Por Raí Almeida

Uma frase atribuída ao presidente estadunidense John F. Kennedy diz “Uma maré que sobe levanta todos os barcos” e o filme Vitória, do cineasta carioca Andrucha Waddington, de 2025, parece trabalhar com afinco para manifestar cinematograficamente a concretude dessa frase. Estrelado pela veterana do teatro, da TV e do cinema, Fernanda Montenegro, Vitória estreou nas telas brasileiras dividindo salas com “Ainda estou aqui”, de Walter Salles, no qual Montenegro atua com a filha, Fernanda Torres. 

Em Vitória, estamos em 2005 e acompanhamos Dona Nina, uma moradora da Ladeira da Misericórdia, periferia do Rio de Janeiro. Indignada com o crescimento do tráfico de drogas e a inação da polícia, ela resolve filmar o movimento criminoso de sua janela a fim de juntar provas e entregar à polícia, visando despertar uma ação que acabe com os tiroteios constantes que abarrotam suas paredes com rastros vulcânicos. Em um desses episódios, assustada pelo abrupto som dos tiros, Dona Nina deixa cair uma xícara que se despedaça. Está construída a metáfora: à medida que o crime cresce, algo se despedaça nela e em sua comunidade. Essa metáfora parece representar um dos momentos cruciais da narrativa: a ruptura, uma cisão no mundo da personagem que é, de certo modo, desfeito no cair e quebrar da xícara.

Esse recurso parece evocar outras obras artísticas que fazem uso dessa metáfora. Como exemplo, cito o prato quebrado que o professor Walter White tentar reconstruir na série Braking Bad, antes de uma sequência de infortúnios acometeram o personagem, e os ovos quebrados quando, desestabilizada pela visão de um cego que masca chicletes, num solavanco do bonde, Ana deixa o saco de tricô cair em Amor, conto de Clarice Lispector. Em todas essas narrativas há um ponto em comum: a ideia do rompimento, de uma fragmentação temporal entre o antes e o depois que é alterado pela volúvel e inconsistência do presente. Metaforicamente, o objeto quebrado representa uma ruptura do mundo da personagem que, enxergado como microcosmo, maximiza e denuncia uma situação plural.

A personagem de Montenegro até tenta consertar a xícara, colocar seus pedaços no lugar, mas remendar nem sempre significa reconstruir. Assim como o mundo visto através de sua janela, com todos os seus malefícios (crime organizado, tráfico de drogas, envolvimento de crianças no mundo do crime e a corrupção da polícia), a xícara não consegue conter o café, o líquido escorre pelas frestas deixadas na porcelana colada.

Vitória estaria, dessa forma, vista sob a perspectiva da metáfora, atravessada pelo mundo que a cerca e do qual ela não consegue reter e nem modificar coisa alguma, seja pela incapacidade civil, pela burocracia estatal ou pelo avanço da criminalidade. A atuação de Fernanda Montenegro é um primor e a faz se tornar o filme em si. Tudo está contido nela, no olhar de Nina, na ação de Vitória, no grito de não conformismo com o mundo que a cerca. Montenegro filmou Vitória com 93 anos, o que a transforma numa protagonista não só de um bom filme, mas na estrela de uma geração, numa conquistadora de uma fase humana – a velhice – e porta voz de um país inteiro. A Vitória com Montenegro é dupla: não se render ao caos crescente do mundo e não se deixar dominar pelo clamor do corpo que reivindica descanso.

O cinema nacional tem visto e vivido uma crescente nos últimos anos. O nível de produção, a qualidade do material realizado e o interesse pela consolidação da cinematografia brasileira têm sido objeto de busca de cineastas muito competentes, o que justifica o desejo não só pela presença, mas pela concorrência em festivais e prêmios internacionais. Filmes como Central do Brasil (1999), Que horas ela volta (2015), Aquarius (2016), Bacurau (2019) e, mais recentemente, Ainda estou aqui (2025) tem levado o Brasil a lugares e conquistas inéditas. A força do audiovisual brasileiro é inegável, mas talvez seu maior trunfo seja fazer o brasileiro sair de casa para ver e se reconhecer no cinema. É um movimento que chega em ondas, sejam elas mais brandas, ou um verdadeiro vagalhão de cultura e identidade. No final, o que importa é que, nesse mar Brasil, somos todos barcos navegando a mesma alta maré.

Biografia
Raí da Rocha Almeida tem 32 anos e reside em Araguaína – TO desde janeiro de 2024 quando assumiu a regência do Componente Curricular de Língua Portuguesa na Escola Estadual Paroquial Luís Augusto. Possui graduação em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás – PUC/GO, tem mestrado em Língua, Literatura e Interculturalidade pela Universidade Estadual de Goiás – UEG. Como professor da Rede Estadual de ensino do Estado do Tocantins, criou o Jornal da Escola – EESTA GAZETA com os alunos do 9º Ano, em 2023; em 2024, com foco na leitura e produção de poesia na escola, elaborou e desenvolveu o projeto Cerrado em verso e prosa com foco em literatura de Cordel com o qual concorreu ao Prêmio Escola que transforma. No mesmo ano, criou o Interclasse Literário, uma competição literária focada na leitura, interpretação e interdisciplinaridade realizada com os alunos de 6º a 8º Ano do Ensino Fundamental II; criou também o Clube do Livro da EEPLA no qual propõe leitura e interpretação sobre contos e poemas de Cordel e é mediador das discussões sobre as obras realizadas em encontros com alunos do 9º Ano na escola. Atualmente, em parceria com a UFNT, está desenvolvendo um Cordel coletivo com os alunos de 7º e 9º Ano sobre a história de Araguaína a ser publicado em livro ainda em 2025.