O Cerrado tocantinense é abrigo de espécies únicas no mundo, muitas delas conhecidas apenas de registros antigos ou de locais extremamente restritos. Para proteger esse patrimônio natural ameaçado, foi criado o Plano de Ação Territorial (PAT) Cerrado Tocantins, iniciativa inserida no Projeto Pró-Espécies: Todos contra a Extinção, coordenado no estado pelo Instituto Natureza do Tocantins (Naturatins).

O plano reúne uma série de ações voltadas à conservação de 12 espécies prioritárias – oito da fauna e quatro da flora – que só ocorrem nesta parte do Cerrado brasileiro. A iniciativa conta com apoio de instituições como a Universidade Federal do Tocantins (UFT), a Universidade Estadual do Tocantins (Unitins), o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), entre outras.

Segundo o biólogo Oscar Barroso Vitorino Jr., que atua na Diretoria de Biodiversidade e Áreas Protegidas do Naturatins, o plano começou a tomar forma em 2018, após a aprovação de recursos do Fundo Global para o Meio Ambiente.

 “O ProEspécies foi pensado a partir da Estratégia Nacional para Espécies Ameaçadas, criada em 2014. Quando o recurso foi aprovado e liberado no Brasil, a gente começou a trabalhar. O Tocantins participa de dois planos: o Cerrado Tocantins e o Meio Norte”, explica o biólogo.

Esses territórios foram definidos a partir da concentração de espécies extremamente raras e ameaçadas. “São espécies que desapareceram desde os anos 1980, plantas que ninguém nunca mais encontrou. E elas só existem aqui, nessa região específica do Tocantins”, afirma.

Espécies ameaçadas e exclusivas do Tocantins

O PAT Cerrado Tocantins foca em espécies cujas populações são conhecidas de áreas muito pequenas, em muitos casos, únicas no mundo. “Essas espécies têm ocorrência extremamente restrita. Às vezes, de uma única lagoa, um único morro, uma única grota. É um trabalho completamente diferente do que fazemos com espécies de ampla distribuição, como a onça-pintada, por exemplo”, compara Oscar.

Ele destaca que o trabalho com fauna e flora nesses territórios inclui ações in situ (no próprio habitat) e ex situ (em laboratório ou viveiro). “Para plantas a gente consegue fazer esse processo: coletar, multiplicar no laboratório e replantar na natureza. Foi o que fizemos com a Bromelia braunii, que é raríssima”, relata.

Já com animais, o desafio é maior. “Bicho é muito mais difícil. Às vezes ele mal está conseguindo sobreviver na natureza, imagina reproduzir em cativeiro. No Tocantins, hoje, não conseguimos fazer conservação ex situ com animais como peixes e lagartos desses planos. A alternativa é proteger o habitat.”

As 12 espécies prioritárias do PAT Cerrado Tocantins

Fauna ameaçada:

Aguarunichthys tocantinsensis (Mandí-chumbado, Rubinho) – Em Perigo (EN)  

Imagem: PAT Tocantins/Divulgação
Conhecido popularmente como rubinho, mandí-chumbado ou jauzinho do canal, o peixe Aguarunichthys tocantinsensis é uma espécie de bagre endêmica da bacia do rio Tocantins. Ele vive em águas profundas e se alimenta principalmente de peixes menores e invertebrados aquáticos.A maior parte dos registros conhecidos vem de estudos realizados nas Usinas Hidrelétricas de Peixe Angical e São Salvador. Os espécimes coletados encontram-se hoje na coleção científica da Universidade Federal do Tocantins (UFT). Apesar disso, nos últimos anos, os esforços para localizar populações estáveis do peixe nos rios Tocantins e Araguaia não têm tido sucesso. Por isso, a espécie foi incluída na lista de fauna ameaçada, na categoria Em Perigo (EN) de extinção.

Bachia psamophila – Criticamente em Perigo (CR)  

Imagem: PAT Tocantins/Divulgação
A espécie Bachia psamophila, um pequeno lagarto endêmico do Tocantins, está oficialmente classificada como Criticamente Em Perigo (CR) de extinção. Pertencente à família Gymnophthalmidae, o animal foi registrado apenas nos municípios de Palmas e Porto Nacional, com o último avistamento datado de 2002, na localidade conhecida como “Tombador de Areia”. O habitat original da espécie foi severamente impactado pela construção do reservatório da Usina Hidrelétrica Luís Eduardo Magalhães – UHE Lajeado. “Todos os indivíduos conhecidos foram coletados antes do enchimento do lago da usina. Depois disso, nunca mais foi visto”, explicam os pesquisadores responsáveis pelo levantamento. Bachia psamophila possui corpo e cauda alongados, patas reduzidas e um focinho adaptado para escavação, característica de seu comportamento fossorial. O lagarto habitava dunas de areia branca e fina no Cerrado, formadas naturalmente pela ação do vento, que podiam atingir até 50 metros de altura. Com a supressão desse ambiente após a formação do reservatório, as chances de sobrevivência da espécie se tornaram mínimas. A ausência de registros em monitoramentos posteriores reforça o alerta sobre a urgência de ações para conservação de habitats únicos como este.

Baryancistrus longipinnis e Baryancistrus niveatus – Criticamente em Perigo (CR)  

As espécies de cascudos Baryancistrus niveatus e Baryancistrus longipinnis, ambas da família Loricariidae, estão classificadas como Criticamente Em Perigo (CR) de extinção. Endêmicas dos rios Tocantins e Araguaia, essas espécies vivem em ambientes de corredeiras e são sensíveis à degradação desses habitats.

(Castelnau, 1855) (Py-Daniel et al. 2011)
A principal ameaça vem da presença de usinas hidrelétricas, que reduzem drasticamente os trechos de corredeira. Apesar da ampla distribuição, as populações são fragmentadas e pouco conhecidas, devido à escassez de dados ecológicos e taxonômicos. Ambas as espécies são eventualmente pescadas para consumo local e B. niveatus também é explorada na aquariofilia, conforme regulamentação oficial.

Hydrodynastes melanogigas (Jaracuçu-do-brejo) – Em Perigo (EN)  

A serpente Hydrodynastes melanogigas, conhecida como cobra-d’água-grande-do-Tocantins ou jararacuçu-do-brejo, é uma espécie não peçonhenta endêmica do Brasil, com ocorrência restrita ao Cerrado, especialmente nas bacias dos rios Tocantins e Araguaia.
Com hábitos diurnos e semi-aquáticos, pode atingir até 2 metros de comprimento e se alimenta de rãs e peixes. Sua coloração escura e padrão corporal são característicos. Apesar disso, a espécie não foi mais registrada após o enchimento da UHE Lajeado e hoje está classificada como Em Perigo (EN) devido à perda de habitat e degradação de ambientes naturais.

Paratrygon aiereba (Arraia maçã) – Criticamente em Perigo (CR) 

Imagem: PAT Tocantins/Divulgação
Conhecida como arraia-maçã ou aramaçã, a Paratrygon aiereba é a maior espécie de arraia da bacia Araguaia-Tocantins. Reconhecida por sua coloração que imita o fundo arenoso dos rios e pela cauda reduzida nos adultos, ela tem reprodução lenta e gestação de cerca de cinco meses.
Antes comum em vários pontos do Cerrado, hoje sua presença está restrita principalmente ao rio Araguaia. A reduzida área de ocorrência, associada à pressão da pesca e falta de estudos sobre a espécie, agrava a situação. Atualmente, a arraia-maçã é classificada como Criticamente Em Perigo (CR) de extinção.

Mylesinus paucisquamatus (Pacú dente-seco) – Em Perigo (EN)  

Imagem: PAT Tocantins/Divulgação

Endêmico da bacia do rio Tocantins, o pacú dente-seco (Mylesinus paucisquamatus) é um peixe de médio porte que pode chegar a mais de 30 cm e se destaca por não possuir a quilha serrilhada comum em outros pacus. A espécie habita corredeiras e se alimenta quase exclusivamente de plantas aquáticas aderidas às rochas.
Sua reprodução ocorre entre abril e setembro, durante a estiagem, especialmente no rio Paranã e afluentes, e segue um padrão diferente da piracema tradicional. Bastante consumido na região, o peixe sofre com a supressão de habitat causada por usinas hidrelétricas, o que levou à sua classificação como Em Perigo (EN) de extinção.

Scolopendropsis duplicata – Criticamente em Perigo (CR) 

Imagem: PAT Tocantins/Divulgação
Endêmica do Tocantins e conhecida apenas na região de Porto Nacional, a centopeia Scolopendropsis duplicata é uma espécie única por apresentar variação no número de segmentos do tronco, característica exclusiva entre as 800 espécies de sua ordem. Ela vivia em áreas arenosas de Cerrado próximas ao rio Tocantins.
Todos os registros conhecidos foram feitos antes da construção da Usina Hidrelétrica Luís Eduardo Magalhães, que inundou o local. Desde então, a espécie não foi mais encontrada. Devido à distribuição extremamente restrita e possível perda total de habitat, a centopeia foi classificada como Criticamente Em Perigo (CR).

Flora ameaçada:  

Angelonia alternifolia – Criticamente em Perigo (CR) 

Imagem: PAT Tocantins/Divulgação
Uma erva da família Plantaginaceae, descrita como V.C. Souza, foi registrada apenas uma vez em 1978 no município de Almas (TO). A planta, que possui folhas em forma de lança e flores roxas dispostas em cachos, é endêmica do Brasil e ocorre exclusivamente em áreas de cerrado com solo argiloso e afloramentos rochosos.
Segundo especialistas, a principal ameaça à espécie é a degradação do habitat, causada pela expansão da pecuária, uso do fogo para manejo de pastagens e o avanço de monocultivos. Devido à sua distribuição extremamente restrita e à pressão humana crescente, V.C. Souza foi classificada como Criticamente em Perigo (CR) de extinção.

Bromelia braunii – Criticamente em Perigo (CR)  

Imagem: PAT Tocantins/Divulgação
A Bromelia braunii, conhecida popularmente como croatá, é uma bromélia terrestre que pode atingir até 40 cm de altura e se destaca pelas folhas espinhosas, dispostas em roseta, com coloração que varia do verde ao vermelho. Suas flores lilás a roxas crescem na parte central da planta, e seus frutos lembram pequenas bananas quando maduros.
A espécie ocorre em áreas de cerrado nos estados do Tocantins e Goiás, em municípios como Natividade, Conceição do Tocantins, São Domingos e Monte Alegre de Goiás. Ela cresce em solos pedregosos ou areno-argilosos, geralmente entre árvores do cerrado. De acordo com especialistas, a Bromelia braunii está classificada como Criticamente em Perigo (CR) de extinção, devido à degradação de seu habitat natural provocada por incêndios frequentes, atividades de mineração, expansão da agropecuária e obras de infraestrutura viária.

Diplosodon gracilis – Criticamente em Perigo (CR)  

Imagem: PAT Tocantins/Divulgação
Endêmica do Tocantins, a Diplusodon gracilis é um arbusto da família Lythraceae que pode atingir até 3 metros de altura. Suas folhas crescem aos pares, em arranjo cruzado, e suas flores róseas se concentram no topo dos ramos.
A espécie foi registrada apenas nos municípios de Dianópolis, Rio da Conceição e Taguatinga, onde cresce em solo areno-pedregoso, tanto em áreas naturais de cerrado quanto em regiões já alteradas.
Com distribuição geográfica bastante restrita, a planta é considerada muito rara. A conversão de grandes áreas para a monocultura da soja e outras atividades agropecuárias tem provocado a perda de seu habitat, fazendo com que a Diplusodon gracilis seja classificada como Criticamente em Perigo (CR) de extinção.

Polygala pseudocoriacea – Criticamente em Perigo (CR)

Imagem: Wikipedia
Esta planta apresenta hábito subarbustivo, com cerca de 20 a 60 cm de altura, porte ereto e várias ramificações. Possui folhas verticiladas, ou seja, quando existem três ou mais folhas dispostas no mesmo ponto do caule e cujo arranjo adquire o formato estrelado. As flores de coloração alvo-amareladas estão densamente dispostas em cachos no ápice dos ramos.
O fruto é uma cápsula e quando maduro se abre através de fendas para liberar as sementes.
A espécie é conhecida apenas por um registro realizado no ano de 1841, no município de Natividade. Foi encontrada crescendo sobre afloramentos rochosos na vegetação de Cerrado. É considerada Criticamente Em Perigo (CR) de extinção devido à perda e degradação contínua do seu habitat, principalmente em decorrência da expansão da atividade agropecuária.

 Ameaças à biodiversidade

O território Cerrado Tocantins cobre mais de 37 mil km² e abrange 22 municípios. Segundo o biólogo, o avanço da agropecuária, os incêndios, a introdução de espécies exóticas e a construção de barragens têm impactado diretamente esse ecossistema sensível.

“As gramíneas invasoras, por exemplo, mudam completamente o comportamento do fogo. E aí, somado ao desmatamento, o impacto é ainda maior. Fora isso, os ambientes aquáticos estão sendo muito alterados por represamentos. E têm espécies que dependem de rio correndo, de poça temporária, de ambiente muito específico”, ressalta Oscar.

É o caso do chamado peixe das nuvens, o Leptolebias tocantinensis, que vive em poças temporárias no meio do pasto e desaparece durante a seca, deixando ovos enterrados no barro. “Ele só é conhecido de uma única poça. Já houve casos de tráfico desses ovos no Aeroporto de Guarulhos. Coletaram aqui no Tocantins para vender como peixe ornamental fora do Brasil”, conta.

Clima e extinção

O desaparecimento dessas espécies não é causado apenas pela ação humana direta. As mudanças climáticas também já mostram impactos visíveis na biodiversidade tocantinense.

 “Esses bichos e plantas são verdadeiros termômetros da crise climática. A cada ano que passa, o ambiente fica menos adequado para eles se reproduzirem. Existe espécie que não está sumindo por desmatamento, mas porque o clima já não permite que ela exista como antes”, alerta o biólogo.

Segundo ele, os dados científicos já são claros. “Aqui mesmo em Palmas, a gente viveu um fim de março completamente atípico. Muita chuva agora, mas pouca chuva no início da estação. No Brasil todo, a gente vê enchentes, calor extremo, desequilíbrio. E isso impacta diretamente as espécies”, completa.

Por que preservar?

Oscar explica que existem dois grandes motivos para conservar essas espécies: o ecológico e o econômico. Cada espécie desempenha uma função no ecossistema. Uma planta pode ajudar a infiltrar água no solo, um inseto pode ser polinizador. Quando perdemos uma espécie, perdemos um serviço ambiental. E isso, em algum momento, nos afeta.”

Além disso, o potencial genético é incalculável. “A gente tem planta que pode virar remédio, peixe que pode ser ornamental, substância que pode ter valor industrial. O captopril, remédio para pressão, foi feito a partir do veneno da cascavel. Imagina o que não pode sair daqui?”, exemplifica.

Esforço coletivo

Desde 2019, o PAT Cerrado Tocantins realiza ações como: mapeamento e monitoramento de espécies invasoras; campanhas de levantamento de fauna e flora ameaçada; fomento ao uso sustentável do solo e da água; criação de políticas públicas ambientais; e formação de redes locais de conservação.

Oscar acredita que o sucesso dessas ações depende da valorização local e da educação ambiental. “A maioria das pessoas nunca ouviu falar dessas espécies. Só conhecem a onça, o lobo. Mas esses bichos pequenos, plantas raríssimas, são tão importantes quanto. E muitos deles só existem aqui. É um trabalho de formiguinha, mas essencial”, conclui.