Coalizão Vozes do Tocantins: “Precisamos reflorestar as mentes das pessoas, não só a natureza”

18 maio 2025 às 09h55

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O Tocantins, território de rica sociobiodiversidade e marcado pela presença de comunidades tradicionais, quilombolas, indígenas e agricultores familiares, tem se destacado na luta por justiça climática no Brasil. Nesse contexto, a Coalizão Vozes do Tocantins, que integra o Programa Vozes pela Ação Climática Justa (VAC), atua há cerca de três anos reunindo organizações comunitárias, movimentos sociais, entidades de assessoria e instituições acadêmicas para fortalecer a defesa dos direitos territoriais e ambientais no estado.
Formada atualmente por 15 organizações, a coalizão trabalha pela preservação ambiental e pela garantia de modos de vida tradicionais, articulando ações locais e participação em espaços de debate nacional e internacional, como a Conferência das Partes sobre Mudanças Climáticas (COP). Um dos eixos importantes dessa atuação é a formação de jovens ativistas e a construção de propostas para inserir o Tocantins na agenda climática global.
Nesta entrevista, Sarah Tamioso e Antonio Marcos, integrantes da Coalizão Vozes do Tocantins, falam sobre os desafios e conquistas do coletivo, a importância da democratização do debate climático, a defesa dos territórios e a expectativa para a COP 30, que ocorrerá em Belém (PA). O diálogo reforça a necessidade de ampliar os espaços de escuta e decisão para povos e comunidades tradicionais na formulação das políticas ambientais e climáticas.
Nossa intenção é saber qual vai ser a atuação do Tocantins dentro da COP, porque parece que o discurso está bem fechado para as instituições. Mas como está a participação dos movimentos dentro da Coalizão Vozes do Tocantins?
Antônio Marcos: Aqui no Tocantins, o cenário não está descolado da nossa região, da Amazônia. Temos o bioma amazônico e a geopolítica da Amazônia Legal. Nosso estado compreende tanto o bioma amazônico quanto o cerrado.
Esses dois biomas estão inseridos numa lógica histórica de expansão, não recente, e ainda vivemos esse momento de expansão, que é a história do projeto Matopiba, um projeto de expansão na fronteira.
Estamos numa grande região considerada de expansão para um único modelo que chega para essa região. O Matopiba é esse projeto articulado por grandes empresas, mas também com recursos públicos, com gerência do Estado e dos governos.
Os governos estaduais, municipais e o Governo Federal cumprem papel fundamental na reorganização dessa estrutura e dos projetos que chegam para regiões até então avaliadas pelos próprios governos, especialistas e lobistas.
Essa expansão busca terras férteis, recursos naturais como minério, madeira, água, produtos da sociobiodiversidade e frutos da floresta. Esses recursos são apropriados por empresas para se transformarem em mercadorias para o mercado, com uma narrativa de sustentabilidade.
Esse é o cenário com que convivem os povos da floresta, tanto os do cerrado quanto os da floresta em si. Não são só os povos indígenas e as comunidades quilombolas. As próprias comunidades quilombolas na Amazônia criticam as ações do governo, pois lutam por visibilidade histórica.
Existem quilombos na Amazônia, não são só os povos indígenas que vivem lá. Também lutam por visibilidade os ribeirinhos, seringueiros, pescadores artesanais, extrativistas, quebradeiras de coco babaçu, posseiros, camponeses e raizeiros. Uma grande gama de povos da floresta que vivem numa relação de respeito e convivência com a natureza, mas são invisibilizados.
Essa diversidade étnica e cultural compõe a nossa Amazônia.
O povoamento das pequenas cidades aqui é forte, com uma relação profunda com o rio, a terra, a floresta, a natureza e o extrativismo, que é muito presente. Temos uma história da borracha na região, dos seringueiros, e outros frutos.
O Tocantins se insere nesse cenário, com uma grande diversidade de povos tradicionais, incluindo indígenas, quilombolas, quebradeiras de coco, torronzeiros na região do Cantão, além de povos agricultores tradicionais que mantêm um modo de vida ligado à terra e ao bioma onde vivem, reproduzindo-se social e culturalmente.
Esses povos se destacam pela ancestralidade forte, religiosidade, raízes culturais marcantes, tanto no cerrado quanto na floresta.
As comunidades, povoados, aldeias e pequenas cidades mantêm uma relação muito próxima com o rio, a floresta, o cerrado e a terra. Essa relação é o que une o bem comum entre quem tem a terra para trabalhar e quem tem a terra para negócio.
Isso faz parte da formação da Amazônia. De forma breve, embora eu não seja antropólogo, é a partir desse conhecimento, desse olhar para a região, que entendemos quem povoou historicamente a Amazônia e o cerrado, e quem são os sujeitos que vivem nesses biomas.
O que esses povos podem levar para a COP, especialmente no contexto do Tocantins, que mistura cerrado com Amazônia e tem essa confluência de biomas, incluindo a proximidade com o Pantanal? Como o Tocantins entra com essas comunidades e povos que você falou? O Tocantins começa a se articular? São vários grupos já articulados, movimentos sociais, mas também grupos independentes?
Antônio Marcos: Sim, são grupos de povos do campo e lideranças que se articulam com diversas comunidades, mas também temos o campo da ciência, universidades, estudantes muito interessados em participar. A atenção mundial vai ficar em Belém durante a conferência.
É um evento histórico, pois a Amazônia recebe esse evento mundial que debate uma questão de relevância internacional e urgência: a questão climática.
No Tocantins, esses povos se articulam de forma muito autônoma, em parte pelo distanciamento do poder público, embora alguns estejam mais próximos e também irão para Belém. Não será a primeira vez que os povos vão a Belém.
Os povos já participaram de eventos internacionais, como em agosto de 2023, no Diálogos Amazônicos, que reuniu várias lideranças mundiais em Belém, e os povos organizaram uma grande marcha pela Amazônia, com documentos fortes e críticos, inclusive sobre a não participação dos povos na tomada de decisão.
Os povos sempre ficam na periferia do processo de construção e não são incluídos na estrutura que toma as decisões. Fala-se dos povos, mas sem os povos.
O mundo vem para a Amazônia, mas os povos se sentem excluídos da construção desse processo, que ainda é indefinido, inclusive por questões logísticas.
Ouvi dizer que os hotéis em Belém estão caríssimos e muita gente não consegue se hospedar. Isso é um detalhe, mas falo da organização e estrutura da COP.
Sarah Tamioso: Os povos e suas organizações questionaram o presidente da COP sobre isso, pois queriam coparticipação, até na copresidência. Mas ainda é uma luta difícil.
Essa COP é uma das mais importantes que já tivemos ou teremos, principalmente pelo protagonismo do Brasil, que tem uma história importante desde a Eco 92, que promoveu a atenção ao meio ambiente.
O Brasil esteve presente desde Dubai, onde teve a oportunidade de se preparar para esse momento. É também uma data para balanço, pois são 10 anos do Acordo de Paris, que definiu a meta de manter o aumento da temperatura global abaixo de 1,5 grau Celsius em relação ao período pré-industrial.
Esse limite foi acordado para evitar uma catástrofe climática, um desencadeamento de caos. O acordo foi uma das COPs mais bem-sucedidas. Teve outras que fracassaram, inclusive por falta de confiança entre países, mas essa foi um sucesso.
O Brasil tem uma influência importante nas negociações, sendo conhecido como um bom diplomata. Durante a COP 28, ouvi elogios de outros países quanto à diplomacia brasileira.
Mas o que interessa de fato para nós é o poder popular, a manifestação popular, porque apesar de já estarmos na edição 30 das COPs, muito pouco avançou no enfrentamento do problema climático.
Estamos muito atrasados em relação à dimensão do problema. Essa COP é importante, mas a gente não consegue interferir muito no que acontece dentro da estrutura oficial, porque para isso é preciso ter credencial, fazer parte de uma organização, se cadastrar com muita antecedência. É muito burocrático.
Conseguimos a credencial da Onça d’Água, que faz parte da coalizão, e eu fui a representante credenciada da Onça d’Água.
Mas também há outro movimento, que é a Cúpula dos Povos, que acontece paralelamente à COP oficial.
Eu não sou a maior especialista para falar sobre a cúpula dos povos, mas sei que é um espaço periférico, que não está dentro das negociações oficiais, mas onde os povos podem promover programações, se mobilizar e fazer barulho. O Brasil é um país democraticamente prático, onde é possível fazer manifestação. Já em países como Egito, Baku e Dubai, era proibido se manifestar. Muitas vezes, nesses espaços, nem era permitido fazer barulho.
Ouvi relatos sobre isso na COP em Dubai: a presidente executiva da Rede Cerrado quase foi expulsa porque girou a bandeira, que é um costume. Girar a bandeira aqui, em cima da cabeça, é algo comum para chamar o pessoal para o momento, o convite. Mas os seguranças do evento viram e a situação precisou ser controlada — a manifestação dispersou, serviu só para tirar fotos e registrar o momento, porque o país era muito opressor. Então, o fato de ser no Brasil é importante por isso.
Sobre o Tocantins, a gente da coalizão está acompanhando a movimentação para ir, mas há muitos desafios. Não acho que seja para falar mal, porque esses eventos são sempre estressantes, caóticos e com muita gente. Lá a situação está um pouco diferente, a inflação está complicada, mas temos intenção de participar. Só não sei se muita gente vai conseguir entrar de fato.
As organizações têm interesse, mas precisam de apoio, porque é muito difícil ir sem ele.
Antônio Marcos: A própria cúpula reunirá mais de 100, 200 organizações do mundo, em Belém. Será um evento paralelo que reúne ativistas, movimentos sociais, organizações de base, ambientalistas — um grande evento internacional paralelo à COP, que acontece junto com ela.
Tem uma programação vasta de mobilização, debates, agendas, de forma diversificada e autogestionada, com grandes temas trazidos para a cúpula, inclusive com um olhar crítico ao evento mundial.
A gente já se arrasta por muitos anos e não enxerga uma solução efetiva e concreta. Mais de 100 países se encontram para tomar decisões por consenso, mas que decisões serão tiradas? São perguntas que ficam.
Será que vão realmente trazer soluções ou vai se resumir a uma COP, discutindo o financiamento climático dos países ricos que poluem para os países em desenvolvimento?
É importante ressaltar que trabalhamos na perspectiva da justiça climática.
Sarah Tamioso: Percebi que isso ainda não é um conhecimento geral, pois comecei nessa área com a coalizão, que já vinha com esse discurso no meio ambiental. Justiça climática está no nome, mas não é todo mundo que sabe o que é.
A gente entende que os principais emissores não são as pessoas impactadas — pelo contrário, as pessoas que menos emitem serão as mais afetadas, as mais vulneráveis. Na coalizão, trabalhamos sempre com essa perspectiva da justiça climática, que exige compensação, preparação para mitigação (redução da emissão dos gases), e adaptação.
A justiça climática está como eixo norteador do Plano Clima Nacional, mas nos estados o termo ainda não foi absorvido.
Aqui no Tocantins, a discussão para quais demandas levar — porque não sabemos se haverá espaço para quem não é instituição ou governo, e não sabemos como será essa abertura — ainda está em construção.

Quais demandas o Tocantins pode levar para a COP? No evento paralelo ou não?
Sarah Tamioso: Isso continua em aberto, mas a principal demanda é a justiça climática. No Brasil, o problema nacional principal é a energia, os combustíveis fósseis, a queima de carvão e petróleo, que são o maior problema global que precisamos resolver.
Na Amazônia, a situação é preocupante, especialmente na foz. Esperávamos que este governo não agravasse, mas precisamos continuar atentos.
No Brasil, temos uma matriz energética relativamente sustentável, com grande presença de hidrelétricas, que não prejudicam tanto a camada de ozônio ou contribuem para o efeito estufa.
Mas 60% das emissões nacionais vêm da mudança no uso da terra e da agropecuária, e menos de 30% da energia.
No Tocantins, mais de 90% das emissões vêm da mudança do uso da terra e agropecuária.
Somos o sexto maior emissor do Brasil, mas não o maior — estados como Pará e Mato Grosso têm maior impacto, por conta da agropecuária.
Aqui no Tocantins, esse setor está crescendo, e enfrentamos uma luta desleal, pois não temos o peso do agronegócio e seus lobistas. Eles estão sempre muito presentes, e não conseguimos fazer com que nossas demandas sejam de fato ouvidas.
A coalizão veio para fortalecer essa voz, pois falando enquanto 15 organizações é mais fácil chamar a atenção. Palmas tem uma outra plataforma que recomendo, a Adapta Brasil, do Ministério de Ciência, Tecnologia e Informação, que mostra as principais vulnerabilidades de cada município.
Essa plataforma aponta que Palmas tem um risco alto — entre baixo, muito baixo, alto e muito alto — e o município está classificado com risco muito alto de crise de segurança alimentar e hídrica. São questões que precisam ser observadas com atenção.
Temos poucas áreas protegidas e as que existem ainda estão em risco, pois há revisões e intenções de plano de manejo na APA Ilha do Bananal, no Cantão, e recentemente houve a proposta de expandir essas áreas para pequenos e grandes produtores na APA Lajeado, que é a fonte da água que consumimos.
Caso a monocultura se instale nessa região, será necessário o uso de agrotóxicos para o cultivo, já que monoculturas não preservam a biodiversidade. Isso impactará negativamente o meio ambiente local. Temos demandas, mas raramente conseguimos espaços para serem ouvidas.
Por isso, valorizamos muito estar aqui para discutir, pois o governo apenas fala em crédito de carbono, o que resolve um problema global com uma solução capitalista, beneficiando o sistema, mas não protege o meio ambiente local.
Trata-se apenas de remuneração, não de mudança de visão sobre o manejo correto dos recursos vitais. Povos e comunidades tradicionais, camponeses e agricultores familiares têm muito a ensinar sobre essa gestão, mas tentam impor modelos estrangeiros, como os da Europa e dos Estados Unidos, que não têm funcionado aqui.
Esse desenvolvimento sustentável não considera que o solo não é afetado apenas na área desmatada para monocultura, como a soja, mas que o impacto atinge toda a região, contaminando os rios.
Li análises de água feitas pelo Ministério da Saúde no Tocantins, que indicam poluição por agrotóxicos em todos os municípios, com níveis proibidos na Europa, que podem causar câncer. Em relação a isso, como as 15 entidades na colisão têm atuado nessa questão, não apenas na COP, mas atualmente? Como garantir justiça climática, que beneficie não só quem sofre diretamente, mas toda a população, tanto ricos que poluem quanto pobres que passam fome? Gostaria que exemplificassem melhor.
Antônio Marcos: Como corrigir desigualdades? A justiça climática evidencia uma disparidade: quem mais polui transfere a conta para os mais pobres. Os povos da Amazônia pagarão essa conta.
Os pobres das cidades, especialmente negros expulsos do campo, vivem em desigualdade social profunda, sem acesso a climatizadores ou ventiladores para suportar o calor, e ainda enfrentam enchentes.
Essa disparidade é enorme. Os empreendimentos capitalistas provocaram as mudanças climáticas, mas não conseguem resolver a desigualdade, na verdade, a agravam. Por isso, essa luta é também uma luta por direitos humanos.
A justiça climática é uma luta por direitos fundamentais para quem vive no campo, na floresta e na cidade, sobretudo para os pobres, que acabam pagando mais por essa conta.
Muitos se perguntam qual é sua relação com a COP e o clima, pois não produzem soja nem criam gado, mas sofrem com as consequências do calor, enchentes e queimadas.
No que a coalizão tem feito, destaca-se a atuação na incidência política. Nos preparamos, qualificamos e aprimoramos nossa atuação diante dessas demandas.
Não temos condições de realizar adaptações climáticas, que demandam recursos financeiros elevados. Por isso, a coalizão atua na incidência para enfrentar o desmatamento, o uso de agrotóxicos e garantir a soberania e segurança alimentar.
Sarah Tamioso: Apesar de nova, desde 2022, a coalizão já possui trabalho estruturado, com três frentes principais: comunicação, incidência em políticas públicas (advocacy) e formação de juventudes.
A formação das juventudes é essencial, pois pesquisas indicam que as crianças de hoje enfrentarão eventos climáticos sem precedentes no futuro. Precisamos prepará-las para entender que esses eventos são consequências da ação humana, não fenômenos divinos.
Em relação à segurança alimentar, a maior parte dos alimentos que consumimos provém de pequenos produtores e agricultores familiares.
Com o avanço do agronegócio e dos latifúndios, essas populações têm sido marginalizadas nos contextos urbanos. São pessoas que vão morar nas periferias e não produzem alimentos; então, o que vamos comer? Não comemos soja, por exemplo. Isso também evidencia a questão do avanço do agronegócio, que reduz a diversidade de modos de vida no campo, onde existem pescadores, entre outros.
Muitas comunidades não estão necessariamente na cidade; geralmente, estão no campo e são mais vulneráveis, pois dependem de água sem tratamento. Elas serão as primeiras a serem impactadas, embora tenham modos de vida com impactos ambientais mínimos, não contribuindo para a emissão de carbono, ao contrário dos bilionários, que gastam em um dia a cota anual de carbono de uma pessoa comum.
Por isso, pedimos justiça climática, pois é uma questão de desigualdade. Também há a questão dos países que emitiram mais historicamente e os que emitem mais atualmente; esse balanço precisa ser compensado, já que alguns países, como ilhas, correm o risco de desaparecer. Cidades brasileiras, como Rio de Janeiro e Pernambuco, também enfrentam esse risco devido à elevação do nível do mar.
Antônio Marcos: É urgente mudar a matriz energética. A natureza já demonstra os efeitos há muitos anos, e os cientistas estão convencidos disso, mas muitos líderes mundiais ainda insistem na exploração excessiva dos recursos, apesar de o planeta não suportar mais essa exploração. Grandes conglomerados financeiros se apropriam da natureza, enriquecendo poucos e aumentando a concentração de riqueza.

Quais são hoje as principais carências do Tocantins em políticas públicas? Quais avanços são necessários?
Sarah Tamioso: Sabemos que as frentes prioritárias são o uso de agrotóxicos, o desmatamento e a água.
Antônio Marcos: Por um lado, nacionalmente, luta-se pela redução do uso de agrotóxicos com o Pronara, que precisa ser retomado; por outro, o Tocantins tem flexibilizado a legislação ambiental, fragilizando processos como o licenciamento ambiental e a fiscalização da lei estadual de agrotóxicos.
Há também pressão sobre o debate da pulverização aérea de agrotóxicos, que está associada ao modelo do agronegócio, que utiliza aviões e drones para aplicação, visando reduzir a mão de obra. O agronegócio tende a ter cada vez menos trabalhadores, seguindo um modelo de campo vazio, altamente mecanizado e tecnológico.
O Estado não possui uma política ambiental abrangente que envolva os povos do campo, tradicionais e setores urbanos. Não há diálogo nem uma política estruturada para enfrentar os problemas socioambientais do Tocantins. O campo está abandonado em políticas públicas, como demonstram dados do IBGE de 2006, que indicavam cerca de 60 mil agricultores familiares no estado, público que carece de assistência em saúde, educação, trabalho e geração de renda.
O Estado é ausente e nega direitos fundamentais básicos à vida dessas pessoas. Apesar de comemorar um aumento de mais de 10% na produção de soja na safra 2024-2025, o Tocantins possui municípios com baixo Índice de Desenvolvimento Humano e altos índices de desigualdade social.
Sarah Tamioso: A produção mecanizada concentra renda, não a distribui, enquanto o argumento do governo é o crescimento do PIB, baseado em metodologia que inflaciona números e conflita com dados do IBGE.
Além disso, o agronegócio recebe muito dinheiro público, muito mais do que a agricultura familiar, que emprega um número muito maior de pessoas.
Quero agora ouvir Sarah sobre sua experiência na COP em Dubai. Como foi sua vivência e o que você trouxe de importante para cá?
Sarah Tamioso: Constatamos uma parte que achei importante registrar. Eu e Olavo fomos os únicos representantes da sociedade civil tocantinense. Ele representava a juventude e eu fui para fazer a cobertura, mas também sou jovem. Recebi esse voto de confiança para estar lá.
Encontramos outras pessoas, mas que representavam organizações regionais ou nacionais, como a COIAB e Climate Reality Brasil.
Levei a questão das unidades de conservação, porque, como fui enquanto Onça d’Água, essa é uma pauta que trabalhamos lá. A sociedade civil estava quase ausente. Encontramos alguns políticos, mas ninguém representava a sociedade civil, só nós. A falta dessas pessoas nesses espaços é algo a ser constatado.
Houve participação, sim. Uma galera que também participa conosco do programa Vozes pela Ação Climática Justa. Nossa coalizão nasceu de um projeto maior com 14 coalizões. A nossa é uma das 14. Esse projeto, que incentivava a participação na COP, acabou, mas continuamos. Conseguimos nos fortalecer enquanto coalizão.
Complementando sobre conquistas da coalizão, constatamos um aumento muito grande na captação de recursos e projetos. As organizações da coalizão escreveram mais projetos para captar recursos e realizar seus trabalhos de base, que são muitos.
Uma conquista da coalizão é esse fortalecimento das organizações, que compartilham muitas coisas e se fortalecem como organizações.
Antônio Marcos: Poucas organizações conseguem acessar recursos. Muitas desenvolvem seus trabalhos nas comunidades sozinhas.
Isso é um problema da Amazônia e da nossa região: deveria haver mais igualdade na garantia de recursos, mesmo que mínimos, nesse processo de reparação. Esses valores bilionários dificilmente chegam às comunidades.
São realidades muito difíceis para enfrentar, inclusive, a crise climática.
Sarah Tamioso: O REDD é por edital, e existe enorme dificuldade para prestação de contas e gerenciamento dos recursos. Ninguém vai enriquecer, mas o dinheiro que chegar será de qualquer ajuda.
No entanto, o dinheiro ficará principalmente com o governo. Na repartição dos benefícios, o governo fica com mais da metade, dividindo entre indígenas, povos e comunidades tradicionais, agricultores, agronegócio e governo. Não vai gerar grandes mudanças.
Existe frustração porque só falam disso, sem apresentar outras soluções. Há um esforço grande para que o REDD saia do papel, mas há outras frentes? Não vemos nada. Só ingerência e problemas.
Há uma desigualdade muito grande de forças. Vão vender isso como solução, e Tocantins já está vendendo, assim como outros estados, com contratos existentes entre o governo e as comunidades. Na Ilha do Bananal, há comunidades que já vendem créditos.
Antônio Marcos: Esses contratos têm uma especificidade: são com o governo, não diretamente com as comunidades. É uma forma do governo vender a ideia e, ao mesmo tempo, blindar o agronegócio, que desmata e polui, sendo o principal emissor.
O modo de produção agropecuária no Tocantins e no Brasil é o principal emissor de gases.
Então, qual o plano para regular isso? Quem regula o agronegócio quanto à emissão? Quais os instrumentos e mecanismos para controlar o desmatamento, uso de agrotóxicos, queima, degradação do solo, poluição das nascentes e exploração da água?
Não existe mecanismo eficaz para regular o agronegócio, estabelecer controle ou limites. É um negócio desenfreado, que passa por cima de tudo.
É grave, porque, com o aumento da produção de soja, mais cerrados foram convertidos em cinzas. Não foi aumento de produtividade nas áreas abertas, mas abertura de mais áreas de cerrado e floresta para monocultura. O clima esquenta, e quem paga a conta é a natureza.
Sarah Tamioso: Nem o agronegócio percebe o prejuízo, pois é uma atividade que não vai durar muito. Exaurem o solo, passam para outra área e deixam o solo degradado. Esse solo não será recuperado, pois exige investimento.
Se fosse manejado corretamente, não precisaria recuperar as áreas. Respeitando o descanso do solo e os processos naturais, não seria assim. Mas eles buscam produção máxima para lucro imediato, sem pensar no futuro.
Por isso, envolvemos muito as juventudes, pois é o futuro delas que está em risco. Elas não terão os mesmos direitos que tivemos, à natureza, à água e à saúde.
Ainda somos jovens. Eu também estou sendo prejudicada, mas graças a Deus vivenciei bastante e gostaria de aproveitar nossos recursos.
Mas como esse debate pode ser facilitado para as pessoas? O que pode ser feito para tornar o debate mais acessível para a população em geral, para uma população que não tem acesso a muita informação como nós temos, pois estamos em um meio já informatizado?
Antônio Marcos: Há uma dificuldade, existe uma narrativa própria do agronegócio.
Dos lobistas que não estão no ramo do agronegócio, mas sim dos lobistas do petróleo, dos que exploram os recursos naturais para transformar em mercadoria, no nome da sustentabilidade, no nome do desenvolvimento sustentável. Desenvolvimento sustentável para quem? Sustentabilidade para quem?
É preciso conquistar a sociedade com a narrativa da sustentabilidade, de que a pecuária é sustentável, de que a soja é sustentável.
Essa narrativa tem ganhado a opinião pública, que permanece inerte e acredita, duvidando da nossa narrativa, da narrativa dos povos, da nossa crítica a esse modelo que polui e desmata, porque os principais meios de comunicação são eles que divulgam esse modelo do agronegócio. É a Globo que divulga que o agro é top, é tecnologia e outras qualidades.
São as feiras agrotecnológicas que apresentam as belezas do agronegócio, feiras lotadas de estudantes, professores, pesquisadores e trabalhadores, que acabam sendo levados a uma narrativa complicada, distante de temas como justiça climática e mudanças climáticas. O agronegócio distancia a população desses temas, e as escolas também ficam cada vez mais afastadas deles.
A temática que é trazida nas universidades e escolas não está inserida nos currículos e nos processos de formação para que haja uma geração crítica, um olhar crítico, uma visão de mundo crítica sobre o mundo em que vivemos. Como enxergamos esse mundo? Como problematizamos as questões atuais, especialmente o tema do clima?
Sarah Tamioso: Acredito que também é importante trazer para a realidade das pessoas, conforme a pedagogia de Paulo Freire. Durante muito tempo, desde a infância, aprendemos que o problema climático está distante, como o degelo na Groenlândia ou a crise na África. Porém, é preciso trazer esse debate para nossa realidade, pois já estamos sendo impactados. Pesquisas mostram que as pessoas percebem as mudanças climáticas, como o aumento da temperatura e a redução das chuvas.
É necessário falar sobre nossa realidade. Fiquei um pouco frustrada na universidade ao perceber que ainda há uma visão eurocêntrica do problema, sem trazer para o contexto local. A educação básica deve ensinar sobre os impactos que enfrentamos aqui, para que as crianças possam lidar com esses problemas no futuro. Precisamos de pessoas capacitadas, e o caminho é sempre a educação, um projeto que não é simples.
É um projeto complicado, que às vezes gera ansiedade, mas devemos nos fortalecer, especialmente ao encontrar outras pessoas na luta, como aconteceu em viagens e intercâmbios que participei, em Brasília e Acre. Conhecer outras pessoas de diferentes regiões da Amazônia Legal e do Cerrado mostra que há gente fazendo coisas, mesmo que de forma fragmentada.
Não há uma grande massa mobilizada, e tudo que vivemos hoje prejudica essa mobilização, inclusive o ritmo acelerado da vida, que dificulta refletir sobre esses temas. É difícil exigir que as pessoas se preocupem com a qualidade da água quando estão preocupadas com a comida do dia seguinte.
Sinto frustração frequentemente, inclusive ao ouvir elogios do tipo “Que bom que você está nisso, mas vá lá porque a gente não vai.” Não dá para lutar sozinho, e é perigoso tentar. Por isso falamos sobre articulação em rede e fortalecimento das organizações de juventude. Estamos nesse processo, mas percebo que há um esvaziamento da participação popular como projeto.
Nos conselhos de unidades de conservação e de bacias, há muitas pessoas com conflito de interesses, que buscam explorar esses espaços ao máximo, não pessoas interessadas em proteger ou gerir de maneira responsável e respeitosa os recursos.

Para concluir, há esperança? Existe um caminho para que o Tocantins esteja à frente ou seja protagonista da agenda climática nacional?
Antônio Marcos: Vamos esperançar na agroecologia, na agricultura familiar camponesa, na economia solidária e popular, em outros modos e modelos de vida no campo, numa aliança forte em defesa da natureza. Esse é nosso projeto, um projeto de soberania popular, em defesa da Amazônia, de seus povos e modos de vida, que seguirá enfrentando a expansão e a acumulação capitalista que transformam tudo em mercadoria e destroem a natureza.
A luta pela natureza é uma luta de toda a sociedade. Essa luta será expressa na Cúpula dos Povos, um evento internacional de resistência que será um grito ecoado em Belém para dizer basta.
A natureza pertence ao povo, e a luta pela soberania continua, com o direito à água, à terra e a um ambiente equilibrado, limpo e com ar puro. Essa é uma agenda internacional dos povos.
A cúpula certamente reunirá, se nossas vozes não forem ouvidas nas alas oficiais da COP30, as ruas de Belém ouvirão as vozes dos povos da floresta, das águas, das cidades, da Amazônia, do Cerrado, da Caatinga, do Pantanal, dos Pampas e do mundo.
Estamos construindo a agroecologia como ciência ancestral que nos ensina muito, e aí reside nossa utopia e esperança de um futuro em que a casa comum será protegida e cuidada pelos guardiões da terra e da biodiversidade. Como defendeu o Papa Francisco em sua encíclica sobre ecologia integral, devemos cuidar da casa comum, em harmonia entre os povos e a natureza.
Inspirados por líderes como Pepe Mujica e o Papa Francisco, defensores da natureza, da vida e da humanidade.
Sarah Tamioso: Me sinto mais otimista ao conhecer melhor a Amazônia como um todo. O Tocantins é um estado novo, o que pode significar mais espaço para lutar do que em estados onde o problema está mais enraizado. Apesar de ser uma região crítica por estar na Amazônia, no Cerrado e no Matopiba, e ser um dos biomas mais ameaçados por ter pouca área protegida, acredito que há esperança.
Só precisamos de aliados, educar as pessoas e formar lideranças que possam nos guiar. Acredito que divergimos da comunidade brasileira em valores, pois vivemos um consumismo baseado no “ter” e não no “ser”. A cosmovisão dos povos e comunidades tradicionais é integrada à natureza, o que torna difícil falar de natureza para quem vive em grandes cidades, como São Paulo, sem contato com o meio natural.
Para outros países, também é difícil compreender essa relação, pois somos o país mais biodiverso do planeta. Por isso, é fundamental contar essas histórias e realizar uma comunicação que refloreste as mentes das pessoas, não apenas a natureza.