Por: André Demarchi; Héber Rogério Grácio; Thiago Allan Ribeiro de Oliveira

Nessa semana aconteceu a maior feira do Agronegócio da região norte. A famosa Agrotins. Como de praxe, lá estivemos para observar criticamente a feira em uma aula campo com estudantes do curso de ciência sociais, do campus de Porto Nacional. A proposta da aula era experimentar na Agrotins a observação participante, técnica de pesquisa antropológica em que o pesquisador ou pesquisadora participa dos eventos, observando criticamente a sua experiência e aquelas que ocorrem ao redor. 

Ao chegar na feira, após transitar por uma estrada repleta de propagandas dos produtos do Agronegócio, paramos diante da entrada para reunir o grupo e nos demos conta do lema do evento nesse ano: “Evolução do Agro”. Ficamos perplexos. 

Em algumas aulas anteriores estávamos estudando como do ponto de vista das ciências sociais a ideia de “evolução” é muito complexa… e perigosa. Desde o seu surgimento em meados do século XIX, ela foi continuamente usada para legitimar todo tipo de violência e colonialismo pelos estados nacionais contra povos indígenas em todo o mundo e assim parece continuar acontecendo. A ideia de evolução social ou cultural surge como uma forma de hierarquizar as sociedades tecnologicamente “mais desenvolvidas”, criando uma escada imaginária em que as sociedades indígenas e afro-brasileiras, aquelas que hoje mantém o pouco de cerrado que resta em pé, estariam nos últimos degraus e as sociedades euro-americanas estariam no topo. Nas aulas debatemos como na antropologia e nas ciências sociais, a ideia de evolução está totalmente ultrapassada, pois foi derrubada ainda no início do século XX por pensadores e pensadoras que defendiam o relativismo cultural. Mas na sociedade não é bem assim. Essa ideia está muito presente e a vemos ali na Agrotins, espalhada em todos os cantos.

Como em um golpe do destino, no dia seguinte a nossa presença na feira, recebemos o comunicado do MAPBIOMAS sobre desmatamento nos biomas brasileiros. As notícias pareciam boas, o desmatamento caiu em todos os biomas… só que não… Infelizmente não temos o que comemorar. Os dados mostram o estrago da “evolução do Agro” sobre o bioma cerrado. Como diz a manchete do G1 que chegou na tela do meu celular: “Desmatamento no Brasil recua, mas Cerrado concentra maior área e mais de 50% das perdas, aponta Mapbiomas”. A matéria é cristalina: “segundo o estudo do Mapbiomas, os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, região conhecida como Matopiba, concentrou 75% do desmatamento do Cerrado e cerca de 42% de toda a perda de vegetação nativa no país”. 

O cerrado está morrendo. A tal “evolução do agro” é contra a vida deste bioma, plantado e cultivado por cerca de 8.000 anos pelos povos originários dessa região. O arqueólogo da USP Eduardo Neves, que tem se dedicado já há muitos anos ao estudo arqueológico dos biomas brasileiros como a Amazônia e o Cerrado, afirma que os frutos que conferem identidade a nossa região como o pequi, o buriti, o cajuí, o murici, a bacaba, o babaçu, o cupuaçu e o açaí se tornaram espécies hiperdominantes aqui no cerrado e na amazônia porque tem sido manejadas por esses povos por milênios. É por isso que elas abundam em nossa região, porque foram plantadas ancestralmente e continuam sendo até hoje nos territórios protegidos. E agora, a cada derrubada do correntão e a cada queimada ilegal, a cada pasto ou plantação de soja, um pedaço a menos dessa história ancestral existe. 

Durante a aula campo uma estudante perguntou:  professor, não existem máquinas para proteger o cerrado? A gente só vê máquina de destruição aqui né? Incialmente lembramos a ela do pavilhão da agricultura familiar, onde estavam mais uma vez escanteados os quilombolas, indígenas e pequenos produtores rurais. Disse que são eles que protegem o cerrado, e sua principal arma de defesa é seu modo de vida, altamente integrado a natureza e a terra. Mas por outro lado, precisamos concordar com ela. Estávamos diante de uma daquelas máquinas gigantes que plantam milhares de sementes transgênicas por minuto. Na dianteira da máquina estava escrito: “PODE TUDO” e “BOCARRA 7654”. De fato, a máquina imponente parecia ter vários dentes afiados em sua grande boca de mastigar a terra, exemplificando a produção em série dessas gerigonças futuristas e ao mesmo tempo retrógradas, uma vez que estamos falando da destruição do cerrado em plena época de discussão mundial em torno da emergência climática. Evolução do agro?

Inevitavelmente lembramos da ideia de necropolítica, do filósofo Achile Mbembe. Um conceito que diz sobre o uso do poder para decidir quais pessoas podem viver e quais não podem, pois existe uma distribuição desigual da oportunidade de viver e morrer nas sociedades contemporâneas, dependendo da condição racial, social, econômica, étnica e política da pessoa. Ao ouvir esse questionamento da aluna e lembrar desse conceito, pensamos sobre como, na Agrotins, de certo modo, estamos vendo atuar uma necropolítica da natureza, onde os senhores do Agro escolhem qual parte do cerrado será agora morto. Agrotins ou “Necrotins”?

Para ilustrar esse quadro e buscar um elemento paralelo próximo ao cotidiano dos nossos leitores da cidade de Palmas, percebemos que a próxima vítima já está decidida: será a APA (Área de Proteção Ambiental) da Serra do Lajeado que possui uma área de 121.417,7659 hectares e protege além de uma infindável agrobiodiversidade de espécies animais, vegetais e territoriais, vários sítios arqueológicos e cosmológicos além de aquíferos fundamentais para a sobrevivência da população da capital e de seu entorno. Pois se depender do atual Governo e seus órgãos de (des)controle, estamos literalmente fritos nos próximos verões. Na própria Agrotins, o governador deu o tom do sentido hegemônico no Tocantins para a palavra evolução: liberou o licenciamento de propriedades dentro da APA sem a apresentação de um instrumento fundamental que é o plano de manejo, responsável por demonstrar as áreas ocupadas, desmatadas e preservadas das propriedades. A Naturatins, órgão que deveria exigir e fiscalizar o plano de manejo dos proprietários foi um dos articuladores dessa negociação que envolveu também (pasmem!!!) o Ministério Público Estadual e a Procuradoria-Geral do Estado, órgãos que deveriam defender os interesses do povo. 

Lembramos das inquietações da estudante e pensamos a partir delas que as máquinas de guerra contra a vida do cerrado são também máquinas administrativas, burocráticas e jurídicas que se armam para caber a qualquer custo dentro das famosas “quatro linhas da legalidade”.  

É por isso que nos perguntamos no título desse pequeno texto: evolução do agro ou destruição do cerrado? 

E acrescentamos: Vamos deixar o cerrado morrer?

Este artigo reflete a opinião pessoal dos autores, não representando necessariamente a posição editorial do Jornal OpçãoTocantins.