Carmo Gomes*

Todo mundo conhece o lugar em que se passou a história que acabou dando origem à anedota do boi de piranhas. Não é muito difícil descobri-lo, bastando, para tanto, ouvir a música “Travessia do Araguaia” dos saudosos Tião Carreiro e Pardinho.

Pois certo viajante, passando por aquele lugar, resolveu conhecer mais de perto as origens da fábula. Escolheu para uma conversa um magro e simpático velhinho que pescava pacientemente às margens do formidável rio. O bom homem o atendeu com presteza, alegre pela oportunidade de falar das coisas da sua terra.

O viajante quis saber se havia mesmo muitas piranhas naquela região, com a desculpa de fazer o outro rememorar o famoso acontecimento. Para sua surpresa, o velhinho tinha para o evento uma outra versão, bastante inglória e pouco favorável. O viajante chegou a supor que, doravante, a anedota do boi de piranhas não deveria mais ser usada como analogia dos expedientes da política brasileira, já que o velhinho disse, convicto, que fizera parte do comboio cantado na música e que o verdadeiro ocorrido da história tinha sido mais ou menos assim.

Sendo muito comum que um indivíduo mais lento ou menos saudável da boiada fosse devorado nas travessias do Araguaia, naquela cheia os bois – e o velhinho garantiu ser possível não só tal fabulação como sua recorrência – os bois como que se olharam e tomaram uma decisão: todos passariam lentamente, como se todos fossem bois de piranha. Isso confundiria, como de fato confundiu, os parvos peixes, que ficaram sem saber a qual mocotó se dedicar. Assim, todos os bois levaram algumas mordidas leves; mas, como eram muitos e como tinham tido a vantagem da surpresa, chegaram, a bem-dizer, intactos na outra margem…

Ora, para evitar que aquilo se tornasse uma estratégia comum e mesmo uma desmoralização completa, uma piranha inteligente se encarregou de espalhar o boato, a outra versão da história, a qual se encontra, desde então, completamente disseminada.

Amoral da fábula: (versão cínica das piranhas) é preciso insinuar que todo mundo vai cair para que caia pelo menos um; (versão resignada dos bois) antes todos serem devorados aos poucos do que um só ser devorado por vez.

* Nascido em Bandeirantes do Tocantins (TO) em 1974, Carmo Gomes foi alfabetizado pela mãe e iniciado no mundo literário pelas rodas de cordel do pai. Fez seus estudos universitários na Federal de Goiás e é professor de Letras na UFT de Porto desde 2011. Tentou escrever o primeiro enredo policial aos 15, mas só lançou o primeiro romance em 2018, aos 46 anos. Era o primeiro livro da sua trilogia “Beleza & Temor”, da qual já publicou também o segundo volume. Publicou ainda o cordel “As desventuras de Nóis Mudemo”.