivenciada por todos), mas que são reiteradas em dispositivos midiáticos até tornarem-se senso comum. Assim, mesmo diante de dados que indicam o crescimento do número de evangélicos no Brasil, o que se impõe é a impressão inversa, não por erro, mas por estratégia.

Aqui está o ponto mais inquietante: as formações discursivas hegemônicas não apenas narram o mundo, elas o reconfiguram tal como uma verdade . Por isso, ao invés de aceitarmos incondicionalmente as notícias como janelas transparentes da realidade, precisamos aprender a lê-las como práticas discursivas situadas em relações de poder, permeadas por interesses, valores e projetos de mundo.

A mídia, nesse jogo, não é vilã nem heroína, mas é, sem dúvida, uma das principais arenas em que se decide o que pode ser dito, quem pode dizer, e como aquilo que é dito será acreditado. Quando se trata de religião (terreno sensível por excelência) essa responsabilidade é ainda maior. Cabe ao leitor, hoje mais do que nunca, cultivar o espírito crítico diante das verdades que se anunciam com aparência de evidência. No horizonte dessa perspectiva reflexiva e, claro, de seu aprofundamento, recomenda-se a leitura do capítulo VIII (do livro Arqueogenealogias do discurso do Norte), Religião na mídia: uma arqueogenealogia do discurso sobre protestantismo e catolicismo, do qual o presente texto é uma decantação “deformada”.

* Dr. Thiago Barbosa Soares é professor da UFT em Porto Nacional (TO), atuando no curso de Licenciatura em Letras e no Programa de Pós-Graduação em Letras. Editor-chefe da revista Porto das Letras, é bolsista de produtividade do CNPq.