‘Bom Fim’: o maior evento religioso do Tocantins que mistura tradição, fé e economia popular

17 agosto 2025 às 12h44

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Uma multidão de fiéis percorre a pé os 24 quilômetros que separam a cidade de Natividade do povoado do Bonfim. São homens, mulheres, idosos e crianças que, entre cânticos e silêncios de oração, formam uma das maiores procissões do Brasil: a Romaria do Senhor do Bonfim, a mais tradicional manifestação religiosa do Tocantins.
Neste ano, pela primeira vez celebrado como feriado estadual, a expectativa é que o evento, que termina neste domingo, 17, tenha reunido 100 mil pessoas ao longo de 12 dias de celebrações.
A caminhada, o comércio, as missas campais e os pontos de apoio transformaram Natividade em um mosaico de fé, cultura e economia popular, e o Jornal Opção Tocantins esteve no local para registrar de perto toda a movimentação do evento.

Tradição secular e o significado de ‘’Bom Fim’’
A origem da devoção remonta ao século XVIII, quando, segundo a tradição popular, um vaqueiro encontrou uma imagem de Cristo crucificado em um tronco de árvore. Levou a peça para casa, mas ela desapareceu e reapareceu misteriosamente no mesmo local. O episódio foi interpretado como sinal divino. Ali se ergueu um pequeno templo de madeira, que, ao longo do tempo, daria lugar ao atual Santuário do Senhor do Bonfim.
Mais de dois séculos depois, a romaria mantém seu caráter milagroso e para os romeiros, cada passo é uma forma de agradecer, pedir graças ou cumprir promessas. O caminho é marcado pelas 14 estações da Via-Sacra, com painéis monumentais do artista Luiz Olinto, contando a história da crucificação de Jesus.
No coração da celebração está a ideia de que o fim da vida não é uma tragédia, mas um reencontro com Cristo. “O Senhor do Bonfim é Jesus Crucificado. O nome já nos remete a isso: o nosso fim. A nossa morte não será ruim, mas boa, porque desembocaremos em Jesus, o Bom Fim. Ou seja, o fim não se torna fim, mas uma experiência inaudita e nova de Deus”, explica o reitor do santuário, padre Leomar Sousa, há 30 anos na vida sacerdotal.


O bispo Dom José Moreira, há 16 anos ocupando essa função somando mais 42 anos como padre, acrescenta a dimensão histórica e social:
“O Santuário do Senhor do Bonfim tem uma história muito bonita no Tocantins. Hoje, o Senhor do Bonfim é tão importante que o governador decretou feriado estadual em sua honra. Para nós, é uma grande honra para a fé cristã, a fé católica, que acredita em Jesus Cristo como o caminho, a verdade e a vida.’’

Feriado estadual e impacto coletivo
Na prática, o feriado representou mais tempo livre para os fiéis viajarem, mais comércio aquecido e maior estrutura para acolher os peregrinos.
“Esse ano passou muito romeiro. Cada um ficou muito feliz com a organização da barraca, com muitas frutas. Foi a primeira vez que o Dia do Senhor do Bonfim virou feriado estadual, e isso fez diferença na estrutura e no apoio. A estrutura foi boa, bem melhor que em anos anteriores. Parece que tudo ficou mais leve, teve mais coisas. Com o feriado, a população aumentou e nós estávamos aqui para receber todos”, avalia Raimundinha, coordenadora de um ponto de apoio promovido por meio das secretarias de Estado do Turismo (Setur), da Cultura (Secult) e do Trabalho e Desenvolvimento Social (Setas).

Para os voluntários no ponto de apoio, mais do que servir, trata-se de acolher.
“Nós estamos aqui como amigos, funcionários, psicólogos, como tudo. Todo mundo que passa conta sua história, e a gente procura fazer o melhor. O romeiro precisa se sentir acolhido. 99% vêm com algum problema, mas aqui eles se sentem curados e acolhidos. Isso é o mais importante. A alimentação sempre tem, mas o acolhimento é nota 10”, diz Raimundinha.
Além da alimentação, os serviços incluem aferição de pressão, testes de glicemia e curativos.


Durante os dias da Romaria, a segurança do povoado e do trajeto até o Santuário do Senhor do Bonfim foi reforçada com a presença de centenas de policiais militares, civis e bombeiros, além de equipes de trânsito e saúde. Dentro do próprio povoado, a Polícia Militar instalou um QG especial de operações, que funcionou como base central das forças de segurança. No local, foi montado um sistema de videomonitoramento, permitindo acompanhar em tempo real pontos do povoado e do entorno do santuário.
O balanço oficial das ocorrências deve ser divulgado em breve pela Polícia Militar, que considera a operação um exemplo de integração entre tecnologia, planejamento e presença ostensiva de agentes no terreno.
Fé que gera renda
Se a fé é a motivação central, o comércio é o motor que sustenta famílias durante os dias da romaria. Barracas se espalham pela estrada e pelo povoado, oferecendo desde lanches rápidos até carnes frescas, lembranças religiosas e artigos variados.
Weider, 47 anos, veio de Caldas Novas (GO) com sua barraca de sanduíches. Para ele, o feriado trouxe ainda mais movimento: “Ah, é muito legal. Vai começar hoje, é feriado, né? Agora provavelmente vai melhorar 100%. Mas o movimento já está ótimo. A gente vive no mundo e, quando tem festa, a gente está rodando. Aqui todo mundo fala que o movimento é bom.”

Já o açougueiro improvisado Valdonez Ferreira, 39 anos, aposta em um nicho pouco explorado: “A gente já tem 10 anos trabalhando aqui na Romaria. É um evento muito gratificante. Primeiramente, agradeço a Deus. Depois, aos romeiros, né? É uma festa muito populosa, com muito romeiro, e só temos a agradecer mesmo.”
Ele conta que a carne é artigo raro entre os comerciantes: “Geralmente, a oferta de carne é pouca. São poucos os comerciantes que vêm com esse tipo de comércio. Este ano o movimento está bem positivo, tem rendido bastante, graças a Deus.”

Morador de Natividade, Valdonez revela ainda um costume pessoal: “Eu sou de Natividade. Trabalho em uma empresa, em um mercado da cidade. Todo ano eu tiro férias para vir participar da Romaria e abrir a barraca.”

A peregrinação como penitência
Mais do que uma tradição, a caminhada até o Bonfim é, para muitos, um ato de penitência e conversão.
“Estamos vivendo o ano da esperança, o ano da peregrinação. A peregrinação é uma oportunidade de se converter, mudar de vida, pedir perdão. É uma forma de penitência, uma prática que já se tornou cultura dentro da Igreja. Essa união de povos, comunidades e famílias que vêm até aqui é uma riqueza muito grande para nós”, explica Dom José Moreira.


Entre o sagrado e o popular
Na festa, tudo se mistura: fé, negócios, música, missa, comércio, penitência e celebração. No dia 15, a missa campal lotou o santuário, enquanto apresentações musicais, entre elas um show do padre Fábio de Melo, reforçaram o caráter de evento popular.
É nesse cruzamento entre o sagrado e o cotidiano que a Romaria se torna símbolo cultural. Para os fiéis, trata-se de renovar a fé. Para os comerciantes, de garantir renda. Para o Estado, de organizar logística e preservar patrimônio. E, no fim, para todos, o Senhor do Bonfim é um lembrete de que a caminhada da vida pode ser dura, mas desemboca em esperança.
“Aqui vêm fiéis de vários lugares, que vêm renovar sua fé, sua experiência com Deus e reviver a experiência humana. É um reavivamento”, resume padre Leomar.

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