Rituais de prestígio: a construção discursiva do TCE-TO

09 maio 2025 às 16h30

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Sabe-se que certas práticas são usadas como distintivos sociais, funcionando como marcas visíveis (ou sensoriais) de pertencimento e diferenciação entre grupos. Os militares das forças armadas, por exemplo, utilizam uniformes específicos que não apenas os distinguem dos civis, mas também simbolizam a disciplina, a hierarquia e o poder do Estado. Da mesma forma, os magistrados fazem uso de togas, vestimentas que remetem à tradição, à imparcialidade e à autoridade jurídica, reforçando o lugar de enunciação que lhes é conferido socialmente. De acordo com Weaver, “As defensoras mais tenazes das vestes simbólicas sempre foram as profissões clericais e militares” (Weaver, 2016, p. 178). Esses sinais materiais operam como dispositivos de separação simbólica, reiterando posições de autoridade e legitimando funções sociais específicas. Tais práticas não se limitam, contudo, ao vestuário, abrangem também gestos, espaços arquitetônicos, cerimônias, tratamentos linguísticos, até mesmo estímulos sensoriais como o cheiro, que se consolidam por meio de signos sensoriais e ritualísticos (Bourdieu, 1989).Com tantas insígnias para criar identidades, pode-se ainda chegar a mais formas de distinção, mesmo que essas sejam um tanto quanto extravagantes. Nesse direcionamento, a notícia “Tribunal de Contas do TO firma contrato de R$ 11 mil para criar cheiro exclusivo da instituição” (Leão, 2025), publicada no portal virtual Jornal Opção Tocantins, em 24 de abril de 2025, abre margens para uma investigação acerca do discurso de exclusividade ou pelo menos para um gesto de leitura dos efeitos de tal produção jornalística.
Lida a matéria acima, afirma-se que o discurso da exceção inscreve-se como prática de naturalização da decisão, mascarando os conflitos latentes que poderiam emergir da esfera pública. A ênfase reiterada em termos como “pesquisa de preços” e “base legal” não apenas confere verniz técnico à medida, mas também produz um efeito de sentidos que associa a dispensa de licitação a uma suposta racionalidade econômica e gerencial, deslocando para o plano do não dito qualquer problematização quanto à pertinência, urgência ou relevância social do gasto público envolvido. Conforme observam Soares e Boucher (2023), tal estrutura enunciativa opera por silenciamento constitutivo: ao não admitir a possibilidade de alternativas discursivas, ou seja, ao não reconhecer a existência de outras formas legítimas de pensar e gerir os recursos públicos, o texto reafirma a autoridade do Estado sob a “lógica” da exceção justificada, interditando o debate e consolidando uma governamentalidade tecnocrática (Foucault, 2008) que se apresenta como neutra, mas que é, em sua essência, profundamente ideológica.
Quanto ao exame do discurso jurídico-burocrático e de suas estratégias de legitimação, observa-se, no caso específico da encomenda de um “cheiro exclusivo” para ambientes internos do Tribunal de Contas do Estado do Tocantins (TCE/TO), a emergência de um novo regime de governamentalidade: a fabricação de uma identidade sensorial que entrelaça práticas de marketing institucional com tecnologias sutis de controle simbólico. A decisão, justificada publicamente pelo presidente Alberto Sevilha em nome de uma “experiência sensorial diferenciada” e de uma suposta “sofisticação”, revela-se não como mero capricho estético, mas como manifestação emblemática de um dispositivo biopolítico (Foucault, 2008) voltado à modulação afetiva dos corpos no espaço institucional.
Nesse contexto, o odor, enquanto signo imaterial e invisível, adquire estatuto de operador discursivo, atuando como metáfora de um poder brando que incide sobre o sensível para modelar percepções subjetivas. Para os servidores, a fragrância cuidadosamente selecionada insinua pertencimento e cuidado; para os visitantes, projeta autoridade, refinamento e distinção. A construção discursiva de uma “atmosfera de acolhimento” esconde, sob o manto da hospitalidade, uma reconfiguração silenciosa das hierarquias institucionais, na qual o ambiente é regulado não apenas por normas jurídicas, mas por códigos sensoriais que afetam e dirigem condutas de modo quase imperceptível.
Portanto, o discurso analisado, na notícia em questão, emerge de uma conjuntura institucional específica, no qual a administração pública é atravessada por demandas de modernização simbólica, pressão por conformidade legal e estratégias de distinção identitária. A produção textual ocorre sob a égide da nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021), em um momento histórico em que o discurso da eficiência e da inovação adquire centralidade nas práticas de governança. Simultaneamente, esse discurso se ancora em estruturas tradicionais do aparato burocrático estatal brasileiro, em que a autoridade é construída pela ritualização da norma e pelo apagamento das dimensões políticas das decisões administrativas. Trata-se, conforme o que foi dito, de um campo enunciativo tensionado entre o desejo de atualização performática da imagem institucional e a reprodução das práticas formais de legitimação jurídico-burocrática.
Por fim, o discurso que legitima a contratação de um “cheiro exclusivo” no âmbito de um órgão de controle como o TCE/TO escancara o modo como o aparato estatal, sob o véu da legalidade e da racionalidade administrativa, pode operar como produtor de distinções simbólicas que escapam ao escrutínio público. A neutralidade aparente do vocabulário jurídico-burocrático não apenas encobre a carga ideológica das escolhas institucionais, mas também institui uma gramática de poder que estetiza o gasto, performa a inovação e silencia a crítica. Tal estratégia discursiva não é mero detalhe retórico: ela constitui um mecanismo de reprodução das hierarquias sociais por meio da linguagem, convertendo a exceção em norma, o privilégio em técnica e a opacidade em transparência simulada. Assim, o texto administrativo, longe de ser um repositório objetivo de decisões técnicas, revela-se como artefato ideológico sofisticado; um espaço discursivo onde se entrelaçam controle, desejo e dominação sob a forma elegante do perfume institucional.
Referências
BOURDIEU, Pierre. Aeconomia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1989.
FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica – Curso dado no College de France (1978-1979). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
LEÃO, Samir. Tribunal de Contas do TO firma contrato de R$ 11 mil para criar cheiro exclusivo da instituição. Jornal Opção Tocantins, 24 abr. 2025. Disponível em: https://tocantins.jornalopcao.com.br/noticias/tribunal-de-contas-do-to-firma-contrato-de-r-11-mil-para-criar-cheiro-exclusivo-da-instituicao-557426/. Acesso em: 9 maio. 2025.
SOARES, Thiago Barbosa; BOUCHER, Damião Francisco. Discurso do Norte: produções identitárias, apagamentos e interpelações em rede de dizeres sobre o Tocantins. São Paulo: Pontes Editores, 2023.
WEAVER, Richard Malcolm. As ideias têm consequências. Tradução de Guilherme Ferreira Araujo. São Paulo: É Realizações, 2016.