Luís Otávio Fraz, advogado, ex-juiz e escritor, é uma das figuras mais marcantes da construção do Poder Judiciário do Tocantins. Com uma carreira de três décadas na magistratura, ele foi protagonista de um período de profundas transformações no estado, desde a criação do Judiciário até os avanços tecnológicos que colocaram o Tocantins entre os mais modernos do país. Mestre em Direito pela Universidade de Lisboa (Portugal) e com especialização pela Universidade da Geórgia (EUA), Fraz hoje lidera um dos maiores escritórios de advocacia do estado, a Fraz Advocacia, com atuação em todo o Brasil. Autor consagrado, seu repertório literário inclui obras como Retalhos de Memórias, Bicho Esquisito e a coleção Magia de Lembrar, nas quais mescla vivências pessoais e profissionais com relatos históricos que ajudam a contar a história do Tocantins.

Nesta entrevista exclusiva ao Jornal Opção Tocantins, Luís Otávio Fraz revisita momentos emblemáticos de sua trajetória e do estado, como a precariedade inicial do Judiciário, os desafios estruturais deixados pela divisão de Goiás e a transição histórica da máquina de escrever para o sistema digital. Ele também reflete sobre temas como a gestão moderna, a introdução do ISO 9001 no Judiciário e os avanços que posicionaram o Tocantins como referência em tecnologia jurídica. Além disso, compartilha sua paixão pela escrita e pelo registro histórico, destacando como suas obras literárias foram concebidas a partir de anotações e memórias acumuladas ao longo dos anos. Ao final, Fraz discorre sobre sua transição para a advocacia ao lado dos filhos e a importância de planejar a sucessão patrimonial para evitar conflitos familiares nos tribunais.

Vamos começar falando sobre o livro, Tocantins e Eu, Memórias de um Construtor do Estado do Tocantins. Como surgiu a ideia de lançar esse livro, de colocar essas memórias no papel?

Eu sempre fui muito inquieto, com vontade de colocar esses registros históricos no papel, de forma escrita. Não tenho mania de colecionar, mas algumas coisas que considero importantes historicamente eu guardo. Por exemplo, tenho muitos cartões de Natal e de aniversário de autoridades. Eu abri uma caixa que chamava de “alfarrábios”, e tudo o que achava importante — jornais, matérias de jornal — eu ia jogando ali. Pensava: “Um dia vou precisar disso”. Como era um estado novo, eu tinha a noção de que tudo estava por fazer e por escrever. Então, fui guardando essas coisas: contracheques, atos de nomeação, e por aí vai. Quando sentei para escrever, percebi que já tinha boa parte do material pronto, guardado. Há muitas lembranças, fotografias e registros históricos.

Qual foi o momento mais marcante nesses 30 anos de magistratura?

Essa marca não teve um momento específico, mas a mudança da urna de lona para a urna eletrônica foi o ponto de partida de tudo. Na esteira dessa mudança, vieram os computadores pelo TRE, e os juízes tiveram contato com essa tecnologia pela primeira vez por meio da Justiça Eleitoral. Cada juiz, em sua comarca, lá no interior, começou a tentar aprender a mexer no computador.

Eu, por exemplo, me lembro da primeira sentença que fiz no computador: precisei refazê-la seis vezes. Eu fechava o arquivo e não conseguia encontrar onde estava salvo. Foi um aprendizado solitário, mas marcante.

Essa transição do analógico para o digital, como foi?

Eu comecei direto no analógico, claro. Na minha época, era tudo feito à mão ou em máquinas de escrever. Quando iniciei, já tinha uma certa experiência como advogado e, ao assumir como juiz no interior, levei comigo duas máquinas de escrever: uma manual e outra elétrica.

Passei a usar a máquina elétrica que tinha um corretor automático, uma novidade para a época, com aquela fita que corrigia os erros. Aquilo foi algo revolucionário!

Foi a primeira vez que tive contato com teclas que, de certa forma, já simulavam os atalhos que usamos hoje no computador, como o “Shift”. Essa máquina foi meu primeiro passo no que hoje consideramos básico em tecnologia.

Quando eu cheguei em Tocantinópolis, numa comarca dessas do interior, a escrivã veio até mim com um daqueles livros imensos de cartório e sentou ao meu lado. Perguntei a ela como funcionava o procedimento. Ela respondeu:

“O senhor fala e eu escrevo isso numa ata manual. Depois, levo ao cartório, onde a minha escrevente transcreve na máquina de escrever e insere no processo.”

Então, perguntei: “A senhora não datilografa?”

Ela respondeu que não. Peguei o livro e escrevi ali mesmo:

“Este livro de registro de audiência manual está arquivado a partir de hoje para todo o sempre. Amém.”

Depois, falei: “Agora vá buscar a escrevente e aprenda a usar a máquina de escrever.”

Eu não faria isso hoje. Eu tinha 26 anos e fui muito impositivo, talvez até grosseiro com ela. Naquela época, a transição para a tecnologia era algo muito desafiador, e ela acabou antecipando a aposentadoria porque não conseguiu se adaptar ao empuxo da modernidade em Tocantinópolis. Foi algo que, ao longo do tempo, me fez refletir sobre como conduzimos as mudanças.

E como foi essa vivência de fazer parte da construção do Judiciário Tocantinense? Que desafios o senhor teve que enfrentar nesse começo?

Eu já estava aqui quando criaram o estado. Cheguei em 1987, já pensando na criação do Tocantins, porque o movimento estava muito forte, muito denso. Eu disse ao meu pai: “Vou para o interior, voltar para Goiás, porque vão criar o estado e eu quero estar lá.”

No lançamento da pedra fundamental de Palmas, por exemplo, eu estava na missa. Eu acompanhei de perto a criação do estado, o burburinho sobre a escolha de Miracema como capital provisória e as disputas entre Gurupi, Araguaína e outras cidades. Fiz o concurso para juiz e fui aprovado, mas no início não quis assumir a magistratura, porque na época, com o Plano Cruzado, eu estava ganhando bem na advocacia. Quando vi o salário de juiz, decidi continuar advogando.

A situação mudou com o governo de Fernando Collor de Mello, em 1990.

No primeiro dia de janeiro, ele confiscou o dinheiro de todo mundo, deixando apenas R$ 50 nas contas. Eu já tinha um filho no colo e quase passei fome.

Foi então que pedi minha nomeação. Está tudo registrado: o documento do meu pedido, a desistência inicial e o pedido posterior. Quem me deu posse foi Siqueira Campos.

A partir daí, acompanhei os desafios da consolidação do estado. Ficamos como o “primo pobre” da Constituição. Goiás tirou o filé de Porangatu para baixo, eles ficaram com tudo e nos deixaram sem estrutura. Levaram tudo embora antes de entregar o estado, no dia 1º de janeiro. Saia caminhão carregado com mesas, cadeiras, armários, máquinas… Foi uma atitude muito covarde de Goiás.

Nós tivemos que começar do zero. As comarcas funcionavam, muitas vezes, em prédios improvisados, como puxadinhos de prefeituras. Os juízes moravam em casas que a prefeitura pagava. Eu mesmo tive que levar móveis e me virar para montar a estrutura. Construir isso do zero foi desafiador, mas, ao mesmo tempo, muito interessante. Eu adorava e ainda adoro esse tipo de desafio.

Eu adoro desafios, então, para mim, foi muito gratificante. Passei por várias comarcas e deixei os fóruns organizados, reformados e bem estruturados.

Pude constatar, de forma muito presente, que a autoridade de um juiz ou de um promotor, numa comarca do interior, tem um impacto social imenso. Eles podem transformar a realidade local, e foi isso que me apaixonou. Por isso permaneci 30 anos na magistratura.

Como o senhor vê, juridicamente, a evolução da Justiça no Tocantins?

Talvez pelo fato de ser um estado menor e mais novo, o Tocantins foi um dos estados que mais evoluiu. Com o desafio da construção inicial, hoje talvez sejamos o estado mais bem aparelhado do país em termos tecnológicos. Desde 2012, por exemplo, a minha vara, a Segunda Vara de Palmas, foi a primeira vara do Brasil a ser inteiramente digital.

Nós conseguimos avançar rapidamente porque era mais fácil implementar mudanças em um estado novo. Fizemos a transição do papel para o digital sem custos adicionais para o Tribunal de Justiça. Isso só foi possível porque houve muito trabalho e dedicação. Esse desafio de sair da máquina de escrever para um sistema totalmente informatizado foi enorme, mas conseguimos. Em 2006, com a criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Tocantins se tornou um laboratório para muitas inovações no Judiciário.

Tivemos presidentes de tribunais como os desembargadores Marcos Villas Boas, desembargadora Ângela, Jaqueline, Daniel, que apoiaram essas mudanças. Eles sempre incentivaram quem estivesse disposto a inovar, e eu sempre quis participar ativamente. Por isso, estive presente em várias mudanças importantes.

Além da parte tecnológica, participei diretamente na formação e nos concursos de servidores e de juízes. Presidi comissões e fiz questão de conversar com os novos juízes que chegavam ao estado, orientando e compartilhando experiências. Coloquei a mão em cada transformação, e isso me trouxe uma experiência muito rica.

Por isso, digo que sou um dos construtores do Judiciário do Tocantins. Cada pessoa que esteve aqui naquele início, independentemente da função, seja juiz, servidor ou até mesmo o pedreiro que veio para cá no começo do estado, contribuiu com seu tijolinho para construir esse poder que temos hoje. E agora, podemos dizer com orgulho que o Judiciário tocantinense está entre os mais modernos e bem estruturados do Brasil.

O senhor falou que houve uma evolução tecnológica no Judiciário, e com relação às decisões e à prestação jurisdicional, o senhor acredita que também houve progresso?

Evoluiu, mas ainda precisa melhorar muito. Precisamos ter um olhar mais complacente, mais humano, de nos colocarmos no lugar do outro, de entender que quem está nos pagando é o povo, o usuário do serviço. Hoje, o cidadão que entra com um processo sabe quando ele começa, mas não sabe quando vai terminar. É um serviço de péssima qualidade em relação à duração das demandas. Precisamos mudar isso, focar em resolver o problema das pessoas, não apenas em processar papéis.

É essencial entregar resultados com mais rapidez, com mais clareza e, principalmente, com uma linguagem acessível ao cidadão.

Eu lembro que, depois de 10 anos de formado, quando comecei a trabalhar junto com outros colegas, conseguimos dar uma virada nesse aspecto ao entender que o nosso “patrão” era quem estava no balcão pedindo atendimento. Isso mudou a nossa visão de como lidar com a prestação jurisdicional.

Buscamos implantar padrões de qualidade, como o ISO 9001, e alinhamos a tecnologia com a gestão. Hoje, o juiz que não entende de gestão está muito atrás das demandas, que crescem cada vez mais. A morosidade do Judiciário não é um problema exclusivo do Brasil, é um fenômeno mundial. Países como Itália, Espanha e Portugal têm um sistema muito mais lento e problemático, mesmo sendo menores em tamanho e população.

Aqui, no entanto, a questão é agravada porque a Constituição de 1988 trouxe uma expansão de direitos que aumentou exponencialmente as demandas judiciais. Isso é positivo, mas o Judiciário não se preparou para lidar com esse volume. Além disso, cada juiz trabalha de forma muito individualizada, sem um sistema padronizado ou protocolos comuns. Se tivéssemos um sistema único, com critérios e protocolos estabelecidos para despachos, decisões e audiências, a prestação jurisdicional seria muito mais ágil. Não sei se isso humanizaria o Judiciário, mas, em termos numéricos, aceleraria o processo consideravelmente.

Foto: Sarah Pires

Sobre essa sua veia de escritor, de onde surgiu o interesse em escrever e se comunicar com o público por meio de livros?

Eu escrevo desde criança. Sempre fui muito curioso, criado com uma imersão intensa na leitura. Para você ter uma ideia, li toda a biblioteca do meu colégio antes dos 15 anos, todos os romances e livros que estavam disponíveis. Essa paixão pela leitura me deu uma bagagem muito rica. Quem lê muito, escreve bem — ou pelo menos tem uma boa base para isso.

Desde cedo, escrevia poesias, poemas e participava de jograis e atividades culturais. Fui coroinha de igreja e, onde tinha movimento, onde tinha alguma atividade de escrita ou expressão, eu estava presente. Esse perfil me acompanhou durante a vida, e, quando comecei a ter tempo, passei a dedicar mais atenção à escrita de livros.

E sobre sua transição da magistratura para a advocacia? Como tem sido essa experiência?

Foi um grande desafio, mas também muito gratificante. Planejei essa transição há anos, esperando que meus filhos se formassem em Direito para que pudéssemos trabalhar juntos. Foi uma decisão de família, e eu me sinto privilegiado por poder atuar ao lado deles.

Abdiquei da carreira na magistratura, mesmo estando próximo de me tornar desembargador, porque queria dar espaço para meus filhos no Judiciário. Hoje, trabalho com eles no escritório e também com minha esposa, que é minha companheira há mais de 35 anos. É uma honra estar ao lado deles, construindo algo juntos.

O escritório cresceu muito. Temos 22 pessoas na equipe, com atuação em diversos estados, do Maranhão ao Rio Grande do Sul. Uma das áreas em que mais atuamos é a de Direito de Família, especialmente em inventários.

Alguns casos que o senhor trabalha atualmente, são referentes a inventários e heranças. Como o senhor avalia esse tipo de processo aqui no Brasil?

Inventário é, muitas vezes, uma das piores situações para uma família. É onde as divergências e conflitos surgem com mais intensidade. Quando o patriarca ou a matriarca estão vivos, muitos problemas são abafados. Mas, no inventário, tudo vem à tona: disputas, mágoas e até rancores que estavam guardados há décadas.

O problema é que o inventário, quando mal conduzido, pode fazer com que as famílias percam grande parte do patrimônio. Entre impostos, honorários e brigas judiciais, o que resta é pouco. Por isso, sempre recomendo o planejamento sucessório. Hoje, há muitos instrumentos para isso: doações, testamentos, compra e venda, entre outros. Cada família pode encontrar a melhor solução para evitar conflitos futuros.

Algum caso interessante que o senhor possa mencionar?

Os casos, na sua maioria, possuem mais dificuldades familiares para serem resolvidos. Tem um caso agora, de dois irmãos que não se olham. Brigam o dia todo. Tem um caso aqui conosco agora recentemente encerrado de 10 herdeiros, um herdeiro fora do casamento, os nove chamaram esse rapaz, fizeram o DNA, deu positivo, reconheceram ele como irmão e deram para ele ser inventariante. Estamos dividindo agora amigavelmente entre as partes.

E para finalizar, conte pra gente como é que está sendo a experiência de rodar o Tocantins para divulgar seu livro? 

Foto: Sarah Pires

Tem sido muito emocionante. A maioria das pessoas mencionadas no livro ainda está viva e se reconhece na história. Recebi mensagens de leitores me corrigindo e complementando informações, o que enriquece ainda mais o trabalho. Tocantinópolis foi um grande laboratório para mim, e retornar lá depois de tantos anos foi especial.

O livro é como um filho. Quando você publica, ele ganha vida própria. Ele é criticado, elogiado, e às vezes diz coisas que você nem esperava. Mas essa é a magia da literatura. Poder contribuir com a história e a memória do Tocantins é algo que me deixa muito feliz.

Imagem da página 97 do livro: Tocantins e eu: memórias de um construtor do estado do Tocnatins/ Luís Otávio Fraz

Isso tem sido um grande laboratório. Sempre sou muito bem recebido. Por exemplo, no livro, trago o primeiro Habeas Corpus do Poder Judiciário do Tocantins. Fui eu que fiz, como advogado. Se você abrir na página 97, verá a imagem de um disquete, que marca o início do uso da internet no Poder Judiciário. Em Tocantinópolis, havia um provedor chamado Moura Net, administrado por um advogado, o Doutor Geovane. Tive a sorte de o primeiro provedor estar lá.

Eu fui até ele e perguntei: “Doutor, como é que funciona isso? Me explica.” Ele explicou e eu perguntei: “Posso integrar o Poder Judiciário nisso?” Ele respondeu: “Claro, como é que você quer fazer?” Após ouvir as orientações dele, baixei uma portaria, e passamos a levar, toda sexta-feira, o disquete com as movimentações judiciais para inserir no provedor.

A partir dali, advogados e magistrados começaram a acompanhar a movimentação do Poder Judiciário através do Moura Net. E o mais interessante: fizemos tudo isso sem custo algum para o Judiciário. O desembargador Moura Filho, na época presidente do Tribunal, foi até lá para conhecer o que estávamos fazendo. Ficou impressionado e decidiu replicar a ideia em todo o Estado.

Era algo muito artesanal: o equipamento era bem simples, daquele tipo pequeno, que você usava para acessar a internet. Cada comarca ia contribuindo com um pedacinho, como se fossem peças de um crochê, até formarmos uma grande colcha de retalhos que resultou na formação do Poder Judiciário na internet. E tudo começou com um simples disquete.


Mais alguma coisa que o senhor gostaria de falar aos nossos leitores?

Quero aproveitar a oportunidade para agradecer a você e aos leitores. Para quem quiser saber mais sobre o livro, é possível comprá-lo na bio do nosso Instagram @frazluisotavio. É sempre uma honra poder entregar esse presente, porque publicar um livro é como dar à luz a um filho. Ele ganha vida própria, vai para o mundo e, às vezes, expressa coisas que você não esperava ou omite o que gostaria de ter dito. Mas essa é a grande mágica de escrever. Poder contribuir para a história e memória do Tocantins é um privilégio.