A narrativa não linear do longa metragem que mistura a ficção com o documental serve principalmente para duas motivações: mostrar as inúmeras lutas que os Krahô, concentrados no norte do Tocantins, enfrentam ao longo dos anos, e que batalhas diferentes requerem maneiras diferentes de enfrentá-las. Este foi o viés escolhido pela dupla de diretores composta pelo português João Salaviza e pela carioca Renée Nader Messora, que voltam a trabalhar com a comunidade indígena após o também premiado em Cannes, “Chuva é Cantoria na Terra dos Mortos”, de 2018. 

“Crowrã”, ou “A Flor do Buriti”, que terá exibição gratuita no Cine Cultura, em Palmas, nesta sexta-feira, 12, com a presença do elenco e equipe, foi filmado durante 15 meses, concentrando-se em três narrativas temporais onde a vida e os direitos dos Krahô são colocados em xeque: na década de 1940, marcada por um massacre brutal dos indígenas realizado por fazendeiros (ou cupē, como eles os chamam) em busca de expansão de terras para criação de gado, durante a ditadura, onde foram pressionados a se juntar a uma unidade militar e por último, a expansão do agronegócio fomentada pelo governo Bolsonaro, que ameaça novamente as terras e o povo Krahô. Nesta última, três personagens ganham destaque: Patpo (Ilda Patpro Krahô), Hyjnõ (Francisco Hyjnõ Krahô) e a jovem Jotàt (Solane Tehtikwyj Krahô), filha de Patpo, cujas jornadas individuais, que vão do político ao místico, se entrelaçam na trama.

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A reverência à ancestralidade e as tradições são elementos recorrentes e de extrema importância para a narrativa. Com suas canções, rituais, vestimentas e homenagens, o filme mostra que mesmo com o imenso respeito que os Krahô têm aos que vieram antes deles, de maneira alguma isso os coloca como pessoas presas no tempo, mas sim, como um fator significativo para a busca de melhorias para a comunidade e para as gerações futuras: olhar para o passado para encarar o futuro. Patpo, que vai até Brasília para participar do ato contra a demarcação temporal na Praça dos Três Poderes, reunindo diversas etnias do país, se inspira nas mulheres ali presentes, incluindo a atual (e primeira) ministra dos Povos Indígenas do Brasil, Sonia Guajajara. No meio de tantas mulheres com histórias e objetivos semelhantes, ela encontra a sua maneira de honrar e lutar pelo seu povo.

O que faz “A Flor do Buriti” triunfar é a parceria entre os diretores e os Krahô da comunidade da aldeia da Pedra Branca, onde o filme é majoritariamente rodado, que além de atuarem, também integram a equipe de roteiristas do longa, onde eles tiveram a liberdade de externar suas vivências de forma mais orgânica. A parte técnica é um show à parte: os sons diegéticos funcionam como trilha sonora em boa parte das mais de duas horas de duração, a direção de fotografia, assinada por Nader Messora, também é um importante contribuinte para o êxito da produção: as composições com as cores vivas, os planos médios e fechados de câmera que se fazem presentes em grande parcela do filme, colaboram para a sensação de intimidade com os personagens, como se estivéssemos vivenciando suas histórias junto a eles, e por fim, a direção de arte, que soube utilizar de forma prática e criativa das limitações da locação, muitas vezes deixando conclusões de cena para o subjetivo do espectador, tornando-as mais impactantes do que uma possível cena explícita. 

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Apesar da relativamente longa duração, não há muito o que pudesse ser descartado do corte final, afinal, é preciso dar tempo ao tempo quando se trata de pessoas que precisam ser ouvidas. O fato da cena escolhida para encerrar o filme ser a de um nascimento de um novo ser humano da comunidade traz consigo muitos significados: de renovação e esperança. Uma nova geração que continuará na luta contra a exploração dos cupē e pelos direitos de um povo que já vem lutando há décadas, com a esperança de que um dia não será mais necessário lutar tanto pelo que é seu por direito, e um novo veículo de preservação das tradições dos Krahô do Tocantins.