*Silvana Bastos

No alto dos meus 50 anos, pergunto-me a quem interessa tamanho desmatamento do Cerrado? Nesse tempo ínfimo de vida, meus olhos assistiram à destruição de cerca de 900 mil km2 de Cerrado, metade da sua área original de vegetação nativa. Um piscar de olhos, mesmo diante da história mais recente do Cerrado, com cerca de 12 mil anos, em que as espécies do Cerrado levaram para se adaptarem à mudança para um clima mais seco com períodos alternados de estiagem e chuvas, característico do bioma, até chegar nesse ambiente tão generoso, que armazena e distribui águas para rios que alimentam a Amazônia, Pantanal, Caatinga e Mata Atlântica, ou seja, conecta e é chave para o funcionamento de vários sistemas hídricos do Brasil, para citar apenas um dos inúmeros bens e serviços ecossistêmicos do Cerrado. Sim, estou falando da Água, fundamental à Vida, mata a sede e também move a economia do país: energia, produção de alimentos, turismo, etc. tudo dependente da água, a mesma que só é “produzida” em quantidade e qualidade quando há ambientes naturais conservados, protegidos e bem manejados.

Então, parece óbvio que zerar o desmatamento e garantir a conservação dos 50% restantes de Cerrado no Brasil interessa à maioria esmagadora dos brasileiros. Correto? Errado! Há muitas evidências para essa resposta: em 2023 amargamos recordes nas taxas de desmatamento no Cerrado e ainda, a composição das assembleias legislativas estaduais e do Congresso Nacional conta com raríssimos parlamentares que atuam para uma legislação mais eficaz de proteção do Cerrado – só a PEC 504/10, Proposta de Emenda à Constituição que elevam o Cerrado e a Caatinga à mesma categoria da Mata Atlântica, Pantanal e Amazônia enquanto patrimônios nacionais, tramita há mais de 10 anos sem avanço.

Diante desse triste quadro nacional, aterrissamos no Tocantins e a minha pergunta continua: a quem interessa o desmatamento? O Tocantins é totalmente imerso na região geográfica da Amazônia Legal, mas é o bioma Cerrado que predomina em 87% do seu território. Por abrigar também a Amazônia e suas áreas de transição é um detentor de megabiodiversidade e boa parte das importantes bacias hidrográficas do Tocantins e Araguaia. Outra riqueza incomensurável é a diversidade de povos e comunidades tradicionais: são indígenas, quilombolas, pescadores artesanais, agroextrativistas e tantos outros que são atacados e precisam lutar cotidianamente pelo reconhecimento e valorização dos seus modos de vida sustentáveis e do direito fundamental, previsto na Constituição Federal, à regularização fundiária e proteção dos territórios tradicionalmente ocupados.

Os dados só confirmam o que os olhos veem ao rodarmos pelas estradas do estado – o Tocantins vem tratando muito mal seu território: está entre os primeiros na lista dos campeões de desmatamento do Cerrado em 2023. Somente no mês de maio, quando inicia o período da seca, o estado registrou 32,4 mil hectares desmatados, segundo o SAD Cerrado (Sistema de Alerta do Desmatamento), 52% a mais que em maio de 2022.

A destruição do Cerrado tem como principal finalidade, a conversão de áreas conservadas para o agronegócio, em especial para a produção de soja e milho no Tocantins. Mesmo focando nas áreas legais, ou seja, em que a propriedade é regularizada e que cumpre a legislação ambiental poderíamos refletir se essa estratégia econômica realmente atende aos interesses coletivos dos tocantinenses, já que estudos, a exemplo do relatório “Segure a Linha” do Greenpeace, demonstram que o agronegócio deixa no local um rastro de passivos ambientais e sociais incomensuráveis, ao mesmo tempo que promove a fuga da riqueza gerada para outros estados e países, visto que a maior parte da produção não alimenta a população do estado, é voltada à exportação, agrega pouco à indústria local, grande parte dos lucros vão para contas bancárias de pessoas que não moram no estado e de empresas que não movimentam a economia local.

Mas, quero finalizar essa reflexão, com apenas três exemplos, de dezenas que poderia elencar, sobre fatos que vem favorecendo o desmatamento no estado e que nos dão pistas sobre a pergunta: a quem interessa o desmatamento no estado? A lei estadual de licenciamento ambiental (Lei 3.804/2021) vinha respaldando processos de licenças e liberação de empreendimentos que degradam o meio ambiente, de forma flexível e em desacordo com a Constituição, mas somente em 2023, teve 22 artigos julgados como inconstitucionais pelo Tribunal de Justiça.

Outro agravante que potencializa e favorece o desmatamento ilegal, caça e outros crimes ambientais é a imobilização do Naturatins, órgão estadual responsável pela fiscalização, controle ambiental e pela gestão e proteção das unidades de conservação estaduais. É obvio que a ausência ou baixa presença do estado estimula a atuação dos criminosos. Ou exemplo que afetou diretamente a proteção do Cerrado ocorreu em 2022 quando o poder judiciário do Tocantins suspendeu os efeitos do ato que constituiu o Conselho Deliberativo da Área de Proteção Ambiental (APA) da Serra do Lajeado, impedindo o colegiado de se reunir, acatando uma ação movida pela Associação do Produtores das Serras do Lajeado e Taquarussu, visando impedir que o colegiado aprovasse o novo Plano de Manejo da UC que propunha uma transição gradual da agricultura em grande escala para a agroecologia.

Um terceiro vetor de desmatamento, que também gera mortes, sofrimentos e conflitos, é a baixa execução dos governos estadual e federal em cumprir suas metas de gestão e obrigação legal em relação à regularização fundiária e destinação de terras públicas e finalidades prioritárias em nossa Constituição – reforma agrária e territórios tradicionalmente ocupados. Desse modo, a regularização caminha ao passo de tartaruga manca para os casos dos territórios tradicionais e assentamentos rurais, enquanto grandes invasores ilegais – os grileiros – desmatam e consolidam áreas voltadas à agropecuária de larga escala ou à especulação imobiliária, sem a fiscalização do Estado ou sem a transparência sobre a legalidade dessa destinação, a exemplo das dúvidas geradas pela convalidação de registros imobiliários, previstos na Lei 3.896 de 2022 do estado do Tocantins.

Diante desse panorama, continuo com a pergunta e a direciono a você, leitor. Mas, tenho certeza que o desmatamento não é de interesse da maioria dos tocantinenses e dos brasileiros, que prezam pela vida e esperam que seus filhos e netos tenham as condições ambientais para crescerem com saúde e possam desfrutar as águas lindas e puras ofertadas pelo Cerrado.

*Agrônoma, mestre em sustentabilidade de territórios tradicionais, assessora técnica do Instituto Sociedade, População e Natureza – ISPN e membro da Coalizão Vozes do Tocantins por Justiça Climática.