Artigo de Opinião

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Artigo de Opinião
A interrupção da gravidez em casos de estupro é um direito inquestionável

LaidyLaura Pereira de Araújo

O direito de meninas e mulheres, à interrupção de uma gestação decorrente de estupro, apesar de está assegurado no artigo 128 do Código Penal Brasileiro de 1940 (Lei 28.48/1940), sofre cotidianamente ataques e investidas de setores conservadores neopentecostais, sobre a falsa tese da “defesa à vida”. Tais investidas têm sido barreiras para que crianças e adolescentes vítimas de violência sexual tenham acesso aos serviços de saúde, sobretudo para a realização do precedimento de aborto previsto em lei.

Em uma sociedade patriarcal, machista e sexista como o Brasil, assegurar direitos de crianças e adolescentes vítimas de violências sexuais, não tem sido tarefa fácil. Nos últimos anos temos assistido o avanço e a influência de setores fundamentalistas conservadores na politica brasileira, que tentam barrar e retroceder direitos conquistados e consolidados na legislação brasileira. Aliado a isto, não se pode deixar de mencionar que a falta de orçamento, a precariedade das políticas públicas, e a ausência de fluxos tem sido uma barreira para assegurar os direitos de crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de violências. Além disso, as convicções pessoais e o juízo de valor de alguns atores do sistema de garantia de direitos tem inviabilizado que crianças e adolescentes tenham acesso ao serviço de interrupção da gravidez decorrente de estupro. Por outro lado, parlamentares, que deveriam atuar para o cumprimento da legislação, militam cotidianamente para inviabilizar que meninas e mulheres “estupradas” acessem o mencionado serviço.

Diante das graves violações de direitos de crianças e adolescentes, ocorrido nos estados do Espírito Santo, do Piauí, de Santa Catarina e de Goiás, em que meninas vítimas de estupro não tiveram direito ao serviço de interrupção da gravidez, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e Adolescente(Conanda), no final de 2024, deliberou e aprovou uma Resolução com a definição de fluxos para o atendimento humanizado a esse público infanto, contudo a deliberação foi judicializada pela Senadora da República Damares Alves, que protocolou na Vara Federal Civil da SJDF, medida liminar para suspensão da publicação da Resolução. Em primeira instância, o pedido da senadora foi deferido pelo juiz plantonista que decidiu pela suspensão da publicação da Resolução. A situação mobilizou diversas organizações da sociedade civil entre as quais o GAJOP, ANCED e ANIS, que atuaram no sentido de assegurar que não houvesse retrocessos nos direitos de crianças e adolescentes, e em 6/1/2025 o desembargador do Tribunal Regional Federal da Primeira Região (plantonista), decidiu pela imediata suspensão da decisão anterior, autorizando a publicação da resolução do Conanda.

Salienta-se que o mérito da Resolução, não inova, estando fundamentado no Código Penal de 1940; na Lei Federal n 13.431/2017 e no Decreto Federal n 9.603/2018, que estabelecem o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente Vítimas e Testemunhas de Violências; na Lei n 12.015/2009 que trata dos crimes hediondos e na Lei 12.802/2013 que dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual e no Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8.069/90.

Apesar da elaboração da Resolução ter iniciado em setembro 2024, com tempo hábil para ajustes e contribuições por todos os conselheiros, na Assembleia Extraordinária, realizada em 23/12/2024, 13 (treze) conselheiros representantes do governo federal votaram contra a normativa, e logo após o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania publicou nas mídias sociais nota pública informando que os representantes do governo Federal haviam votado contra a aprovação do documento.

Essa atitude do executivo federal serviu para instrumentalizar e subsidiar setores conservadores do parlamento que militam diariamente pela criminalização do aborto em casos de violência sexual. Não é novidade, que o direito de crianças e adolescentes, tem sido barganhado no jogo da política partidária e ideológica, desde os primórdios da humanidade. Em que pese, a violência sexual, é uma das piores formas de violência, nenhuma criança ou adolescente merece levar adiante uma gestação forçada.

Cabe frisar, em 2014, com a Portaria nº 485 do Ministério da Saúde, foram normatizados os Serviços de Referência para Interrupção de Gravidez nos Casos Previstos em Lei (SRIGCPL). Esses serviços podem ser organizados em hospitais gerais, maternidades, prontos-socorros, Unidades de Pronto-Atendimento e serviços de urgência não hospitalares com funcionamento 24 horas do dia e 7 dias da semana.

De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2023, o Brasil registrou um estupro a cada seis minutos. Ao todo, foram registrados 83.988 vítimas, 2 sendo a grande maioria meninas (88,2%), negras (52,2%) e com no máximo 13 anos (61,6%). A maioria dessas vítimas é estuprada por familiares ou conhecidos (84,7%) dentro de suas próprias casas (61,7%). A cada ano, milhares dessas meninas engravidam no Brasil. Em 2021, foram registrados 17.456 nascidos vivos de meninas de até 14 anos, e, em 2023, dados preliminares indicam que esse número também foi alarmante, com 13.909 nascidos vivos de meninas que ainda vivem suas infâncias.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que as complicações durante a gravidez e o parto são a segunda principal causa de morte entre jovens de 15 a 19 anos em todo o mundo. No Brasil, dados indicam que, entre 2018 e 2023, uma menina ou adolescente (10-19 anos) morreu a cada semana devido a complicações relacionadas à gestação. As mães adolescentes (com idades entre os 10 e os 19 anos) têm um risco mais elevado de eclâmpsia, endometrite puerperal e infecções sistêmicas do que as mulheres com idades entre os 20 e os 24 anos, e os bebés de mães adolescentes têm um risco mais elevado de baixo peso à nascença, parto prematuro e condições neonatais graves.

No estado do Tocantins, em 2024 foram registrados 854 (86%) estupros de vulnerável, sendo 737 (86,6%) contra meninas e 89 (10,4%) contra meninos. No que se refere aos serviços públicos de atendimento em saúde, dos 139 municípios do Estado, apenas 2 (dois), oferecem o Serviço Especializado de Atendimento à Pessoa em Situação de Violências, sendo na capital Palmas SAVI/HGP e SAVIS/Hosp. Dona Regina) e Porto Nacional (Hospital Tia Dedé), Augustinópolis, Gurupi e Araguaína. Ao que se tem conhecimento, apenas na capital Palmas, é realizado o serviço de aborto previsto em lei.

Nos demais municípios as crianças e adolescentes vítimas de violência sexual que necessitam realizar a interrupção da gravidez são encaminhadas para a capital Palmas. Em regra, a maioria dessas crianças se quer tem esse direito assegurado, seja pela falta de informação como pela omissão do poder público (falta de veículo para o deslocamento, ausência de fluxos, curtos-circuitos entre os órgãos da rede de proteção, sensação de impunidade dos agressores, etc).

Neste sentido, a interrupção da gestação em casos de violência sexual é um direito inquestionável que deve ser assegurado para todas às crianças, adolescentes e mulheres que tiveram os seus corpos atacados de forma covarde e violenta, cabendo portanto, ao poder público em todas as suas esferas, garantir atendimento humanizado, respeitoso, com sigilo e privacidade das informações, e ainda considerando a fala e o desejo das vítimas. Sendo assim, a não observância da garantia do direito de interrupção da gravidez nos casos previstos em lei, viola frontalmente a dignidade da pessoa humana um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (argo 1º, III, da Constituição Federal), bem como um dos seus objetivos fundamentais de “promover o bem de todos/as, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (argo 3º, IV).[8]

LaidyLaura Pereira de Araújo, assistente social, especialista em medidas de proteção, com ênfase no acolhimento institucional e familiar de crianças e adolescentes, é servidora pública, atua no Centro de Apoio Operacional da Infância, Juventude e Educação do Ministério Público Estadual, é associada ao Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente Glória de Ivone, integra a coordenação Colegiada da Associação Nacional dos Centros de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Anced Brasil), integra o Comitê Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, a Rede ECPAT Brasil e o Fórum Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Fórum DCA).

Diálogos sobre o Janeiro Branco

Nesse texto, o professor Eder Eddine reflete sobre o papel do Janeiro Branco na promoção da saúde mental, destacando a importância de campanhas que vão além dos transtornos psicológicos e enfatizando hábitos e ambientes saudáveis

Sobre anilhas e ansiedade

Nesse texto, o professor Eder mostra como brincadeiras e comportamentos cotidianos podem revelar sinais de sofrimento emocional. Uma reflexão sobre a importância de identificar esses sinais e buscar um olhar atento e profissional para questões de saúde mental

Opinião
O terceiro setor é a saída viável para a saúde do Tocantins

Neste artigo, o advogado Henrique Zukowski analisa a transferência da gestão de unidades de saúde para o terceiro setor como solução para a crise no sistema público do Tocantins

Crônicas
A cultura do marmitex

Neste texto, o professor Antônio Egno reflete sobre a ética nas relações cotidianas, tomando como exemplo a "cultura do marmitex" e seus desdobramentos sociais e morais

Artigo de Opinião
A Literatura Brasileira Tocantinense

Dr. Antônio Egno do Carmo Gomes (UFT)

Em 1988, com a promulgação da Constituição Federal, parte do território do norte de Goiás foi desmembrado, formando-se a 27ª. Unidade da Federação, o Estado do Tocantins. Todavia, para se delimitar o que chamamos de “Tocantins” e assim compreender adequadamente a literatura produzida nessa localidade, é preciso lançar mão sobretudo do critério geográfico-espacial e não meramente do administrativo-temporal, pois este restringiria muito e não faria justiça à longa história dos povos e culturas tocantinenses.

Assim, deve-se, independentemente do período histórico, considerar como tocantinense todas aquelas localidades que antes consituíam o chamado Norte-Goiano e que atualmente compõem oficialmente o território do Tocantins. Considerado esse critério, são tocantinenses os escritores e escritoras que nasceram em cidades ou regiões do que veio  a ser o Tocantins em sua atual configuração territorial. Portanto, as obras literárias desses autores, independentemente do período em que foram produzidas, constituem, desde sempre, a literatura no Tocantins.

Compreende-se, assim, que alguns autores classificados como “goianos” são também, e mais propriamente, tocantinenses. Mesmo tendo produzido e atuado no período anterior à divisão política do território de Goiás, tais autores nasceram, e alguns deles se criaram e outros viveram, nesse espaço que é atemporal mas que desde 88 passou a se nomear como tocantinense. Por isso, ao escrever seus trabalhos eles lançaram mão de vivências e olhares que, ao mesmo tempo, nasciam dessa ambientação e nela se configuravam, como também contribuíram para delinear o espaço simbólico e cultural que caracteriza o Tocantins. É o caso de escritores como o romancista Eli Brasiliense – originário de Porto Nacional-TO, mas considerado escritor goiano – e da poetisa Ana Braga, membro da Academia Goiana de Letras, mas nascida em Peixe-TO. 

Essa complexidade geográfica-temporal faz da cultura tocantinense uma cultura que amalgama duas histórias (uma anterior e outra posterior a 88) e dois espaços, que são, na verdade, duas ambientações que se sobrepõem no mesmo lugar físico: o território que em dado momento histórico passou a ser conhecido como norte-goiano e, posteriormente, passou a ser chamado de tocantinense.

A melhor maneira de lidar com essa configuração é considerar ambas sem abrir mão de nenhuma delas, para não cometer injustiças e amputações simbólicas e culturais que considero traumáticas e irreparáveis. Assim, o tocantinense é, também, goiano (no que se refere ao passado herdado, às formas simbólicas e culturais recebidas, aos temas e estilos literários continuados); assim como boa parte dos autores “goianos” são na verdade tocantinenses.

Todavia, além de [pós] goiano o espaço cultural tocantinense também é [pós] mineiro, pois já foi parte do território da Capitania de Minas Gerais (1720-1821) e, antes desta, da Capitania de São Paulo e Minas de Ouro (1709-1720)... Um continuum de herança histórico-cultural que retrocede até os séculos XVI e XV, nos conectando com Portugal e com Espanha, em razão do Tratado das Tordesilhas e, por causa da mobilidade deste, também com exploradores franceses e holandeses. Uma genealogia identitária que sempre joga um lance para trás, semelhante àquela que liga o nome do território tocantinense ao rio que o atravessa, o qual recebeu seu nome da tribo perdida que o margeava, a qual por sua vez recebeu seu nome dos tucanos que a deslumbravam e que deslumbravam também os primeiros cronistas do século XVI.

Desse modo, para estabelecer uma convergência, proponho realçar nossa identidade, complexa no tempo e no espaço, como sendo, desde sempre brasileira; pois, independentemente do tempo (pré ou pós-88) e do lugar (capitania, província, comarca, norte-goiano, tocantinense), sempre fomos Brasil. Por isso, uma terminologia que contemplasse nossa identidade cultural e literária seria bem abrigada sob a rubrica de Literatura Brasileira Tocantinense.

Considerando-se, portanto, o critério espacial-temporal (o território e o marco bioitavo), essa Literatura Brasileira Tocantinense tem dois grandes momentos ou configurações: o Período Pré-88 e o Período Pós-88. No interior desses Períodos estão abrigadas suas épocas distintivas, das quais, no passado, a Época Colonial é a mais distante do marco e a Época Norte-Goiana a mais próxima dele. Entre as duas, estão as Épocas Bandeirante, Capitanial e Provincial. No presente, para cá do marco, temos a produção literária contemporânea, a Época Tocantinense.

O que se conclui é que nem a existência nem a identidade da literatura produzida no/para o/considerando o/a partir do Tocantins se restringem a 88. Desde que há território, há o que veio a se chamar Tocantins. Tudo aquilo que pode ser preservado, recuperado e publicado – do que se pensou, vivenciou e expressou nesse espaço, a partir dele, por causa dele, em favor dele, considerando-o – é Literatura Brasileira Tocantinense. Do mesmo modo, são escritores e escritoras tocantinenses todos aqueles que ao longo da história foram ativamente envolvidos nessa produção.

* Este artigo é parte de um estudo mais amplo intitulado de História da Literatura Brasileira Tocantinense.

** Professor de Teoria Literária na Universidade Federal do Tocantins.

Artigo de Opinião
Considerações sobre as eleições e os partidos, de ontem e hoje

No atual cenário das representações partidárias, as propostas e plataformas de governo foram pouco verificadas nas últimas eleições. Não é possível afirmar que houve crescimento de partidos mais alinhados à direita, esquerda, centro-direita ou centro-esquerda. Parece que esses elementos perderam relevância, resultado de fatores como polarização política, redes sociais e personalização da política, onde a imagem e o carisma dos candidatos frequentemente se sobrepõem às propostas concretas.

Além disso, a fragmentação partidária e a falta de clareza ideológica dificultam a identificação de um crescimento claro de partidos alinhados a posições específicas no espectro político. Isso reforça a ideia de que as eleições giram mais em torno de indivíduos do que de ideologias ou plataformas de governo.

Para entendermos melhor a conjuntura, também precisamos incluir a Emenda Constitucional nº 97/2017. Essa emenda proíbe coligações partidárias nas eleições proporcionais e estabelece regras sobre o acesso dos partidos aos recursos do fundo partidário e ao tempo de propaganda gratuita no rádio e na televisão. Busca estruturar o sistema partidário de maneira mais rígida, visando diminuir a fragmentação e promover maior clareza ideológica. Ao mesmo tempo, fortalece os partidos maiores e dá mais ênfase às propostas e plataformas de governo.

A vedação das coligações pode reduzir o número de partidos, já que os menores terão dificuldades para se sustentar sem alianças. Isso pode resultar em maior clareza ideológica, onde partidos consolidados terão mais recursos para desenvolver e divulgar suas ideias, incentivando um foco maior nas propostas e plataformas de governo.

Entretanto, mesmo com essas novas regras, a personalização da política e a influência das redes sociais podem continuar desviando o foco das propostas. As regras de transição estipuladas pela emenda podem ajudar os partidos a se adaptarem, mas também gerar tensões à medida que ajustam suas estratégias para se manterem relevantes.

Nesse novo cenário político, o surgimento das federações de partidos exemplifica como os partidos se mobilizaram para enfrentar as exigências impostas pela emenda. As federações permitem uma união mais estruturada e duradoura entre partidos, promovendo maior coesão e coordenação, refletindo uma tendência ao gerencialismo, onde a eficiência e gestão estratégica se tornam essenciais para o sucesso político.

Com a vedação das coligações, os partidos menores, antes dependentes das alianças para garantir sua representação, precisam buscar formas mais eficazes de se organizar e competir. As federações oferecem uma solução, permitindo que esses partidos compartilhem recursos, tempo de propaganda e estratégias, fortalecendo sua presença no cenário político.

Além disso, a gestão mais eficiente e coordenada dentro das federações pode resultar em um foco maior nas propostas e plataformas de governo. Isso ocorre porque os partidos devem apresentar uma frente unida e coerente para atrair eleitores. Assim, o ambiente político pode favorecer a valorização de ideias e propostas, em vez de serem ofuscadas pela personalização da política.

A criação da Federação Brasil da Esperança, composta por partidos clássicos da centro-esquerda e esquerda, como o PT, PC do B e PV, representa uma mudança significativa na estratégia política desses grupos. Tradicionalmente, PT e PC do B focaram suas campanhas na denúncia do capitalismo, na concentração de renda e no imperialismo ocidental sobre a América Latina. No entanto, ao se unirem em uma federação, esses partidos adotaram um novo enfoque, centrado na "esperança" e no bem-estar social.

Essa mudança de estratégia é uma resposta direta às novas exigências impostas pela Emenda Constitucional nº 97/2017, que proíbe coligações partidárias nas eleições proporcionais. A necessidade de se adaptar a um cenário político mais rígido e competitivo levou esses partidos a se reinventarem, buscando uma mensagem mais positiva e inclusiva, capaz de atrair um eleitorado mais amplo.

A ênfase na "esperança" e no bem-estar social reflete uma tentativa de se conectar com os eleitores em um nível mais emocional e aspiracional, contrastando com a abordagem mais combativa do passado. Essa mudança pode ser vista como uma estratégia para se diferenciar em um cenário político cada vez mais polarizado e fragmentado, onde a personalização da política e a influência das redes sociais desempenham um papel crucial.

Além disso, a formação da federação permite que esses partidos compartilhem recursos, tempo de propaganda e estratégias, fortalecendo sua presença no cenário político e aumentando suas chances de sucesso eleitoral. A gestão coordenada pode promover um foco maior nas propostas e soluções para problemas sociais, garantindo mais destaque a essas questões.

A fragmentação ideológica dentro do campo democrático, marcada pelo surgimento de partidos como PSOL e REDE, evidencia a crise de unidade que enfraqueceu a capacidade de articulação política em torno de uma agenda comum. Esse processo de ruptura começou após a eleição de Lula em 2002, quando o PT formou uma coalizão com a centro-direita. Isso gerou descontentamento em setores mais à esquerda, levando à pulverização de forças, que, ao invés de fortalecer o campo democrático e popular, diluiu sua influência.

Os sindicatos e movimentos sociais, que historicamente serviram como pilares de mobilização e sustentação política, também sofreram com essa fragmentação. A diminuição da capacidade organizativa e a perda de influência desses grupos no debate público contribuíram para o enfraquecimento do campo popular. Com o surgimento do lavajatismo, que lançou uma ofensiva jurídica e midiática contra lideranças políticas da esquerda, e o renascimento da extrema-direita, apoiada por setores pseudo-conservadores, o espaço para lideranças democráticas e populares foi ainda mais reduzido.

Esse contexto criou terreno fértil para o avanço de uma retórica antissistema, que, embora voltada contra a classe política como um todo, afetou especialmente as forças de esquerda, associadas à corrupção pelos discursos da Operação Lava Jato. A ascensão da extrema-direita, que conseguiu canalizar o descontentamento social, consolidou um cerco ao campo democrático e popular, dificultando o retorno ao poder dessas lideranças.

De modo geral, o cenário atual não demonstra fraqueza ou fortalecimento de um partido ou corrente partidária. Caracteriza-se por uma demanda para que os partidos se adaptem e busquem novas formas de articulação, até mesmo para a sobrevivência política. A aceitação efetiva dos eleitores é cada vez menos focada em partidos e conceitos sociológicos, e mais voltada para os meios digitais e resultados práticos. A superação da fragmentação e a revitalização do campo democrático e popular serão importantes para enfrentar os desafios que se apresentarão nas próximas eleições.

Reginaldo S. Fernandes

Historiador e mestre em Cultura e Território - PPGCult / UFNT.

A inércia do Estado é uma fagulha

*Henrique Araújo de S. Zukowski

A crise ambiental evidenciada pela onda de incêndios e queimadas em praticamente todos os biomas do Brasil é fruto da falta de planejamento do Poder Público e da ausência da criação, implementação e avaliação de políticas públicas voltadas à preservação ambiental. A verdade é que, nos trópicos brasileiros, o resguardo do ecossistema, fauna, flora e recursos hídricos sempre foi encarado como óbice ao desenvolvimento, uma obrigação incômoda e contornável.

Nossa legislação ambiental, apesar das muitas ressalvas, aponta o caminho para a preservação. Nesse sentido, o Código Florestal (Lei 12.651/2012), em seu art. 40, determina que o Governo Federal estabeleça a Política Nacional de Manejo e Controle de Queimadas, Prevenção e Combate de Incêndios Florestais. No entanto, sucessivos governos se passaram e a incumbência fora postergada. Somente no final do mês de julho deste ano o Presidente da República sancionou o Projeto de Lei nº 1818/2022, que institui a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo.

Verifica-se, portanto, que a decisão do Executivo Federal de cumprir o referido dispositivo legal e de planejar o enfrentamento do problema público foi muito mais reativa do que preventiva. A ação somente foi tomada quando o cenário caótico já estava desenhado, apesar da ideia de uma política pública de combate às queimadas ter sido concebida 12 anos antes.

Todavia, a responsabilidade pela grave crise ambiental não deve repousar somente sobre a União. O Estado do Tocantins, assim como seus municípios, deveria contar com um planejamento pré-estabelecido para lidar com as queimadas nos tempos de seca.

Anualmente, no período de estiagem, que tem seu início em junho e perdura até o final de outubro, o cerrado tocantinense é flagelado pelo fogo. A serra que margeia a Capital, por exemplo, arde em chamas e pode ser facilmente ser confundida com uma grade fogueira. Trata-se de evento certo como a chuva do caju. Mesmo assim, as ações do Poder Público são emergenciais e com baixa coordenação.

Desse modo, este panorama somente será subvertido com muito estudo, pesquisa e com a instituição de planos com objetivos claramente definidos, alicerçados em dados. As queimadas e incêndios florestais no Brasil deve ser uma pauta constante na agenda pública nacional, estadual e municipal, não podendo ser trazida a tona apenas durante três ou quatro meses no ano.

Caso contrário, se esta e outras medidas não forem brevemente adotadas, dificilmente serão alcançados os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas, diretrizes que devem nortear a Administração Pública, independentemente da esfera.

*Advogado – Especialista em Direito Eleitoral pela PUC Minas e Pós-Graduando em gestão Pública e Sustentabilidade pela USP.

Crônica
O solene fim do Bactéria

Carmo Gomes*

E no mesmo instante o galo cantou.
Mateus 26.74.

O menino sentia como se houvesse no ar um gosto de bala velha, esquecida no fundo de uma gaveta. “Seria um verdadeiro milagre”, a vovó dissera uma semana antes, “conseguir reunir todo mundo nessa época do ano”. E ali estavam os quatro filhos, a nora… – e a molecada, concluía o menino, procurando com os olhos os primos, que disputavam as poucas tomadas da sala para carregarem os celulares…
Só que a vovó não parecia mais feliz que no resto daquele ano. Estava, como sempre, uma pilha de nervos. Meia hora antes o menino a pegara gritando com sua pobre mãe Lena, que ficava girando em torno dela na cozinha apertada, tentando acatar suas ordens. E notara que as mãos de sua mãe estavam mais trêmulas do que de costume. O motivo da tensão parecia ser o frango, que a avó, ao chegar da rua, obrigara sua mãe a retirar da mesa da sala e levar de volta para o forno, gritando que ainda estava cru e se ela, “uma mulher velha dessas”, não conseguia perceber a diferença.

Todos na família haviam aprendido a lançar as grosserias da vovó na conta de sua doença dos nervos. Mas algo mais parecia estar errado – o menino percebia, associando aquilo com o gosto insosso de balinha dura e envelhecida – e era que ninguém mais parecia ser como antes. O tio padeiro, por exemplo, não trouxera queijos para vovó neste ano e nem pulara da cama de madrugada para fazer fornadas de rosquinhas de coco, como da última vez. O tio daquela igreja engraçada já não o pegara no colo. Além disso, a esposa dele não saíra do quarto uma única vez, desde que haviam chegado, no início da tarde. Já o tio pastor – o preferido da vovó –, geralmente calmo e sabido, dessa vez estava falando pelos cotovelos com aquele velhinho que a avó sempre convidava para as comidas de fim de ano. E naquele converseiro todo tinha algo de estranho.

– O pessoal não sabe latim – reclamava o tio pastor, virando a boca para o ouvido bom do velhinho, ainda que pudesse ser ouvido por quem quisesse na sala pequena e abafada, onde todos estavam distribuídos como podiam, aguardando o fim da solenidade para atacar as comidas. – Nem latim nem história nem coisa alguma! Como eles vão adivinhar que quando o texto dos evangelhos na Vulgata diz “o galo cantou” não quer se referir ao marido da galinha… Era o gallicinium! Entende? O soldado romano e sua trombeta, tocando de madrugada para a troca do turno da guarda?

– Eh, né? – respondia sem jeito o pobre do velhinho, sem entender nada e temendo ofender a dona da casa, que era tão boa com ele. O tio da igreja engraçada lançou um olhar feio para o tio pastor, que nem ligou:

– O senhor já viu como o pessoal troca tudo, parece, de propósito? Cristo, a Verdade em carne e osso, pode ter nascido no primeiro de abril. Pois não fizeram desse o Dia da Mentira! A Páscoa, festa do Cordeiro e das ervas quase tão amargas como a escravidão, virou a festa dos coelhos e da chocolatada doce. Logo coelho: símbolo da incontinência e da luxúria… já viu procriação mais desenfreada que a de coelhos? E o Natal, então? O Natal, nascimento de nosso Senhor (que deve ter sido em abril, como eu lhe disse, e não em dezembro)… O que tem a ver, comer frango assado no Natal? A festa de Ações de Graças dos americanos é com peru, daí inventaram de copiar. Mas como peru é difícil e frango tem em todo lugar… Mas não é uma esquisitice?!

– Shh! – fez alto o tio da igreja engraçada. O tio pastor se recolheu e não disse mais nada, contrariado. O menino viu sua mãe sair de fininho e se trancar no quarto da vovó. Esta, finalmente entrou na sala com a forma e passou o frango para o lugar que lhe haviam reservado: o centro da bandeja com as batatas assadas e farofa com ameixas secas. A vovó o alisava com um garfo, completamente distraída.
– Vamos logo, mamãe! – reclamou o tio padeiro, que não conseguia mais manter debaixo dos braços os dois filhos, que teimavam em escapulir de volta para seus lugares junto às tomadas. Foi então que a vovó, se mais nem menos, ao invés de falar da família e da importância de estarem reunidos naquela data tão sagrada e aquilo tudo que ela sempre dizia todo ano, começou a sorrir estranho e a contar a história daquele grande frango: que ele fora enjeitado ao nascer, ficando sem irmão e sem mãe; muito doentinho, tomara bastante remédio até virar frangote e que um dia alguém dissera que ele nunca ia servir para comida pois tinha sido pura bactéria quando pintinho…

Enquanto ela dizia aquilo tudo, o menino se comoveu, lembrando-se de como vira a avó cercar o bicho horas antes no corredor. Dele gritando e tentando se safar… Ela prendera os pés dele sob o pé gorducho dela, pegara-o pela cabeça com a mão esquerda, esticara-lhe o pescoço e, com a faca afiada que tinha na mão direita, raspara-lhe a penugem da garganta… O menino até quisera fechar os olhos para não ver o lance final, mas uma triste curiosidade o fizera fixar até o fim o ritual: o corte rápido e o jorrar do sangue espesso e escuro no prato, enquanto o Bactéria gorgolejava e tentava escapar. Mas o mais assustador tinha sido quando a avó liberara o frango para morrer e ele, saltando de uma maneira quase engraçada, dera ganidos estranhos enquanto o resto do seu sangue esguinchava no quintal, até que finalmente ele parecia ter se rendido e ficara imóvel para sempre…

– Vovó! – gritou choroso o menino no meio da sala perplexa – eu não vou querer frango!

Nascido em Bandeirantes do Tocantins (TO) em 1974, Carmo Gomes foi alfabetizado pela mãe e iniciado no mundo literário pelas rodas de cordel do pai. Fez seus estudos universitários na Federal de Goiás e é professor de Letras na UFT de Porto desde 2011. Tentou escrever o primeiro enredo policial aos 15, mas só lançou o primeiro romance em 2018, aos 46 anos. Era o primeiro livro da sua trilogia “Beleza & Temor”, da qual já publicou também o segundo volume. Publicou ainda o cordel “As desventuras de Nóis Mudemo”.

Artigo de Opinião
Ansiedade

* Rubens Gonçalves

Uma sombra persistente que se recusa a se dissolver na luz da consciência; que se arrasta ao nosso lado, indesejada, como um lembrete constante da nossa vulnerabilidade frente a um mundo que parece nunca dar trégua. Um zumbido eterno no fundo da mente. Uma melodia dissonante que nos acompanha até nas horas mais silenciosas da noite. Mas a verdadeira tragédia não está apenas no sentir. Ela se esconde no fato de que nos isolamos em um universo de inquietações pessoais, enquanto o mundo continua a girar, impassível.

A ironia cruel? Em um mundo no qual a comunicação nunca foi tão acessível, nos tornamos cada vez mais distantes. Cada notificação, cada e-mail não lido, cada mensagem que exige resposta, é uma gota no oceano do nosso estresse diário. Somos navegantes em um mar de informação que, em vez de nos trazer clareza, nos afunda ainda mais em nossa própria turbulência.

E não há discriminação. Classe social, idade, origem, nada importa. É a revelação constante de nossa fragilidade diante da eterna pressão: não atender às expectativas alheais, não alcançar metas, falhar… Tudo se amalgama em um caldo de inseguranças que fervilha dentro de nós.

Buscamos refúgio. Tentamos nos distrair com um episódio de série ou uma compra online. Mas ela persiste, como um espelho cruel que reflete nossa incapacidade de simplesmente parar. Respirar…

Nos esforçamos para controlar o incontrolável. Lemos livros de autoajuda, em busca de soluções rápidas, receitas mágicas para a paz interior. Mas, talvez, a resposta resida em algo mais simples: aceitar nossa própria imperfeição.

Vivemos uma era de demandas implacáveis e expectativas irreais, que exige coragem para simplesmente estar presente, mesmo quando a mente clama por outro roteiro. Um roteiro no qual os problemas desaparecem. E, por fim, descobrimos a beleza tênue na simplicidade da vida.