A Operação Contenção, deflagrada no dia 28 de outubro de 2025, ficará na memória como mais um espetáculo bélico — e como mais uma conta de sangue que o Estado insiste em empurrar para a população. Quando uma intervenção policial mobiliza 2.500 agentes, blindados, helicópteros e demolições em áreas onde vivem centenas de milhares de pessoas, e o saldo inicial é de centenas de mortos, o que está sendo mostrado ao país e ao mundo não é competência: é desespero. Mata-se para provar que o Estado existe. Mas a pergunta que permanece é: que Estado é esse que existe às custas de corpos e da destruição de tecidos sociais?

Primeiro ponto: a operação reafirma um repertório de respostas que remonta às décadas de 1980 e 1990 — combate militarizado, performático, construído para manchetes. Não se trata aqui de enfatizar a passividade diante do crime organizado; trata-se de questionar a estratégia. Reagir à criminalidade com espetáculo e força bruta, sem uma estratégia de inteligência que ataque fluxos financeiros, logística e redes políticas que sustentam as facções, equivale a bombardear uma hidra: corta-se uma cabeça, outras crescem. A consequência prática está à vista: droga mais barata e mais pura, capacidade de reposição rápida de combatentes e, sobretudo, maior controle territorial por parte das facções, que se adaptam e se reorganizam.

Segundo ponto: o uso massivo da força tem custo humano, institucional e político. Nas operações de alto risco morreram civis — muitos dos quais não tinham relação com o conflito — e também agentes da própria segurança pública. O Estado está fazendo as contas no sangue dos seus servidores e dos moradores das favelas. Além da tragédia das mortes, há feridos, escolas e postos de saúde fechados, transporte interrompido, trabalhadores sem renda e um rastro de medo e trauma que não entra nos balanços oficiais. Quem contabiliza o abalo psicológico de crianças que assistem a helicópteros e demolições? Quem soma o impacto econômico de comunidades paralisadas por dias?

Terceiro ponto: existem alternativas — e elas foram demonstradas. Operações de inteligência e financeiras, integradas entre agências e com meios técnicos de investigação, já mostraram resultados sem derramamento de sangue proporcional. A chamada “Operação Carbono Oculto”, por exemplo, atacou o coração econômico de uma organização criminosa ao mirar sonegação, lavagem e fluxos de recursos, sem transformá-la em palco de guerra urbana. Esse contraste é políticas públicas em versão prática: enquanto confronto ostentoso reafirma a autoridade do Estado pela violência, ações de inteligência corroem o poder dos grupos atacando seu capital e suas estruturas de sustentação.

Quarto ponto: a lógica reativa também reforça um ciclo perverso entre crime, política e polícia. Operações midiáticas legitimam líderes que se apresentam como linha-dura e, ao mesmo tempo, naturalizam a permissividade com que interesses ilegais se infiltram em espaços públicos e privados. No vácuo de políticas de longo prazo — urbanismo, educação, saneamento, transporte, reinserção social — as facções ocupam territórios não apenas com armas, mas com estruturas de governança paralela: serviços, coerção e economia informal. Derrubar barricadas com blindados não substitui projetos de urbanização e inclusão que tomariam décadas para maturar, mas que, sem dúvida, enfraquecem a base social do crime.

Quinto ponto: responsabilização. Se o Estado exerce violência, deve ser também capaz de investigar, apurar e punir excessos. Investigações rápidas, independentes e transparentes são imperativas — não apenas para preservar direitos humanos, mas para restaurar a confiança cidadã em instituições que, de outra forma, se apresentam como ameaças. A contestação internacional e a pressão por apurações mostram que a cena se tornou também um problema de imagem e diplomacia: quando a ONU e veículos estrangeiros convertem operações em acusações de excesso letal, há um custo reputacional que se soma ao custo material.

Por fim: a efetividade contra organizações criminosas exige deslocar o centro da política de segurança do confronto armado para a desarticulação estrutural. Isso significa priorizar inteligência, combate aos fluxos financeiros, corregedorias e mecanismos de combate à corrupção dentro do próprio Estado. Significa investir em políticas urbanas que removam as condições de reprodução do crime. Enquanto o discurso oficial preferir armas e manchetes ao invés de mapas de fluxo financeiro e planos de urbanização, teremos mais operações — e mais corpos — em ciclos repetidos.

O Rio merece menos espetáculo e mais projeto. Menos demonstração de força e mais projeto de cidade. Matar não é governar. Recuperar territórios exige coragem política para enfrentar interesses — no crime e fora dele — e paciência para fazer o trabalho que as manchetes não compram, mas que salva vidas a longo prazo.