Eva Pereira: “Com ‘O Barulho da Noite’, eu sabia que não estava fazendo um filme para agradar. Meu objetivo era incomodar”

12 janeiro 2025 às 08h00

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Eva Pereira é atriz, roteirista, produtora e diretora, natural de Miracema do Tocantins, e se destaca por sua habilidade em abordar temas sociais sensíveis com profundidade, empatia e um olhar único sobre a realidade brasileira. Dirigiu e roteirizou o filme “O Barulho da Noite”, o primeiro longa-metragem de sua carreira, ambientado na zona rural do estado, que explora questões como violência contra a mulher, abuso infantil e traumas familiares.
O filme se consolidou como um marco do cinema, não só regional como também em âmbitos nacionais e internacionais, acumulando prêmios em importantes festivais fora do Brasil, como o 28º Inffinito Brazilian Film Festival, em Miami, e o 17º Los Angeles Brazilian Film Festival (LABRFF). Nessas premiações, “O Barulho da Noite” recebeu troféus nas categorias de Melhor Filme, Melhor Direção e Melhor Roteiro, além de reconhecimentos ao elenco, como Melhor Atriz para Emanuelle Araújo e Melhor Atriz Coadjuvante para Alícia Santana.
Em entrevista para o Jornal Opção Tocantins, Eva compartilha sua jornada até o momento, desde a concepção do projeto, até a grande recepção que o “O Barulho da Noite” vem recebendo em diversos locais do mundo.

Primeiramente, conte um pouco mais sobre sua carreira. Quais foram os projetos que fizeram você ser a profissional que é hoje?
Eu venho do teatro, sou apaixonada por arte e ouvia novela de rádio na fazenda, quando criança, antes da gente conhecer a televisão. E foi ouvindo a novela de rádio, ali com cinco, seis anos, que eu decidi que, quando crescesse, queria contar histórias. E aí os sonhos vão se ampliando. Eu queria ser locutora na época das novelas de rádio, e quando conheci a televisão, quis ser atriz.
Na escola, meu primeiro contato foi com o teatro. Foi muito libertador, abriu muitas portas na minha vida. Eu atribuo à escola um grande alicerce, tanto como pessoa quanto como profissional. A leitura também foi fundamental. Engraçado que, agora, era para eu estar lendo mais, mas leio menos por falta de tempo. Mas eu tive uma fase em que devorava livros, sabe? Isso foi muito importante para minha formação. Fui uma adolescente chata, muito chata. Achava que sabia mais que os outros porque a turma inteira não lia. Eu me sentia especial, sabe? Fui uma jovem meio intelectual insuportável, que achava que quem ouvia funk ou pagode não prestava, que só quem ouvia Milton Nascimento era digno.
Transitei por todas essas fases. A arte tem essa coisa de glamourização, e, se você não tiver cuidado e consciência de quem é, ela te distancia das pessoas. O que era para aproximar acaba afastando. Você cria uma falsa persona, achando que sabe tudo, mas, no fundo, não sabe nada. Ninguém sabe tudo, por mais que tenha lido milhares de livros. Eu trabalho com o que amo, mas nunca vou ter a sabedoria do meu pai, por exemplo. Ele mal sabia assinar o nome, mas era um homem sábio. Eu nunca vou atingir a sabedoria de muita gente simples, de muitos mestres da vida. Precisei passar por tudo isso. Às vezes, vejo meu sobrinho, que é super inteligente, se achando muito. Quando tento falar algo, ele diz: “Eu já sei”. E eu fico pensando: será que eu era assim? Será que eu achava que sabia tudo?
“A arte tem essa coisa de glamourização, e se você não tiver cuidado e consciência de quem é, ela te distancia das pessoas”
Lembro que, quando gostava de uma matéria, estudava o conteúdo à frente dos professores, só para saber mais que eles. E eu pesquisava mesmo, ia na biblioteca. Era uma chatinha, sabia? Eu não sei o que eu queria com tanto conhecimento. Não era para me exibir, porque eu sempre dividia o que sabia com quem me perguntava. Mas, ao mesmo tempo, manipulava as situações para meu benefício. Por exemplo, fazia os meninos pagarem lanche em troca de cola nas provas. Enfim, o conhecimento que eu tinha não me trouxe sabedoria tão cedo.
Falo muito sobre formação, porque não consigo desvincular isso do que sou. Acho que o ser humano não se separa do profissional, e adquirir conhecimento pode te dar uma falsa sensação de poder, sabe? É fácil se perder, esquecer de onde veio e criar uma persona distante da sua essência. Por isso, hoje, busco esse equilíbrio.
Trabalhei numa agência de publicidade e ampliei minha experiência com programas eleitorais. Foi no programa eleitoral que comecei a entender o vídeo e percebi que muita gente tinha dificuldade em me dirigir. Vindo do teatro, minha expressão corporal era muito forte, e isso, no vídeo, pode parecer exagerado. Pediam para voltar a fita — na época era fita, né? — e eu queria me auto-dirigir. Foi aí que comecei a me dirigir e, depois, a dirigir outras pessoas.
Toda a minha base veio do teatro, da leitura, da pesquisa e do cinema. Me envolvi com um projeto de levar cinema a comunidades onde não havia salas de exibição, o projeto “Cine BR”, onde a gente levava cinema para comunidades sem acesso, com apoio da BR Distribuidora. Trabalhei nesse projeto por seis anos, e percorremos, na época, todos os 126 municípios do Tocantins, não eram 139 ainda como é hoje. Fechamos uma parceria com o Sesi, na gestão Ronaldo Dimas. Gosto de citar gestores, porque tem aqueles que valorizam a cultura e outros que não. Alguns fazem, outros deixam de fazer, e é importante dar nome aos bois.
Sou filha das políticas públicas, mas isso não significa que todas as políticas públicas para a cultura sejam boas. Alguns gestores usam essas iniciativas para se promover ou fazer maracutaias. Eu gosto de ser justa nesse sentido: tem gestão que funciona e tem gestão que não funciona. É verdade, e eu sou muito direta quanto a isso. Transitei por todos os departamentos. Foi um desafio. Tive que sair para Brasília, Rio e São Paulo pedindo trabalho em produções. Também trabalhei em muitas produções locais. Foi assim que me senti pronta para lançar o projeto “Barulho”, uma ideia de 20 anos atrás. A promoção ficou pronta só quando eu estava preparada para colocar o filme no mundo.
Eu te entrevistei em 2019 ainda na faculdade, e lembro que naquela época você estava entre a produção e a pós-produção de “O Barulho da Noite”. Naquela época, você já imaginava que o filme alcançaria tanto sucesso e te levaria tão longe?
Não imaginava, acredita? Eu sempre sonhei alto, sinto muito quando sou desafiada nos meus sonhos, sempre sonhei muito alto, fui obstinada, e abri mão de muitas coisas. Não tive filhos, por exemplo, porque quis me dedicar aos meus projetos. Sempre vi minha missão como algo maior, e um exemplo disso foi o filme “O Barulho”. Ele abriu muitas portas, e quando chegamos a Marrocos, foi uma loucura. Participamos de festivais internacionais e ganhamos três prêmios: melhor filme, melhor direção e melhor atriz coadjuvante. É emocionante saber que Alícia Santana, uma criança, ganhou o primeiro prêmio internacional por atuação em cinema sendo do Tocantins. O filme foi além do que eu esperava, participamos de festivais em Milão, Los Angeles e Miami, e recebemos prêmios importantes, incluindo o de melhor filme pelo voto popular em Milão. Foi incrível ver um público italiano, considerado frio, tão emocionado, inclusive a diretora do festival comentou que eu tinha tocado o público de uma maneira especial.
“Foi incrível ver um público italiano, considerado frio, tão emocionado, inclusive a diretora do festival comentou que eu tinha tocado o público de uma maneira especial.”
Mas mesmo com esses reconhecimentos, produzir cinema no Tocantins é um desafio. A falta de mão de obra qualificada é um problema. Já tive que gastar muito com consultorias externas que não funcionaram. Agora, estou reorganizando minha empresa, mas é difícil. Às vezes, me questiono: por que não me dedico apenas a dirigir, já que “O Barulho” me deu essa possibilidade? Contudo, sinto que minha missão também envolve formar talentos locais e investir no audiovisual da região. Eu também quis levar o filme para a região do Mutum, onde filmamos. A maioria das pessoas que participaram daquele cenário ajudaram com sua força de trabalho. Eu queria levar o filme para lá como forma de agradecimento. Foi um esforço, mas valeu a pena.
Ainda assim, é um caminho cheio de obstáculos. Já perdi oportunidades por falta de suporte, como um financiamento de um milhão e meio para um projeto que não foi finalizado por falta de organização. É desafiador, mas eu acredito que vale a pena. Quero continuar investindo em novos talentos e trazendo mais visibilidade para o Tocantins, mesmo sabendo que é um trabalho árduo.
Como foi o seu processo para escalar os atores, em especial as crianças, que vieram daqui do Tocantins e que não tinham uma experiência muito abrangente no cinema?
Eu digo que foi o Divino Espírito Santo quem trouxe essas meninas. A Alícia (Santana) tem uma história tão marcante que daria outro filme, as duas tinham. Eu tinha uma preocupação em não trazer para o filme alguém com contexto social delicado, a ideia era focar em crianças com uma certa estrutura familiar, já que o filme exigia apoio familiar. Então, eu falei para o Luiz, que trabalha comigo, e decidimos que não queríamos enfatizar questões de sexualidade ou temas pesados; queríamos mostrar crianças vivendo suas infâncias, apesar de suas marcas pessoais. Você não escolhe tudo, o projeto ganha vida própria. Quando Anna Alice (Dias) apareceu, eu tomei consciência de seu contexto social, e escalá-la foi a melhor escolha, ela me salvou de mim e salvou o set muitas vezes. Eu só entendi plenamente o contexto da Alícia depois do filme, e se soubesse antes, talvez não tivesse tido coragem de escalá-la. Mas Deus é sábio. Ela e a mãe dela disseram que o filme foi transformador para suas vidas. É muito doido como nós mulheres, temos algo como uma simbiose, vendo o processo da outra, dependendo do vínculo, aquilo faz a gente crescer de uma forma até desproporcional.
Eram duas crianças que, devido ao contexto de suas vidas, cresceram um pouco antes da hora em alguns aspectos, eu não sabia de tudo. Então, o filme teve uma missão especial na vida das duas. Agora, por exemplo, eu queria levá-las para festivais internacionais, mas é desafiador, porque não temos dinheiro nenhum para a promoção do filme. Quando fomos para Gramado, por exemplo, foi uma grande despesa. A prefeitura de Palmas ajudou comprando quatro passagens. Imagina só, para tirar passaporte e visto para as meninas e para as mães seriam quatro passaportes, mais o custo de quatro vistos. Isso daria, no mínimo, dez mil reais. Então, fiz uma reunião com elas, expliquei e falei: “Bem, meninas, a tia também não quer que vocês fiquem só vendo os famosos aproveitarem, porque, se não fossem vocês no filme, nada disso teria acontecido. Mas entendam que, mesmo que vocês não estejam lá, todos só vão olhar para vocês. Quando as pessoas assistirem ao filme e verem seus nomes nos créditos, vão querer saber quem são vocês”, e expliquei o processo para elas e coloquei duas possibilidades: “Vocês querem ir ou preferem dez mil cada uma?”, então elas e as mães decidiram pelo dinheiro. O fato é que, apesar de não terem ido, elas ficaram felizes, cada uma recebeu seu prêmio.
Tenho uma relação de vida com essas meninas. Continuo cobrando, pegando no pé, mas o contato não é mais o mesmo. Antes, morando no Tocantins, eu ia direto buscá-las, mas agora quando venho, fico pouco tempo. Não consigo ficar muito tempo longe da minha mãe, então venho sempre que dá, geralmente a cada 15 dias. Porém, por causa disso, não tenho mais tanto tempo para vê-las. Agora fazemos reuniões online.
Quanto ao elenco adulto, também mantenho contato. Eles foram uma força imensa. A Manu (Emanuelle Araújo), por exemplo, não só fez parte do elenco, mas também criou a trilha sonora do filme. E ela se dedica muito. A trilha ficou incrível, apesar de ser muito triste. A Manu tem um trabalho solidário hoje, ajudando mulheres vítimas de violência. Mesmo sem dinheiro, ela vai para onde precisa. Por exemplo, o marido dela paga as passagens. Recentemente, ela estava filmando em Salvador e veio para uma reunião à noite, só para depois voltar ao trabalho.

Já o Marquinhos (Marcos Palmeira), parceiro e amigo querido, está sempre junto no lançamento, apesar de ser muito ocupado. O Patrick (Sampaio) também é incrível. Ele está super engajado com o filme. É um projeto muito feminino, cheio de dores, mas também de muita força e resistência.
Você disse que passou vários anos com esse filme na sua cabeça, quais são os principais pontos que você fazia questão de abordar? Durante um projeto a gente acaba tendo que abrir mão de algumas coisas. Mas qual era a sua principal prioridade?
A questão do silenciamento, especialmente das mulheres, no âmbito familiar sempre me chamou a atenção. Eu sabia que não estava fazendo um filme para agradar; meu objetivo era incomodar. Hoje, fico satisfeita em saber que ele incomoda, porque essa era a intenção. Durante a pesquisa e vivência, percebi que é um filme que também incomoda muitas mulheres, especialmente aquelas que têm uma militância em bolhas, que é o que mais existe hoje: bolhas nas redes sociais. Pessoas que não têm contato com a realidade e não sabem como é difícil fazer uma denúncia. Antes, eu também era assim. É difícil denunciar neste país. Temos uma pena mínima de seis anos para um estuprador, mas uma mãe que denuncia precisa fugir do estado para não ser morta. A realidade é que a justiça brasileira falha ao proteger as vítimas e pune as mulheres que ousam se levantar.
“Eu sabia que não estava fazendo um filme para agradar; meu objetivo era incomodar. Hoje, fico satisfeita em saber que ele incomoda, porque essa era a intenção”.
Quando fiz a pesquisa para o filme, percebi como eu estava errada em exigir que todas as mulheres denunciassem. Não entendia o preço que isso tinha. O filme foi pensado para trazer essa dor, o silêncio, o “não denunciar”, o fingir que não viu. E isso incomoda, pois se olhar no espelho dói. Por isso o filme não tem nenhuma premiação no Brasil, mas já coleciona nove prêmios internacionais.
Sobre a recepção do filme no Tocantins e internacionalmente, acho que o Tocantins me alimenta artisticamente. Sempre volto para casa. Por exemplo, eu gosto de ir ao Jalapão, me desconectar e me reconectar comigo mesma. É um estado que tem um calor humano, um afeto muito especial, que me faz lembrar quem eu sou de verdade. Apesar do sucesso, é difícil ignorar a realidade local. Quando a ponte caiu no final do ano, eu me senti impotente. Foi um choque ver como as pessoas estão sofrendo, enquanto as autoridades fazem pouco caso. Isso me traz de volta à essência, ao motivo pelo qual eu faço o que faço.
E o que você já pode dizer sobre seu próximo projeto, o filme “Luziléia”?
Então, Luziléia, eu acho diferente do Barulho, este era um filme que a gente via muita atenção para festivais, mas não imaginava tanto público. Claro que tem uma força feminina muito forte, mas ele vai com outro olhar. Luziléia vem com uma leveza muito grande, ele tem muito Tocantins. É o Tocantins que ainda tá lá no bico do Tocantins, tem algo de Jalapão, naquela região de Almas. É o Tocantins que tá na região sudeste, sabe? Das pessoas comuns do dia a dia, dos sonhos, das ilusões de vir para Palmas, sabe? O que move o indígena a querer sair da sua aldeia para vir para cá fazer faculdade, sabe? E a dificuldade da gente se adaptar nesse lugar. Enfim, sabe as dores que enfrentam, mas tudo com muito amor, porque a gente também tem uma coisa inerente, que é a gente saber lidar também com as nossas tragédias. O Tocantins tem algo que me alimenta artisticamente, e por isso eu sempre volto. Embora não seja barato vir, gosto de retornar às minhas raízes. Poucos sabem, mas adoro ir ao Jalapão, ser deixada lá por alguns dias, essa conexão com a natureza me inspira.
Como essa sua turnê em diversos festivais internacionais e a trajetória que você teve este ano com “O Barulho da Noite”, tanto aqui no Tocantins, no Brasil e também fora, contribuíram no seu repertório como cineasta, pensando em outros projetos para o futuro?
“Barulho” me colocou em lugares que eu não imaginava. Eu não queria ser produtora, eu só queria fazer um filme, então o filme me trouxe essa bagagem, me trouxe um conhecimento maior, e agora eu vejo, vislumbro, e consigo hoje, por exemplo, entender o mercado internacional.
Hoje, a carteira de projetos é muito sólida, grande e com plano de negócio que só foi bem desenvolvido por causa das possibilidades que eu tive com a experiência dos festivais internacionais e dos eventos de mercado. Então hoje eu consigo olhar e dizer: “Esse projeto aqui pode ser para cá; isso aqui pode ser para lá; isso aqui não. Isso aqui vai atingir esse público; esse aqui não vai.” Claro, eu não sou como uns caras que estão há muito tempo no mercado, né? Mas me trouxe essa noção.
Hoje, eu também consigo pegar o produto, e não tirar dele o coração, porque todos os meus projetos têm o coração, mas nem sempre você consegue entender o teu grito como algo comercial. Hoje, com toda a experiência que “Barulho” me deu, eu consigo buscar, com certeza, equilíbrio. Consigo ter uma visão maior de mercado e, principalmente, do dia-a-dia de internacionalização, que é propício para nossa região norte, e também para o nordeste e o centro-oeste. Hoje, eu não busco só o Brasil. Procuro internacionalizar meus produtos cada vez mais. Isso me abriu possibilidades, me abriu visão e, além disso, a bagagem que isso traz, reflete nos produtos. É algo muito legal saber que, hoje, a minha produtora, a Cunhã Porã Filmes, tem uma identidade na carteira de projetos.