O cinema tocantinense, apesar de ainda tímido em relação aos grandes polos cinematográficos do país, tem ganhado cada vez mais espaço nos grandes circuitos Brasil afora nos últimos anos, desde “A Flor do Buriti”, em Cannes, à Eva Pereira com o seu “O Barulho da Noite”, que se tornou o primeiro longa metragem tocantinense a participar do Festival de Cinema de Gramado, um dos mais importantes do cenário nacional, e que em breve figurará no maior festival de cinema brasileiro no exterior, o Inffinito Brazilian Film Festival, em Nova Iorque, no próximo mês de agosto. 

Agraciado pelo caminho pavimentado pelos que vieram antes, Lucas Justino Vettore se junta a estes nomes de prestígio ao estrear como diretor de longa metragem ficcional em “Entramas”, contemplado pela Lei Paulo Gustavo (LGP), e que recentemente finalizou suas gravações. Natural de Itu, no estado de São Paulo, e filho de diarista e pedreiro, Justino começou sua jornada artística ainda na escola em sua cidade natal, ao montar um grupo de teatro onde começou a escrever suas primeiras peças e ganhar seus primeiros prêmios. O teatro foi o que o levou ao audiovisual, onde atuou em obras de outros diretores, como o já citado “O Barulho da Noite”, de Eva Pereira, e na série “O Boneco de Barro e o Rei”. Em entrevista para o Jornal Opção Tocantins, o ator, dramaturgo, e diretor conta sobre sua trajetória:

“Montei um grupo na escola chamado Companhia 13 de Maio, onde comecei a escrever peças de teatro, pois as peças do Shakespeare tinham muitos personagens e eu tinha poucos atores. Comecei a escrever peças de teatro para menos pessoas, onde ganhei os primeiros prêmios de dramaturgia, e depois entrei um jornal mural na própria escola. Fui trabalhar numa redação de jornal impresso da cidade por conta disso e a escrita foi se desenvolvendo. E então eu decidi fazer faculdade de teatro, vim aqui para o Tocantins para fazer na UFT. Sou formado, e aqui fundei o Grupo Um Ponto Dois de teatro, que já tem 13 anos desde a sua fundação, com a maioria dos espetáculos também da minha dramaturgia. Em 2022, fui mapeado pelo Itaú Cultural como um dos 101 Dramaturgos Contemporâneos Brasileiros, representando a região norte”, afirma.

“Entramas”, é uma adaptação spin off da peça de teatro da Cia Um Ponto Dois “As Histórias Que Eu Vou Te Contar”, com os mesmos personagens, a família Flores, enfrentando novos dilemas após a morte de seu patriarca.

Equipe do fime “Entramas” durante gravações | Foto: Flaviana OX

Quais foram suas inspirações, além dos seus próprios personagens e referências, no audiovisual para a construção do roteiro e do seu estilo de direção?

A Eva [Pereira] é uma grande referência para mim, pela mentoria que ela me deu, e por acompanhar de perto “O Barulho da Noite”, mas em “Entramas” também veio muito do cinema brasileiro. O pessoal lembra de “A Pequena Miss Sunshine”, porque tem uma Kombi no filme, mas eu nunca tinha assistido Miss Sunshine, só o vi depois, acho que está mais para “Bye Bye Brasil”, do [Cacá] Diegues, que eu também assisti durante o processo de escrita. Mas eu acho que eu gosto das referências nacionais, eu gosto muito de “Paraíso Perdido” (dir. Monique Gardenberg, 2018) que é um filmaço nacional, e “O Palhaço”, do Selton Mello, são algumas das referências que eu passei para a minha equipe de arte, por exemplo, para falar sobre estética e sobre a personalidade dos personagens. Eu acho que o cinema nacional tem muita coisa bacana, também usei “Central do Brasil” como referência para a coloração que eu espero para o filme. E a gente está falando sobre família, eu acho que “A Grande Família”, por exemplo, também é uma boa referência, a gente brincou com a galera da arte quando eles disseram “mas essa jarra aqui não vai ficar parecendo com A Grande Família?”, eu falei: “perfeito”.

Eu nasci em 1993, cresci vendo TV aberta, então tenho A Grande Família, Chaves, e Castelo Rá-Tim-Bum como minhas referências de audiovisual, e fora isso, é um filme que fala sobre teatro, porque eu sou uma pessoa do teatro. “Entramas” é essa coisa de Casos de Família, da época da Regina Volpato, no SBT, acho que o Brasil gosta disso, da gente falar das nossas questões. É sobre teatro, que é de onde eu venho, e sobre família, nesse contexto que a gente vive sempre, das nossas relações, não é? Me inspiro bastante nas famílias brasileiras.

A nossa gente quer ver a nossa gente, ver as nossas histórias sendo contadas pelas nossas caras, pelas nossas pessoas.

Sobre a preparação do elenco, como você escolheu os atores para cada personagem? Você acha que foi mais fácil para eles, por provavelmente todos terem passado pelo teatro, ter sido mais fácil para se conectarem com os personagens?

O Carlos Gontijo já era um ator do espetáculo, onde ele também fez o Lírio, embora no longa seja quase que um outro Lírio. Eu já sabia que o personagem tinha o estereótipo e os trejeitos do Carlos. No caso do personagem dele, o Lírio, não faz teatro, ele conhece a trupe e se apaixona pelo teatro depois, e foi sensacional vê-lo assim. Amanda Nobre é fundadora do Grupo Um Ponto Dois junto comigo, ela foi minha aluna quando tinha 12 anos de idade, hoje tem 24. Acho que ela não é que ela sofreu, mas teve que correr atrás um pouco. Ela e o Gabriel Santana participaram do Festival de Circo de Taquaruçu, por exemplo, para entender um pouco melhor sobre como é o artista mambembe, que é um artista que viaja, que se apresenta debaixo de uma tenda e nas ruas. Eles participaram de três oficinas no festival, que foram fundamentais. O Gabriel já vem de uma preparação corporal muito forte, com quase 10 anos de carreira, de experiência no teatro e trouxe um pouco disso para a gente. Essa é a primeira vez da Amanda no audiovisual, o Carlos já teve experiências breves, mas esse é o primeiro que ele faz do começo ao fim de um projeto de audiovisual, e o Gabriel foi muito generoso com os meninos também, dando toques, e conversando bastante.

Eu conheci o Gabriel pelo Big Brother, embora eu não tenha assistido, foi mais pelas redes sociais, e quando eu o vi, a notícia era sobre ter falado sobre bissexualidade. Eu sou um escritor assumidamente gay, e o arco do personagem passa pela sexualidade, apesar de não ser a história principal dele, mas eu queria um ator que também passasse essa mensagem, que não fosse só um hétero bom de atuação, por exemplo, mas que fosse alguém que pudesse ter essa bandeira, e eu acho que o Gabriel a carrega muito bem, no caso dele, a da bissexualidade. Gosto da forma que o Gabriel se posiciona bem sobre a vida, e desde o momento que eu o conheci  pelo Big Brother, mas falando que tinha feito Chiquititas, e depois ele fez Pantanal, eu vi nele o Antúrio que eu procurava, porque o Antúrio tem uma personalidade meio cigana, meio latina, e o Gabriel tem um olhar potente. 

Por fim, Cleuda Milhomem e Magna Carneiro, duas divas do teatro tocantinense, que integram A Barraca, que é um dos principais grupos de teatro do Tocantins. Já conhecia a Cleuda demais de perto, e já sabia, desde quando eu comecei a escrever, que seria ela. Na peça de teatro que a gente fez, não eram elas que interpretavam as personagens, mas sim atrizes mais jovens, a Patrícia e a Ana, que são do meu grupo, e que no filme fazem elas na fase jovem, pois teremos duas fases no filme, com alguns flashbacks. Então as meninas que fizeram no teatro fazem a fase jovem, e eu buscava as outras duas que fizessem as personagens na maior parte do filme, e Cleuda e Magna foram sensacionais. 

Fizemos a preparação de elenco com o Léo Pinheiro, que foi para o The Voice, que também é ator, a maioria das pessoas conhecem ele como cantor, mas ele vem do teatro, além da Cleuda e da Magna, que já têm mais de 30 anos de carreira, então elas também têm essa expertise. Além deles, temos os outros personagens interpretados por Meire Maria Monteiro, e Navarro, que é de Araguaina. Fizemos um projeto descentralizador, onde a ideia era que não tivessem só artistas de Palmas, então chamamos artistas convidados de Araguaína e Gurupi, que são pessoas importantes para o teatro dessas regiões também. Navarro faz parte do grupo Artpalco, e no filme ele faz um personagem que a referência para mim é o Zé Celso Martinez Corrêa, que é uma figura muito emblemática e importante do teatro nacional. E para mim, o Navarro representa muito bem ele, por também ser um dramaturgo, é um diretor que veio de fora do estado, mas já está há muito tempo aqui no Tocantins, e que arrasou demais. 

Meire Maria também. Eu falo que, eu tenho 31 de idade, é o meu primeiro longa de ficção, já fiz documentário, mas ter uma Meire Maria, nossa primeira bailarina do estado Tocantins, atuando pela primeira vez no longa metragem foi uma honra, ela arrasou demais fazendo a mãe dos meninos no filme, o pessoal vai gostar de ver.

Produção do filme “Entramas” | Foto: Flaviana OX

Quais foram os maiores desafios nesse processo de pré e de produção? Houve alguma coisa que você pensou que seria uma dificuldade e acabou não sendo?

Acho que começa pelo orçamento, porque quando a gente fala em fazer um longa metragem com R$1,3 milhão, não dá. Essa é a verdade. Parece muito, mas é muito pouco. Esse é um projeto que eu chamo de cinescola. A maioria estava trabalhando pela primeira vez na função, assim como eu, com minha primeira vez como diretor, tive a Gabriela, que também é escritora, e foi pela primeira vez da equipe de fotografia sendo video assistant, o Ernesto Rheinboldt, acho que é o segunda vez que ele assina como diretor de fotografia. A Raquel Etges, que já tem muita experiência na produção, mas assinou como diretora de produção pela primeira vez. 

Foi uma das soluções para fazer um filme com R$1,3 milhão de forma apaixonada e ao mesmo tempo potente, isso poderia ter sido uma tremenda dificuldade, e eu digo com muito orgulho que foi talvez o ponto alto do filme, porque estava todo mundo querendo muito fazer e muito aprender. Trouxemos menos de 5% da equipe de fora do Tocantins, tive assistência da Laura Mansur, que foi a primeira assistente do Jorge Fernando, por exemplo, fez vários trabalhos com ele na Rede Globo, como Doce de Mãe, com a Fernanda Montenegro, entre vários outros. E essas pessoas, que eram uma equipe muito reduzida, orientaram todo o trabalho de quem estava pela primeira vez num set, e foi lindo ver essa troca, houve uma sintonia muito grande na equipe, as pessoas estavam apaixonadas em aprenderem e fazerem aquilo.

Como os cenários do Tocantins ajudam a contar essa história?

Outro ponto alto do filme é a fotografia, com as paisagens de Taquaruçu, onde o filme foi 99% filmado. A história se passa em 1998, com flashbacks de 1978, e não se passa no Tocantins, mas sim num interior que a gente não diz qual, para que qualquer espectador se identifique que a história pode estar passando na cidade dele, ou passando perto dele, não necessariamente Taquaruçu. Estamos falando de chão de terra, lugares com pouca comunicação, temos o Mirante do Cajuí, Cachoeira das Araras, que é ainda pouco conhecida, talvez por isso que ainda esteja tão linda. Então, o Tocantins, por ser um estado ainda em construção, ainda nos permite fazer uma história que se passe há anos atrás. A equipe de figurino também é toda daqui do Tocantins, e as meninas arrasaram demais, acho que esvaziamos metade dos brechós da cidade, elas costuraram e construíram os figurinos de uma forma teatral. E Taquaruçu nos recebeu maravilhosamente bem, o Gabriel e a equipe de fora saíram apaixonados, o que acontece com todo mundo. Fomos muito bem recebidos pela comunidade, nós moramos lá nesse mês de gravações, participamos do Festival de Circo ativamente, alugamos casa, contratamos pessoas de Taquaruçu para lavar nossas roupas, então, o filme também girou economicamente ali, fomos em restaurantes, gravamos em propriedades privadas, mas também na Praça Maracaípe, e todos foram muito respeitosos, e algumas pessoas também fizeram figuração.

Mesmo o Tocantins não sendo um grande polo audiovisual se comparado com Rio e São Paulo, há uma boa leva de produções feitas no estado que estão alcançando públicos de todos os lugares, desde a novela “O Outro Lado do Paraíso”, como também filmes que vem ganhando bastante visibilidade como “O Barulho da Noite” e “A Flor do Buriti”, e em breve teremos “Entramas” integrando este grupo de obras. Mesmo estando em um bom caminho, você acha que ainda exista algo que precise melhorar no cenário do audiovisual para alavancar os profissionais do nosso estado, para que existam mais tocantinenses nestes grandes circuitos?

Muitas coisas, a começar pela consciência política dos gestores públicos de que o Tocantins é um polo de cinema da região norte, e que nós temos profissionais incríveis que já fazem esse trabalho há muito tempo. O cinema tocantinense existe desde que o Tocantins é Tocantins, com documentários no interior e aqui na capital, com dramaturgias daqui, e que encontram um desafio financeiro mesmo, não só de produtos daqui, como o Tocantins é, pode e deve ser um lugar de circuito de cinema nacional, já tivemos a Netflix aqui gravando “O Escolhido”, e o filme “Deus é Brasileiro” também tem cenas gravadas no Tocantins. 

O cinema tocantinense existe desde que o Tocantins é Tocantins, com documentários no interior e aqui na capital, […] e pode, e deve ser um lugar de circuito de cinema nacional.

Nós temos cenários perfeitos, e temos mão-de-obra qualificada em todos os aspectos, alguns optam por trazer profissionais de fora, mas hoje eu posso dizer para você que nós temos mão-de-obra local também, temos um elenco maravilhoso e local. O que falta é investimento, atrair mais pessoas para cá, dando condições para elas, apoiando mais esse lugar, e também usando recursos que nós temos disponíveis, como os oriundos da Ancine, dos fundos estadual e municipal de cultura, a Lei Paulo Gustavo, que devem ser investidos também. 

O Tocantins tem muitas chances de se firmar enquanto pólo da região norte. O cinema daqui, a Eva Pereira, com O Barulho da Noite, mostrou que é um cinema potente, e acho que Entramas também vai vir com esse lugar poético da teatralidade e das questões familiares, temos indígenas, travestis e pessoas trans no elenco que são daqui, que é a nossa gente, e falta uma boa vontade da gestão pública neste quesito, e de querer que a população daqui também consuma arte em geral, não apenas cinema, nós vimos o quanto que a população de Taquaruçu abraçou Entramas de uma forma muito bonita, nos receberam nos acolheram, até nos emprestaram panelas e bicicletas. A população daqui quer se ver, existe uma movimentação do audiovisual brasileiro que está mudando o jeito eurocêntrico de protagonistas brancos dos olhos azuis, a nossa gente quer ver a nossa gente, ver as nossas histórias sendo contadas pelas nossas caras, pelas nossas pessoas. Como filho de diarista e pedreiro, isso me traz um lugar de fala muito forte. Quando eu cheguei na locação e vi um casebre, eu falei, “eu morei num casebre desse”, e vi que o lugar onde eu morei era algo cinematográfico, além de sempre ter estudado em escola pública, e hoje estou nesse lugar aqui, abrindo a possibilidade para que outras pessoas possam sonhar com isso.

Quando eu cheguei na locação e vi um casebre, eu falei, “eu morei num casebre desse”, e vi que o lugar onde eu morei era algo cinematográfico.

Gostaria de reforçar aqui a importância da Fábrica Produções, que é a produtora de um grande amigo, e que me acolhe desde quando eu comecei a fazer “João e Maria: Uma Aventura no Cerrado”, onde eu era um menino que não tinha filme nenhum, e eles toparam fazer. E também o Pablo, que é o produtor do filme e o proprietário da Fábrica, que topou estar à frente do projeto comigo, afinal não é toda produtora que iria aceitar uma exigência do diretor de que 90% da equipe teria que ser do Tocantins. Eu quis, e sabia que era um risco. Entramas só tinha uma obrigação: ser o meu primeiro filme, e já superou todas as minhas expectativas. 

Foto: Flaviana OX

Quais são os seus planos para o futuro com Entramas, e além dele?

Estamos entrando em pós produção, deve durar mais ou menos um ano, queremos colocar uma trilha sonora com músicas nacionais, o que não é barato, e assim que estiver pronto queremos levá-lo à festivais, às salas de cinema comerciais e públicas por todo o país, e deixaremos em aberto para os players e serviços de streaming, já estamos inscritos no Frapa (Festival de Roteiro Audiovisual de Porto Alegre), um dos mais importantes da América Latina, onde vamos apresentar uma prévia do filme e começar a divulgação. O sonho é esse, que Entramas chegue pelo menos em todo o Tocantins e que a nossa gente o visse com os nossos artistas, e que também possa chegar em todo o país como um produto tocantinense e brasileiro, e que seja uma porta de entrada para outros produtos não só meus, mas de todos que o fizeram comigo, afinal é muito importante que a categoria tenha essa consciência de que não estamos concorrendo uns contra os outros, mas sim nos ajudando, e as pessoas que trabalharam comigo têm essa perspectiva de que a rede tocantinense de audiovisual tem se abraçado, e que juntos fortalecemos essa classe.