O impasse da retirada do gado na Ilha do Bananal e os dilemas ambientais e sociais

19 outubro 2025 às 09h36

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A Ilha do Bananal, no extremo sudoeste do Tocantins, vive um impasse que mistura história, cultura e meio ambiente. Uma ordem do Ministério Público Federal (MPF) determinou a retirada de todo o gado não pertencente a indígenas da região até 31 de dezembro de 2025, após prorrogação do prazo inicial, que vencia dia 31 de agosto do mesmo ano.
A medida busca conter o avanço da pecuária ilegal e restaurar o equilíbrio ecológico dentro do Parque Indígena do Araguaia, mas tem gerado resistência entre comunidades que passaram a depender economicamente da criação de gado.
O conflito teve início em 2009, quando um acordo firmado entre o MPF e lideranças indígenas permitiu, de forma excepcional, a criação de gado dentro da Ilha do Bananal. A proposta era que a atividade fosse gerida pelos próprios indígenas, em modelo de economia sustentável.
Com o tempo, no entanto, fazendeiros não indígenas passaram a arrendar áreas de forma irregular, o que desvirtuou o objetivo original do projeto e ampliou a pressão ambiental sobre o território.
Autoridades ambientais, como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), apontam que cerca de 90% dos rebanhos hoje presentes na Ilha pertencem a pecuaristas de fora, configurando uso indevido das terras.

Mais gado do que gente
A dimensão do problema impressiona. A Agência de Defesa Agropecuária do Tocantins (Adapec) contabilizou, na campanha de declaração pecuária de 2025, 80.954 bovídeos (bovinos e bubalinos) declarados, o equivalente a 89,5% do total estimado de 90.399 animais.
Também foram registrados 235 retiros ativos na Ilha do Bananal. Esses números são muito maiores que a população indígena local, que soma 4.503 pessoas, segundo o Censo 2022 do IBGE. Em outras palavras, há quase 20 cabeças de gado para cada habitante.

Ibama: retirada avança, mas fiscalização continua
De acordo com o superintendente do Ibama no Tocantins, Leandro Milhomen Costa, a maior parte do rebanho já começou a deixar a Ilha.
“Nos levantamentos que temos feito junto a lideranças indígenas e outras instituições que atuam na área, verificamos que grande parte do gado já saiu da ilha.”
Ele explicou que o órgão planeja novas fiscalizações a partir de 2026, para confirmar o cumprimento total da determinação.
“O Ibama irá realizar operações a partir de 2026 para verificar se houve o cumprimento do prazo. Quem não cumprir a determinação no prazo será autuado e terá o gado apreendido.”
Apesar das manifestações contrárias de algumas lideranças, ele avalia que o movimento de retirada tem apoio majoritário.
“Maior parte das lideranças apoia a retirada do gado principalmente porque tem consciência de que a atividade compromete a integridade ambiental, social e territorial das terras indígenas.”
O superintendente ressalta que a medida é importante para conter o desmatamento, reduzir queimadas e preservar os recursos hídricos da Ilha.

Impactos ambientais visíveis
A Ilha do Bananal é a maior ilha fluvial do mundo, com cerca de 2 milhões de hectares entre os rios Araguaia e Javaés. É um território de transição entre os biomas Amazônia e Cerrado, o que faz dela uma das áreas mais sensíveis do ponto de vista ecológico.
O biólogo Jonatas Carvalho, mestre em Ciência do Ambiente pela Universidade Federal do Tocantins, explica que os impactos da pecuária na região são profundos.
“Os principais impactos que a criação de gado pode causar nesse tipo de ecossistema estão totalmente associados ao desmatamento para fazer as áreas para colocar esse gado, o que acaba deixando o ambiente mais suscetível a espécies invasoras, como por exemplo de parasitas e de capim, e pode ocasionar problema com a erosão do solo. Além disso, também acaba contribuindo para o desequilíbrio ambiental e a presença desse gado pode sim causar grandes danos à fauna e à flora nativa.”
Ele reforça que o desequilíbrio afeta também o solo e o clima:
“Deixa o ambiente bem suscetível à entrada de espécies invasoras, também altera o ciclo da água e o ciclo do carbono, e pode ocasionar algum tipo de poluição pelo excesso de compostos nitrogenados produzidos por esse gado. Também tem a produção de gás metano, que contribui para o efeito estufa.”
Segundo o biólogo, a recuperação ambiental será lenta e complexa.
“Para se obter um equilíbrio ecológico seria necessário retirar todo o capim e fazer o levantamento da região para ver quais espécies nativas são mais comuns e realizar o reflorestamento do local. Não tem noção de quanto tempo seria necessário, porque o dano ambiental foi muito grande e há diversos fatores que influenciam, como as mudanças climáticas e a diminuição das chuvas.”
Divisão entre indígenas
Se do ponto de vista ambiental a retirada do gado é urgente, do ponto de vista social o tema divide opiniões. Em muitas aldeias, a pecuária passou a representar fonte de renda e autonomia econômica.
O indígena e retireiro Ademilton Karajá, morador da aldeia Horotory Hawa, acredita que o problema está na gestão e não na atividade em si.
“A retirada do gado, no meu ponto de vista, teria que ter uma reorganização por parte dos próprios indígenas, porque há uma divisão de recursos que não chega a todos. Mas, ao mesmo tempo, nos lugares mais organizados, tem beneficiado muito a população indígena, que aprendeu a lidar com essa nova cultura, que é a criação de gado, e tem trazido ótimos resultados. A saída vai prejudicar muito a população dos povos originários da ilha e também o comércio local. Então eu sou a favor do gado ficar, mas precisa reorganizar algumas associações para que o dinheiro seja dividido por igual.”

O cacique Wagner Javaé, da aldeia Boto Velho, compartilha da mesma preocupação.
“As aldeias dependiam de tudo, porque não é todo órgão que faz atendimento para as populações indígenas. Essa geração de renda arcava muitas coisas, como atendimento em saúde particular, que às vezes não era atendido no SUS. Com esse dinheiro a gente pagava consultas, cirurgias… é uma perda grande.”
Ele acrescenta:
“A gente ficou dependente, porque gerava renda para as populações indígenas. Não tem outra alternativa de projeto que o governo federal oferece para a sustentabilidade dos indígenas.”

A retirada do gado da Ilha do Bananal representa o cumprimento de uma determinação judicial e de um acordo firmado entre União, Funai e órgãos ambientais.
O processo busca conciliar a proteção das terras indígenas com a manutenção das condições de subsistência das populações locais.
Até que todas as etapas sejam concluídas, o desafio permanece o mesmo: garantir que a preservação ambiental avance sem comprometer o equilíbrio social e cultural das comunidades que vivem na maior ilha fluvial do mundo.
