Em Palmas, uso do reconhecimento facial em condomínios gera dúvidas sobre proteção de dados pessoais

20 julho 2025 às 09h15

COMPARTILHAR
Quando entra ou sai de casa, o rosto de Larissa é escaneado em segundos por uma câmera na portaria. O processo é automático: uma luz acende, a catraca libera, e o acesso é registrado. Larissa vive em um condomínio na zona central de Palmas que adotou o reconhecimento facial como sistema de controle de acesso ao prédio.
Hoje, morando há mais de um ano no local, ela não quis se identificar, mas reconhece os benefícios da tecnologia com ressalvas. “Pra mim é muito relevante o sistema que o condomínio usa, ele traz bastante praticidade e segurança pra gente em questão de acesso de pessoas à nossa casa. Porém eu também sei que essa segurança é ilusória quando versada com questões de roubo de informações”, afirma.
Larissa não está sozinha na dúvida. Com os recentes casos de vazamento de dados em condomínios do Brasil como o de São Paulo, envolvendo moradores de Jundiaí, o debate sobre o uso de dados biométricos, como imagens faciais, em ambientes residenciais tem repercutido.
O caso que trouxe alerta
No interior de São Paulo, uma denúncia anônima revelou que informações sensíveis de centenas de moradores de condomínios foram parar na dark web. Entre os dados, estavam nomes, fotos, CPF, RG, e-mail, telefone, placa de veículos e endereços, todos extraídos do sistema de reconhecimento facial utilizado em portarias.
Uma moradora relatou ter sido vítima de tentativas de golpe após o vazamento com ligações de falso sequestros, ela contou que informações de pessoas que moram com ela foram usadas. O episódio, que está sendo investigado pela Polícia Civi, levantou uma questão: quem garante a segurança dos dados coletados todos os dias nas portarias?
E em Palmas?
Nos condomínios da capital, a tecnologia também já se espalhou. O síndico Samuel, do prédio Tereza Ayres, ouvido pela reportagem do Jornal Opção Tocantins conta que o sistema de reconhecimento facial foi adotado durante a pandemia, com aprovação em assembleia virtual. Questionado sobre o destino dos dados dos moradores, ele afirma: “No servidor da empresa”. E sobre quem é o responsável pela segurança dessas informações? “A empresa que fornece o software”.
Apesar de não ter havido casos semelhantes, o condomínio já começou a se movimentar. “Ainda não tomamos medidas, porém já pedimos orientação à assessoria jurídica para saber como proceder”, disse.
Entre os moradores, há quem encare o uso da tecnologia e a coleta de dados como inevitáveis: “O próprio celular, as inteligências artificiais que a gente tem em casa… qualquer coisa conectada à internet coleta dados nossos. Infelizmente, a gente não tem controle sobre isso. Aqui, em particular, eu me sinto seguro, os dados estão aí, só esperamos que eles estejam protegidos”, comentou outro morador, que preferiu também preservar sua identidade.
O que diz a Lei Geral de Proteção de Dados
Desde 2020, o Brasil conta com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que estabelece regras claras sobre como dados pessoais devem ser coletados, armazenados, utilizados e descartados. Mas, segundo a advogada e mestre Maria Lohana Siqueira, especialista no tema, ainda há muita confusão sobre como a lei se aplica, especialmente em ambientes como condomínios.
“As pessoas, quando falam de LGPD, acabam confundindo com consentimento e acham que todas as bases legais para a utilização de qualquer coisa é o consentimento, só que não funciona dessa forma”, afirma. “Geralmente em condomínios, a base legal utilizada não é o consentimento, e sim a questão contratual. Então o que precisa ser observado nessas situações é o que está previsto no contrato.”
Em outras palavras, o morador que entra num condomínio pode já estar autorizando, mesmo sem saber, o uso de seus dados biométricos, se isso estiver descrito nas cláusulas do contrato de locação ou compra.
E quando há vazamento? A responsabilidade é solidária, explica Lohana. “Tanto o condomínio quanto a empresa fornecedora de tecnologia podem ser responsabilizados judicialmente. O controlador vai ser o condomínio, e o operador é quem realiza o tratamento de dados em nome do controlador, ou seja, a empresa.”
Segurança ou exposição?
A reportagem apurou que, em muitos casos, os dados coletados nos condomínios de Palmas são enviados diretamente para servidores externos, pertencentes às empresas de tecnologia. Poucos ou nenhum prédio mantêm servidores locais.
Entre as medidas preventivas, Lohana destaca o papel do compliance digital: um conjunto de práticas jurídicas, técnicas e administrativas para garantir a segurança das informações. “A melhor medida preventiva que os condomínios e as empresas prestadoras desse tipo de serviço devem adotar é procurar um profissional de proteção de dados, capaz de fazer o mapeamento dessas informações e implementar alternativas de segurança.”
E se o morador quiser recusar?
Outra dúvida recorrente é se o morador pode se recusar a fornecer seus dados para o reconhecimento facial. Lohana explica que depende da base legal usada para justificar a coleta.
“Se é o consentimento, ele tem sim o direito à recusa. Mas se não é, precisa ser observada. Os melhores caminhos a serem seguidos é justamente buscar uma conversa e um consenso.”
Ela lembra ainda que, desde 2022, a proteção de dados é considerada um direito fundamental, com base na Emenda Constitucional 115. A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) é o órgão responsável por fiscalizar e aplicar sanções, que podem incluir multas de até R$ 50 milhões por infração.
Na superfície, o sistema parece inofensivo. A câmera acende, o portão abre, e o morador segue seu caminho. Mas, nos bastidores, uma rede invisível de armazenamento, processamento e possíveis vulnerabilidades se forma, muitas vezes fora do alcance de quem entrega seus dados diariamente.